Será que podemos
falar algo neste momento, que não tenha a Covid19 como centro da preocupação? Muito
difícil. Podemos tentar, mas, ao final, vamos terminar caindo nessa questão.
Porque tudo que diga respeito ao nosso estilo de vida, e à maneira como nos relacionamos
na sociedade, e como se dá a relação humana com a natureza, indubitavelmente
nos levará a indagar sobre as consequências dessas relações. E a pandemia
causada pelo vírus “Sars cov-2” tem uma razão de existir, ela não surge espontaneamente,
suas causas estão sendo investigadas, e já é possível dizer que tem a ver com
nossa forma de nos relacionarmos com o nosso meio, a natureza e a sociedade.
Mas aqui não vamos
partir das consequências. O objetivo é analisar as questões relacionadas aos
problemas ambientais, sob um foco diferente daquele que comumente a mídia
costuma enfocar. Vou procurar inverter a maneira como as coisas são mostradas,
e repetidas ad nauseam. Normalmente o foco das notícias são as
consequências. Por exemplo: aquecimento global (considerando todas as polêmicas
que existem em torno dessa expressão). Ora, que seja, suponhamos que de fato
haja um “aquecimento global”, embora eu não goste dessa expressão. Mas de
maneira nenhuma isso pode ser visto como o nosso parâmetro para considerarmos
as condições do planeta Terra.
O que quero dizer
é que as mudanças climáticas, ou os eventos climáticos extremos, geram efeitos
diversos, e a elevação da temperatura da terra é uma delas(*). Mas essas não são
as causas. E muito menos os eventos extremos se explicam por si sós. Primeiro,
é preciso dizer (e não vou me estender porque fugiria da minha especialidade) que
as transformações na natureza ocorrem desde milhões de anos atrás, de maneira
sucessiva. É impossível determinar o tempo de duração da terra, mas conta-se em
bilhões de anos, desde o que poderia ter sido a sua origem: o Big Bang.
Compreende-se, por esses números, que nada que se possa falar sobre a terra, ou
o universo de uma maneira geral, possa ser dito de maneira simplificada.
Contudo, não
podemos fechar os olhos e desconsiderar todo esse processo que advêm de um
longo tempo, e imaginarmos que nossas origens se contam a partir de uma ação de
um ser divino, porque não vamos chegar ao começo, já que teríamos que buscar
respostas sobre como surge esse Deus. E, certamente ficaríamos como vemos
divertidamente um cachorro girando em círculo tentando morder o seu próprio
rabo. Da mesma forma, o reducionismo da existência da terra vinculando ao
surgimento do ser humano tornaria esse o Planeta dos Humanos[1], pressupondo que daí seria
o início das transformações na terra.
Portanto, estamos
diante de situações muito complexas, e da necessidade do entendimento de
transformações que são potencializadas pela ação humana, ou poderíamos usar a
palavra aceleradas, mas jamais podemos esquecer que, independente da ação
humana mudanças acontecem na natureza, seguindo um ciclo normal, de um
equilíbrio necessário que muitas vezes passou por processos de extinção em
larga escala.
Mas não quero me
aprofundar nos períodos que antecedem o atual, isso falando geologicamente, em milhões
de anos. Queremos partir do antropoceno, provavelmente identificado
temporalmente como tendo se iniciado a partir do século XVIII, portanto desde
quando as atividades industriais assumem uma grande intensidade, criando uma
classe forte, daqueles que passaram a controlar a partir dali os meios de
produção não mais manufaturados, mas industrializados. Tempo em que também as ideias
sofriam transformações revolucionária e o antropocentrismo passou a assumir a
condição hegemônica na relação com o conhecimento, deixando para traz o período
em que a igreja dominava as ideias e o teocentrismo era a base do entendimento
de como o mundo funcionava.
Deixo em aberto
aqui essa questão quanto ao surgimento do antropoceno, já que alguns estudiosos
consideram que isso se deu desde o aparecimento do homo sapiens, quando
a partir de então o ser humano passa a buscar formas de não somente se adaptar
ao ambiente, mas com a capacidade que vai adquirindo de lidar com ferramentas
ele inicia um processo intenso de
intervenção na natureza, acelerando essa relação de forma exponencial, mediante
revoluções acentuadas nos meios de produção, e em sua capacidade de manusear e
transformar objetos, até atingirmos esses tempos atuais, de uma enorme
intensidade tecnológica.
Mas foi principalmente
a partir dos fins da Idade Média que concepções filosóficas de base materialistas
ampliaram o entendimento que já vinha desde a antiguidade, apesar do
interstício medieval. Tivemos primeiro o Renascimento, um resgate das artes e
ciências da Antiguidade esquecidas nos tempos sombrios medievais, e depois o Iluminismo,
quando a humanidade se depara com filosofias que passam a expor de forma clara
uma diferença essencial entre o homem e os demais animais, a sua capacidade de
transformar o seu habitat, para além da capacidade adaptativa. O teocentrismo
perde definitivamente lugar para o antropocentrismo, e o ser humano é guindado
à condição de centro do universo. Kant, no século XVIII, vai ter um papel
importante na diferença do ser humano com os demais animais, que por ser dotado
de razão se tornaria superior à natureza bruta. (KANT, 2016, pp. 611-613)
Por sua
importância na Geografia, Kant influenciou muitos geógrafos e suas concepções
serão importantes no próprio embate existente entre os seguidores de Friederich
Ratzel e os de Vidal de La Blache. Aquele tido como determinista por ver um
forte processo adaptativo também no ser humano, e busca nisso a explicação para
dar sentido e força à categoria território, advinda da própria maneira como os
animais delimitam seus espaços, também numa clara influência darwinista. Já em La
Blache, está mais fortemente marcada essa linha kantiana, de sobreposição da
capacidade humana sobre a natureza, a partir de todo o processo produtivo que o
leva a realizar transformações que modificarão seu habitat.
Embora as duas
vertentes estejam cobertas de razões, no entendimento do que de fato acontece
entre a relação homem-natureza, a forma como o ser humano é elevado quase a
condição de Deus, pelo seu potencial de intervenção na natureza e de poder
transformá-la, definirá os caminhos pelos quais as sociedades marcharão,
elevando por esse mantra a condição de superioridade e de deificação de si
mesmo, em uma atribuição recente por Yuri Harari, de “Homo-Deus”. (HARARI, 2019,
p. 427)
Essa condição, de
superioridade perante a natureza, e todo processo acelerativo que nos tira da
condição de manusear primitivamente objetos à inserção de inteligências
artificiais em objetos ultra tecnologicamente desenvolvidos, com capacidade de
substituir o ser humano em tarefas tidas como essenciais em nossas vidas, tem
sido fundamental para uma transformação radical em nossa forma de viver, e,
consequentemente, em nossos comportamentos. A cultura segue, por aí, e define
nossas atitudes e hábitos.
O deslumbramento com
a tecnologia ao longo dos séculos, curto tempo em que a ciência assumiu o protagonismo,
não ela espontaneamente enquanto sujeito, mas sim, como instrumento da ação
humana, com objetivos definidos de ampliar sua capacidade de produção de
mercadorias e de produtos sofisticados que objetivavam, sempre, ampliar o
processo produtivo e adquirir inovações que impulsionassem as sociedades por
caminhos da artificialização da vida, distanciando-se gradativamente de seu
ambiente natural. Este também aos poucos sendo atingidos por essa onda de novas
tecnologias, acelerando a destruição da natureza, de onde se extraem as
principais matérias-primas a serem usadas nesses processos.
Devastada, a
natureza foi se vendo atingida no elemento básico de sua existência: o
equilíbrio ecológico. Condição pela qual qualquer ser vivo ou objeto existente
se torna essencial para a vida, ou para a conformação do planeta, numa visão
vista como dialética por um viés, ou holística, tal qual demonstrado no filme
Avatar, explorando o mito de Gaia para dar também essa noção de totalidade e de
interação entre todos elementos e seres vivos que habitam a terra. Essa concepção
foi difundida no século XX, por James Lovelock.[2]
É certo, contudo,
não importar muito as concepções que irão nortear essas teorias para o objetivo
que queremos transmitir aqui, visto que cada uma delas considera que a
interação na natureza, a forma com se dão as relações entre os seres vivos, e
destes com o ambiente em que vivem, se dá por meio de um equilíbrio natural.
Pelo dito, a
partir do que temos estudados, consideramos necessário e urgente abordar a
aceleração destrutiva dessa relação que o ser humano estabelece com a natureza,
de maneira intensa e cada vez mais sofisticada e por isso mais explosiva para
esse equilíbrio ecológico. A chamada era antropocênica atinge o seu pico nos
dias atuais, reduzindo a cada ano o intervalo entre velhas e novas tecnologias,
levando a uma obsolescência rápida de inovações tecnológicas por curto tempo
passado celebradas como novidades.
Essa aceleração é
consequência da própria característica do sistema capitalista, por essência
expansivo (MARQUES 2016). Isso leva a um rápido descarte de algo ainda
utilizável, mas que deve ser superado tecnologicamente para permanecer elevado
o ímpeto do consumo pelo que é moderno e novidade. Isso faz com que a maior
parte das mercadorias existentes no mundo atualmente tenham surgido há menos de
duas décadas, ou são sistemas que se atualizam permanentemente e trazem sempre
novas cargas de inovações.
Com um mundo em
previsão de atingir 9 bilhões de pessoas até os anos 2050, esse mecanismo tende
a se manter num grau de obsessão por novas tecnologias e inovações cada vez mais
acentuado. As consequências disso, principalmente porque o principal motor
desse desenvolvimento são fontes de energias fósseis, mas também porque essas
novidades tecnológicas exigem a exploração de recursos hídricos e minerais em
larga escala, é a intensificação da destruição da natureza, porque é nela que se
encontram as matérias primas necessárias para que isso tudo aconteça.
Nos últimos anos
tem surgido um movimento mundial que exige um planeta verde, e que atualmente
tem envolvido novas gerações, jovens que despertam para o perigo que o
expansionismo capitalista representa para o presente e os dias futuros. Mesmo
que não sendo movimentos em essência anti-capitalistas, eles não podem fugir à
realidade de ser esse o sistema hegemônico, quase que exclusivamente dominante,
que não se detém diante da necessidade de acumular cada vez mais riquezas nas
mãos dos que controlam os meios de produção.
Tudo isso nos leva
aos questionamentos que são feitos por pesquisadores que se interessam por
compreender como se dá o processo evolutivo do planeta terra, e os momentos que
por bilhões, milhões e milhares de anos, transformaram o planeta em toda a sua
dimensão e o ecúmeno, por caminhos que levaram a pelo menos cinco extinções de
espécies vivas, animais e vegetais. Neste momento estaríamos, então, diante da
sexta extinção (MARQUES, 2016; KOLBERT, 2015).
Desta feita, acentuada pelos mecanismos gerados pelo agente responsável pela transformação acelerada
do meio-ambiente, natural e artificial, o ser humano. Daí a indicação de vivermos
em uma era antropocêntrica, na identificação da origem do termo.[3]
Assim, chegamos
àquilo que nos angustia atualmente, uma pandemia causada por um vírus que se
dissemina numa rapidez jamais vista antes. São dois aspectos importantes de
serem abordados para estabelecermos uma ligação com o que quisemos dizer nas
linhas acimas: o primeiro o tipo do vírus e a sua origem, certamente já próximos
a obtermos uma resposta cem por cento correta, de ter surgido a partir das
relações humanas com animais silvestres, fora de seus habitats; o segundo
devido a maneira como nós nos estabelecemos nas cidades, superpopulosas e a
facilidade com que nos deslocamos por distâncias enormes em curtos espaços de
tempo, como consequência dos avanços tecnológicos nos meios de transportes.
Avatar |
Somente esses dois
aspectos, dentre tantos muitos outros que podemos citar, já nos coloca, a nós
seres humanos, como os principais responsáveis pelas alterações dos ambientes
naturais, causando um absoluto descontrole no equilíbrio ecológico, bem como construindo
artificialmente formas de vida concentradas, em cidades que potencializam
disseminação de doenças, e onde, pela absoluta ausência de condições de
criarmos as condições de nossas próprias sobrevivências, nos habituamos a nos
alimentar e nos vestir seguindo padrões gerados por processos industriais que
são fontes por onde se originam todas as ações que são destrutivas para a
natureza e a biodiversidade.
Por esse caminho,
da agressão à natureza, e de ambientes criados por condições vergonhosamente
desiguais, é que o caminho apontado como consequência do processo evolutivo sistêmico,
produtor de mercadorias e destruidor de ambientes naturais, será da eliminação de
uma quantidade enorme de espécies, que veem seus habitats destruídos. Algumas
poucas dessas espécies, desesperadamente em busca de sobrevivência, encontram
nos ambientes urbanos refúgios e um novo processo adaptativo. Mas trazem
consigo vírus que são mortais para o organismo do ser humano e até mesmo de
alguns animais criados em larga escala para atender a uma demanda alimentar de
base carnívora.
Mito de Gaia |
Compreendemos
então, que a crise ambiental que vivenciamos nada mais é do que parte da crise
sistêmica capitalista, pelo seu caráter eminentemente expansionista, e que nos
leva aceleradamente para mais uma extinção em massa de espécies, a “sexta
extinção”. A pandemia da COVID19 poderá não ser o maior processo de disseminação
de vírus deste século. Se não mudarmos a forma como lidamos com a natureza, e
não conseguirmos conter a ganância e obsessão com que se dão as relações capitalistas
e a sua insensibilidade diante de um mundo terrivelmente desigual, iremos em
espaços de tempos cada vez mais curtos, nos deparar com outras pandemias, e em
muitos casos teremos que nos acostumar com a permanência entre nós de vírus que
serão incapazes de serem contidos, transformando doenças epidêmicas em endêmicas,
a infernizar principalmente a vida da maioria da população mais pobre e vivente
em periferias desassistidas do poder público e entregues à uma miséria
crescente.
Cabe-nos
questionar se o ser humano também estará incluído na lista das espécies que
desaparecerão com a “Sexta Extinção”.
NOTAS:
(*) Em conversas com um colega professor após a produção desse artigo, resolvi acrescentar essa nota explicativa, para melhor compreensão de conceitos que envolvem termos que hoje são ditos usualmente, mas muitas vezes, como eu fiz, de forma muito abrangente, mas nem sempre cientificamente correta: "mudanças climáticas", esse termo é amplo e usual, mas é errado sob o ponto de vista da Climatologia, mudanças climáticas são mensuráveis em intervalos iguais ou superiores a 100 mil anos, o que temos é "variabilidade climática", pois são intervalos curtos de uma ou mais décadas e causadas pelo ser humano. O mais adequado e que não gera problemas é a "ciclicidade climática", pois os eventos extremos se repetem, após décadas, séculos etc. É possível determinar a idade da Terra sim: 4,56 bilhões de anos. (...) o Big Bang ocorreu há 13,87 bilhões de anos, portanto a Terra não é derivada disso, mas sim de vários processos astrofísicos que ocorreram na galáxia Via Láctea até gerar o Sol e o Sistema Solar, por um período de aproximadamente 5 bilhões de anos após o Big Bang". (Prof.
Dr. Paulo Henrique Azevedo Sobreira. Geógrafo (bacharelado e licenciatura) e
Cosmógrafo. Mestre e Doutor em Geografia Física - Ensino de Astronomia em Geografia. Professor Associado do Instituto
de Estudos Socioambientais - IESA-UFG)
[1] Faço aqui um trocadilho
não com o Planeta dos Macacos, o filme. Mas com um documentário, produzido por
Michael Moore e lançado em 2019, “Planeta dos Humanos”, disponível no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=VKNTrFKju3g
[2] Lovelock propôs a teoria Gaia. Esta teoria
propõe a existência de um sistema cibernético de controle, que compreenderia a
biosfera, a hidrosfera, a atmosfera, os solos e parte da crosta terrestre, e
teria a capacidade de manter propriedades do ambiente, como a composição
química e a temperatura, em estados adequados para a vida. https://www.ecodebate.com.br/2017/07/04/teoria-de-gaia-de-ideia-pseudocientifica-teoria-respeitavel-artigo-de-roberto-naime/
[3] Palavra formada a
partir do Grego ANTHROPOS, “homem”, mais
GENEA, “geração, raça, ascendência”. https://www.dicio.com.br/antropogenico-2/
REFERÊNCIAS:
HARARI,
Yuval Noah. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: LP&M, 2019.
46ª edição.
KOLBERT,
Elizabeth. A Sexta extinção. Uma história não natural. Rio de Janeiro, RJ: Editora
Intrínseca, 2015. Edição Digital.
MARQUES,
Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2016. 2ª
edição.
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