terça-feira, 12 de maio de 2020

NÔ, A HISTÓRIA DE UMA GUERRILHEIRA A SER DESVENDADA


Leonor Carrato a Nô, falece duas semanas depois de ser encontrada, deixando uma história de militância para ser desvendada.
por Romualdo Pessoa
Publicado 12/05/2020 10:47

Publicado no Jornal do TO
Em um dos meus trabalhos de pesquisa eu afirmei que o pesquisador ao escolher o seu tema que o tornará especialista em uma área, faz com que cresça ao longo do tempo uma paixão que o acompanhará para o resto da vida. Aconteceu de eu escolher um tema que se liga à minha história de vida e engajamento político. Como historiador construí essa junção, cuja ligação me torna praticamente uma fonte recorrente quando se trata da história daqueles que viveram um tempo de combate tenso, no enfrentamento com uma ditadura peçonhenta, de atos vis e comportamentos criminosos.
Depois de 30 anos envolvido na história da Guerrilha do Araguaia, ainda continuo surpreendido com histórias que nos comovem e nos envolvem mais ainda em fatos passados, misturados com trajetórias incríveis e que fazem as ligações com o presente.
Há cerca de duas semanas recebi uma mensagem do jornalista Lailton Costa, do Jornal do Tocantins. Perguntava se poderia me ligar, pois tinha uma história impressionante de uma militante que dizia ter participado da Guerrilha do Araguaia, e estava morando em Colinas do Tocantins. Conversamos por um bom tempo. Ele me contou a história de Leonor Carrato, Nô, como era conhecida, de 100 anos de idade[1]. Rapidamente fiz uma busca em meus arquivos, e procurei também no relatório final da Comissão da Verdade. Não encontrei nenhuma referência ao seu nome.
Foto de Luciene Anacleto
Publicada no Jornal do TO
Maria Lídia, como passou a ser conhecida por todo esse tempo, disse ser uma antiga militante de esquerda, e que ajudara na reconstrução do Partido Comunista do Brasil, nos idos da década de 1960. Teria se deslocado para a região onde vivia para fazer parte da Guerrilha do Araguaia. O jornalista Lailton disse que ela aparentava lucidez, apesar de 100 anos de idade e de um aspecto físico bem fragilizado. A sua emersão teria se dado por circunstâncias ruins, que provavelmente fez acelerar sua fragilidade. Morando sozinha, em um pequeno casebre, ela teria sido vítima de um assalto, foi agredida e ao ser atendida por policiais civis ela revelou sua história.
Leonor Carrato, cujo nome verdadeiro ela ainda se lembrava, se identificou aos agentes, facilitando o contato com parte de sua família que vivia em Minas Gerais e que a levou para a cidade de Andrada naquele estado, onde, lamentavelmente, veio a morrer 14 dias depois de reencontrá-los, provavelmente ainda impactada pelo ataque que sofreu em Colinas do Tocantins.
Doc. publicado no UOL,
nele a família
de Leonor comunica
seu desaparecimento em 1979
A história de Maria Lídia-Leonor, logo teve grande repercussão, pela reportagem bem feita por Lailton, pela dimensão que sempre teve a história da  Guerrilha do Araguaia, e até mesmo pelo próprio momento político em que estamos vivendo, quando um presidente desequilibrado recebe no Palácio do Planalto um torturador e criminoso confesso, Sebastião de Moura Curió, responsável direto, e devidamente responsabilizado, pelo assassinato de dezenas de militantes mortos após terem sido presos com vida. Duas semanas depois a história de Leonor Carrato tomou conta de sites de notícias de dimensão nacional, sendo publicada no UOL-Folha de São Paulo.[2]
Assim, a notícia do aparecimento de mais uma militante, que vivera tanto tempo escondida, nos lembra histórias de outros personagens de guerras, reaparecidos somente décadas depois do final do evento. Mesmo em relação à Guerrilha do Araguaia, temos a história de Micheias Gomes de Almeida. Zezinho do Araguaia, como era conhecido, combateu na guerrilha e saiu de lá juntamente com Angelo Arroio, um de seus comandantes. Zezinho não conseguiu chegar a um ponto de encontro em tempo, e, como era orientação, desapareceu do local. Mas fez isso quase que também de sua própria personalidade, e viveu por mais de duas décadas sem que se soubessem de sua existência. Fui um dos primeiros a entrevistá-lo, juntamente com outro colega pesquisador, e a contar sua história em minha dissertação de mestrado, tornada livro com o título “Guerrilha do Araguaia, a esquerda em armas”.
Tão logo foi publicada a reportagem de Lailton, procurei fazer contato com a Fundação Maurício Grabois, que guarda um importante acervo documental tanto sobre a Guerrilha, como sobre o PCdoB. A situação de distanciamento social se tornou um empecilho para que pudéssemos ir a campo para agilizar essas investigações. Como sempre faço, mantenho contato com outros pesquisadores, e até mesmo com parentes daqueles que desapareceram e/ou foram assassinados durante e depois da guerrilha, em busca de alguma informação que porventura algum deles tivessem.
Nô, em casa,  Colinas do Tocantins
uma das últimas fotos -
Publicada no Jornal do TO.
Mas desde o começo tive dificuldades de aceitar que ela tivesse de alguma maneira feito parte da guerrilha. O jornalista me convenceu da lucidez com que ela falava de sua história de militância e do envolvimento com o PCdoB. A hipótese que passei a trabalhar era que ela poderia ter tido uma passagem pelo partido, em um momento de turbulência e de reorganização. No entanto supus que o caminho dela pudesse ter sido outro. Como era sabido, e eu tinha conhecimento, muitos militantes se deslocaram na direção do Bico do Papagaio, fronteira do hoje estado do Tocantins, do Maranhão e do Pará. E o foram motivados também por uma outra estratégia, que era para ser implementada pela ALN (Aliança Libertadora Nacional), em função de uma proposta de Carlos Marighela, em fazer uma guerrilha volante por toda a BR-153. Portanto, há uma forte probabilidade de ela ter se ligado à ALN e se deslocado para a região dentro dessa perspectiva. A outra hipótese seria dela ter se tornado membro do MOLIPO, (Movimento de Libertação Popular). Como outros fizeram e foram descobertos, com alguns sendo sepultados clandestinamente em algumas cidades da região, como Guaraí, onde foi morto e sepultado Jeová Assis Gomes, e como Arno Preis, preso em Paraíso do Tocantins, ambos membros do MOLIPO.
Seriam suposições, em que eu me dedicava a buscar algumas respostas e mantendo contato para isso. Como fazemos sempre, todas as vezes em que aparece um nome vinculado à história da Guerrilha do Araguaia, procuramos nos desdobrar para achar respostas para alguns mistérios infindáveis. Como em todos os conflitos e guerras, histórias parecidas se sucedem, e pessoas se isolam em um mundo criado para garantir suas sobrevivências, e dele tem dificuldades em sair, principalmente porque todos os seus contatos, ou morreram, ou desapareceram.
Foto de arquivo pessoal - Publicado
no Jornal do TO
Leonor Carrato possivelmente se inclui nesse rol de militantes que se entregaram à luta por um ideal, em um momento obscuro da história do nosso país. Em vida seria mais fácil buscar em suas memórias mais informações que nos ajudassem a desvendar toda a sua trajetória, certamente marcada por abnegação e dedicação à causa que ela acreditava. Com sua morte[3] caberá a nós, historiadores e historiadoras, nos debruçarmos sobre uma história de um final que poderia ter sido menos doloroso do que foram as últimas décadas de solidão em que ela viveu. Certamente, porém, ela não morreu esquecida, pois quis o destino que ela reencontrasse parte de sua família.
Espero poder encontrar os fios que enredam a história de Maria Lídia-Leonor Carrato, como consegui ajudar a refazer os laços separados de Amaro Lins, cuja história eu conto em meu livro, distanciado que ficou de sua família por ter escolhido ir para o Sul do Pará e se engajar na preparação do movimento guerrilheiro. Tendo sobrevivido, viveu escondido por muito tempo, sendo levado para o reencontro com suas filhas no Rio de Janeiro, após sua história ser mostrada no Fantástico da Rede Globo. Seu Amaro faleceu poucos anos depois, no ano de 2000.
Com certeza a Fundação Maurício Grabois irá nos ajudar nessa busca de informações em seus arquivos, e, se houver alguma relação com o PCdoB certamente isso será mostrado. Mas nos resta agora garimpar nos documentos históricos, para garantir que a memória de Leonor Carrato possa ser resgatada e a sua história devidamente contada.


NOTAS:

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