Leonor
Carrato a Nô, falece duas semanas depois de ser encontrada, deixando uma
história de militância para ser desvendada.
por Romualdo Pessoa
Publicado 12/05/2020 10:47
Publicado no Jornal do TO |
Em um dos meus
trabalhos de pesquisa eu afirmei que o pesquisador ao escolher o seu tema que o
tornará especialista em uma área, faz com que cresça ao longo do tempo uma
paixão que o acompanhará para o resto da vida. Aconteceu de eu escolher um tema
que se liga à minha história de vida e engajamento político. Como historiador
construí essa junção, cuja ligação me torna praticamente uma fonte recorrente
quando se trata da história daqueles que viveram um tempo de combate tenso, no
enfrentamento com uma ditadura peçonhenta, de atos vis e comportamentos criminosos.
Depois de 30 anos
envolvido na história da Guerrilha do Araguaia, ainda continuo surpreendido com
histórias que nos comovem e nos envolvem mais ainda em fatos passados,
misturados com trajetórias incríveis e que fazem as ligações com o presente.
Há cerca de duas
semanas recebi uma mensagem do jornalista Lailton Costa, do Jornal do
Tocantins. Perguntava se poderia me ligar, pois tinha uma história
impressionante de uma militante que dizia ter participado da Guerrilha do
Araguaia, e estava morando em Colinas do Tocantins. Conversamos por um bom
tempo. Ele me contou a história de Leonor Carrato, Nô, como era conhecida, de
100 anos de idade[1]. Rapidamente fiz uma busca em meus arquivos, e procurei
também no relatório final da Comissão da Verdade. Não encontrei nenhuma
referência ao seu nome.
Foto de Luciene Anacleto Publicada no Jornal do TO |
Leonor Carrato,
cujo nome verdadeiro ela ainda se lembrava, se identificou aos agentes,
facilitando o contato com parte de sua família que vivia em Minas Gerais e que a
levou para a cidade de Andrada naquele estado, onde, lamentavelmente, veio a
morrer 14 dias depois de reencontrá-los, provavelmente ainda impactada pelo
ataque que sofreu em Colinas do Tocantins.
Doc. publicado no UOL, nele a família de Leonor comunica seu desaparecimento em 1979 |
A história de
Maria Lídia-Leonor, logo teve grande repercussão, pela reportagem bem feita por
Lailton, pela dimensão que sempre teve a história da Guerrilha do Araguaia, e até mesmo pelo
próprio momento político em que estamos vivendo, quando um presidente
desequilibrado recebe no Palácio do Planalto um torturador e criminoso
confesso, Sebastião de Moura Curió, responsável direto, e devidamente
responsabilizado, pelo assassinato de dezenas de militantes mortos após terem
sido presos com vida. Duas semanas depois a história de Leonor Carrato tomou
conta de sites de notícias de dimensão nacional, sendo publicada no UOL-Folha
de São Paulo.[2]
Assim, a notícia
do aparecimento de mais uma militante, que vivera tanto tempo escondida, nos
lembra histórias de outros personagens de guerras, reaparecidos somente décadas
depois do final do evento. Mesmo em relação à Guerrilha do Araguaia, temos a
história de Micheias Gomes de Almeida. Zezinho do Araguaia, como era conhecido,
combateu na guerrilha e saiu de lá juntamente com Angelo Arroio, um de seus
comandantes. Zezinho não conseguiu chegar a um ponto de encontro em tempo, e,
como era orientação, desapareceu do local. Mas fez isso quase que também de sua
própria personalidade, e viveu por mais de duas décadas sem que se soubessem de
sua existência. Fui um dos primeiros a entrevistá-lo, juntamente com outro
colega pesquisador, e a contar sua história em minha dissertação de mestrado,
tornada livro com o título “Guerrilha do Araguaia, a esquerda em armas”.
Tão logo foi
publicada a reportagem de Lailton, procurei fazer contato com a Fundação
Maurício Grabois, que guarda um importante acervo documental tanto sobre a
Guerrilha, como sobre o PCdoB. A situação de distanciamento social se tornou um
empecilho para que pudéssemos ir a campo para agilizar essas investigações.
Como sempre faço, mantenho contato com outros pesquisadores, e até mesmo com
parentes daqueles que desapareceram e/ou foram assassinados durante e depois da
guerrilha, em busca de alguma informação que porventura algum deles tivessem.
Nô, em casa, Colinas do Tocantins uma das últimas fotos - Publicada no Jornal do TO. |
Mas desde o começo
tive dificuldades de aceitar que ela tivesse de alguma maneira feito parte da
guerrilha. O jornalista me convenceu da lucidez com que ela falava de sua
história de militância e do envolvimento com o PCdoB. A hipótese que passei a
trabalhar era que ela poderia ter tido uma passagem pelo partido, em um momento
de turbulência e de reorganização. No entanto supus que o caminho dela pudesse
ter sido outro. Como era sabido, e eu tinha conhecimento, muitos militantes se
deslocaram na direção do Bico do Papagaio, fronteira do hoje estado do
Tocantins, do Maranhão e do Pará. E o foram motivados também por uma outra
estratégia, que era para ser implementada pela ALN (Aliança Libertadora
Nacional), em função de uma proposta de Carlos Marighela, em fazer uma
guerrilha volante por toda a BR-153. Portanto, há uma forte probabilidade de
ela ter se ligado à ALN e se deslocado para a região dentro dessa perspectiva.
A outra hipótese seria dela ter se tornado membro do MOLIPO, (Movimento de
Libertação Popular). Como outros fizeram e foram descobertos, com alguns sendo
sepultados clandestinamente em algumas cidades da região, como Guaraí, onde foi
morto e sepultado Jeová Assis Gomes, e como Arno Preis, preso em Paraíso do
Tocantins, ambos membros do MOLIPO.
Seriam suposições,
em que eu me dedicava a buscar algumas respostas e mantendo contato para isso.
Como fazemos sempre, todas as vezes em que aparece um nome vinculado à história
da Guerrilha do Araguaia, procuramos nos desdobrar para achar respostas para
alguns mistérios infindáveis. Como em todos os conflitos e guerras, histórias
parecidas se sucedem, e pessoas se isolam em um mundo criado para garantir suas
sobrevivências, e dele tem dificuldades em sair, principalmente porque todos os
seus contatos, ou morreram, ou desapareceram.
Foto de arquivo pessoal - Publicado no Jornal do TO |
Leonor Carrato
possivelmente se inclui nesse rol de militantes que se entregaram à luta por um
ideal, em um momento obscuro da história do nosso país. Em vida seria mais
fácil buscar em suas memórias mais informações que nos ajudassem a desvendar
toda a sua trajetória, certamente marcada por abnegação e dedicação à causa que
ela acreditava. Com sua morte[3] caberá a nós, historiadores e historiadoras, nos
debruçarmos sobre uma história de um final que poderia ter sido menos doloroso
do que foram as últimas décadas de solidão em que ela viveu. Certamente, porém,
ela não morreu esquecida, pois quis o destino que ela reencontrasse parte de
sua família.
Espero poder
encontrar os fios que enredam a história de Maria Lídia-Leonor Carrato, como
consegui ajudar a refazer os laços separados de Amaro Lins, cuja história eu
conto em meu livro, distanciado que ficou de sua família por ter escolhido ir
para o Sul do Pará e se engajar na preparação do movimento guerrilheiro. Tendo
sobrevivido, viveu escondido por muito tempo, sendo levado para o reencontro
com suas filhas no Rio de Janeiro, após sua história ser mostrada no Fantástico
da Rede Globo. Seu Amaro faleceu poucos anos depois, no ano de 2000.
Com certeza a
Fundação Maurício Grabois irá nos ajudar nessa busca de informações em seus
arquivos, e, se houver alguma relação com o PCdoB certamente isso será
mostrado. Mas nos resta agora garimpar nos documentos históricos, para garantir
que a memória de Leonor Carrato possa ser resgatada e a sua história
devidamente contada.
NOTAS:
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