segunda-feira, 18 de maio de 2020

O ANTROPOCENO E COMO NOSSAS RELAÇÕES COM A NATUREZA AFETAM NOSSAS VIDAS E MULTIPLICAM AS DOENÇAS

Será que podemos falar algo neste momento, que não tenha a Covid19 como centro da preocupação? Muito difícil. Podemos tentar, mas, ao final, vamos terminar caindo nessa questão. Porque tudo que diga respeito ao nosso estilo de vida, e à maneira como nos relacionamos na sociedade, e como se dá a relação humana com a natureza, indubitavelmente nos levará a indagar sobre as consequências dessas relações. E a pandemia causada pelo vírus “Sars cov-2” tem uma razão de existir, ela não surge espontaneamente, suas causas estão sendo investigadas, e já é possível dizer que tem a ver com nossa forma de nos relacionarmos com o nosso meio, a natureza e a sociedade.
Mas aqui não vamos partir das consequências. O objetivo é analisar as questões relacionadas aos problemas ambientais, sob um foco diferente daquele que comumente a mídia costuma enfocar. Vou procurar inverter a maneira como as coisas são mostradas, e repetidas ad nauseam. Normalmente o foco das notícias são as consequências. Por exemplo: aquecimento global (considerando todas as polêmicas que existem em torno dessa expressão). Ora, que seja, suponhamos que de fato haja um “aquecimento global”, embora eu não goste dessa expressão. Mas de maneira nenhuma isso pode ser visto como o nosso parâmetro para considerarmos as condições do planeta Terra.
O que quero dizer é que as mudanças climáticas, ou os eventos climáticos extremos, geram efeitos diversos, e a elevação da temperatura da terra é uma delas(*). Mas essas não são as causas. E muito menos os eventos extremos se explicam por si sós. Primeiro, é preciso dizer (e não vou me estender porque fugiria da minha especialidade) que as transformações na natureza ocorrem desde milhões de anos atrás, de maneira sucessiva. É impossível determinar o tempo de duração da terra, mas conta-se em bilhões de anos, desde o que poderia ter sido a sua origem: o Big Bang. Compreende-se, por esses números, que nada que se possa falar sobre a terra, ou o universo de uma maneira geral, possa ser dito de maneira simplificada.
Contudo, não podemos fechar os olhos e desconsiderar todo esse processo que advêm de um longo tempo, e imaginarmos que nossas origens se contam a partir de uma ação de um ser divino, porque não vamos chegar ao começo, já que teríamos que buscar respostas sobre como surge esse Deus. E, certamente ficaríamos como vemos divertidamente um cachorro girando em círculo tentando morder o seu próprio rabo. Da mesma forma, o reducionismo da existência da terra vinculando ao surgimento do ser humano tornaria esse o Planeta dos Humanos[1], pressupondo que daí seria o início das transformações na terra.
Portanto, estamos diante de situações muito complexas, e da necessidade do entendimento de transformações que são potencializadas pela ação humana, ou poderíamos usar a palavra aceleradas, mas jamais podemos esquecer que, independente da ação humana mudanças acontecem na natureza, seguindo um ciclo normal, de um equilíbrio necessário que muitas vezes passou por processos de extinção em larga escala.
Mas não quero me aprofundar nos períodos que antecedem o atual, isso falando geologicamente, em milhões de anos. Queremos partir do antropoceno, provavelmente identificado temporalmente como tendo se iniciado a partir do século XVIII, portanto desde quando as atividades industriais assumem uma grande intensidade, criando uma classe forte, daqueles que passaram a controlar a partir dali os meios de produção não mais manufaturados, mas industrializados. Tempo em que também as ideias sofriam transformações revolucionária e o antropocentrismo passou a assumir a condição hegemônica na relação com o conhecimento, deixando para traz o período em que a igreja dominava as ideias e o teocentrismo era a base do entendimento de como o mundo funcionava.
Deixo em aberto aqui essa questão quanto ao surgimento do antropoceno, já que alguns estudiosos consideram que isso se deu desde o aparecimento do homo sapiens, quando a partir de então o ser humano passa a buscar formas de não somente se adaptar ao ambiente, mas com a capacidade que vai adquirindo de lidar com ferramentas ele  inicia um processo intenso de intervenção na natureza, acelerando essa relação de forma exponencial, mediante revoluções acentuadas nos meios de produção, e em sua capacidade de manusear e transformar objetos, até atingirmos esses tempos atuais, de uma enorme intensidade tecnológica.
Mas foi principalmente a partir dos fins da Idade Média que concepções filosóficas de base materialistas ampliaram o entendimento que já vinha desde a antiguidade, apesar do interstício medieval. Tivemos primeiro o Renascimento, um resgate das artes e ciências da Antiguidade esquecidas nos tempos sombrios medievais, e depois o Iluminismo, quando a humanidade se depara com filosofias que passam a expor de forma clara uma diferença essencial entre o homem e os demais animais, a sua capacidade de transformar o seu habitat, para além da capacidade adaptativa. O teocentrismo perde definitivamente lugar para o antropocentrismo, e o ser humano é guindado à condição de centro do universo. Kant, no século XVIII, vai ter um papel importante na diferença do ser humano com os demais animais, que por ser dotado de razão se tornaria superior à natureza bruta. (KANT, 2016, pp. 611-613)
Por sua importância na Geografia, Kant influenciou muitos geógrafos e suas concepções serão importantes no próprio embate existente entre os seguidores de Friederich Ratzel e os de Vidal de La Blache. Aquele tido como determinista por ver um forte processo adaptativo também no ser humano, e busca nisso a explicação para dar sentido e força à categoria território, advinda da própria maneira como os animais delimitam seus espaços, também numa clara influência darwinista. Já em La Blache, está mais fortemente marcada essa linha kantiana, de sobreposição da capacidade humana sobre a natureza, a partir de todo o processo produtivo que o leva a realizar transformações que modificarão seu habitat.
Embora as duas vertentes estejam cobertas de razões, no entendimento do que de fato acontece entre a relação homem-natureza, a forma como o ser humano é elevado quase a condição de Deus, pelo seu potencial de intervenção na natureza e de poder transformá-la, definirá os caminhos pelos quais as sociedades marcharão, elevando por esse mantra a condição de superioridade e de deificação de si mesmo, em uma atribuição recente por Yuri Harari, de “Homo-Deus”. (HARARI, 2019, p. 427)
Essa condição, de superioridade perante a natureza, e todo processo acelerativo que nos tira da condição de manusear primitivamente objetos à inserção de inteligências artificiais em objetos ultra tecnologicamente desenvolvidos, com capacidade de substituir o ser humano em tarefas tidas como essenciais em nossas vidas, tem sido fundamental para uma transformação radical em nossa forma de viver, e, consequentemente, em nossos comportamentos. A cultura segue, por aí, e define nossas atitudes e hábitos.
O deslumbramento com a tecnologia ao longo dos séculos, curto tempo em que a ciência assumiu o protagonismo, não ela espontaneamente enquanto sujeito, mas sim, como instrumento da ação humana, com objetivos definidos de ampliar sua capacidade de produção de mercadorias e de produtos sofisticados que objetivavam, sempre, ampliar o processo produtivo e adquirir inovações que impulsionassem as sociedades por caminhos da artificialização da vida, distanciando-se gradativamente de seu ambiente natural. Este também aos poucos sendo atingidos por essa onda de novas tecnologias, acelerando a destruição da natureza, de onde se extraem as principais matérias-primas a serem usadas nesses processos.
Devastada, a natureza foi se vendo atingida no elemento básico de sua existência: o equilíbrio ecológico. Condição pela qual qualquer ser vivo ou objeto existente se torna essencial para a vida, ou para a conformação do planeta, numa visão vista como dialética por um viés, ou holística, tal qual demonstrado no filme Avatar, explorando o mito de Gaia para dar também essa noção de totalidade e de interação entre todos elementos e seres vivos que habitam a terra. Essa concepção foi difundida no século XX, por James Lovelock.[2]
É certo, contudo, não importar muito as concepções que irão nortear essas teorias para o objetivo que queremos transmitir aqui, visto que cada uma delas considera que a interação na natureza, a forma com se dão as relações entre os seres vivos, e destes com o ambiente em que vivem, se dá por meio de um equilíbrio natural.
Pelo dito, a partir do que temos estudados, consideramos necessário e urgente abordar a aceleração destrutiva dessa relação que o ser humano estabelece com a natureza, de maneira intensa e cada vez mais sofisticada e por isso mais explosiva para esse equilíbrio ecológico. A chamada era antropocênica atinge o seu pico nos dias atuais, reduzindo a cada ano o intervalo entre velhas e novas tecnologias, levando a uma obsolescência rápida de inovações tecnológicas por curto tempo passado celebradas como novidades.
Essa aceleração é consequência da própria característica do sistema capitalista, por essência expansivo (MARQUES 2016). Isso leva a um rápido descarte de algo ainda utilizável, mas que deve ser superado tecnologicamente para permanecer elevado o ímpeto do consumo pelo que é moderno e novidade. Isso faz com que a maior parte das mercadorias existentes no mundo atualmente tenham surgido há menos de duas décadas, ou são sistemas que se atualizam permanentemente e trazem sempre novas cargas de inovações.
Com um mundo em previsão de atingir 9 bilhões de pessoas até os anos 2050, esse mecanismo tende a se manter num grau de obsessão por novas tecnologias e inovações cada vez mais acentuado. As consequências disso, principalmente porque o principal motor desse desenvolvimento são fontes de energias fósseis, mas também porque essas novidades tecnológicas exigem a exploração de recursos hídricos e minerais em larga escala, é a intensificação da destruição da natureza, porque é nela que se encontram as matérias primas necessárias para que isso tudo aconteça.
Nos últimos anos tem surgido um movimento mundial que exige um planeta verde, e que atualmente tem envolvido novas gerações, jovens que despertam para o perigo que o expansionismo capitalista representa para o presente e os dias futuros. Mesmo que não sendo movimentos em essência anti-capitalistas, eles não podem fugir à realidade de ser esse o sistema hegemônico, quase que exclusivamente dominante, que não se detém diante da necessidade de acumular cada vez mais riquezas nas mãos dos que controlam os meios de produção.
Tudo isso nos leva aos questionamentos que são feitos por pesquisadores que se interessam por compreender como se dá o processo evolutivo do planeta terra, e os momentos que por bilhões, milhões e milhares de anos, transformaram o planeta em toda a sua dimensão e o ecúmeno, por caminhos que levaram a pelo menos cinco extinções de espécies vivas, animais e vegetais. Neste momento estaríamos, então, diante da sexta extinção (MARQUES, 2016; KOLBERT, 2015).
Desta feita, acentuada pelos mecanismos gerados pelo agente responsável pela transformação acelerada do meio-ambiente, natural e artificial, o ser humano. Daí a indicação de vivermos em uma era antropocêntrica, na identificação da origem do termo.[3]
Assim, chegamos àquilo que nos angustia atualmente, uma pandemia causada por um vírus que se dissemina numa rapidez jamais vista antes. São dois aspectos importantes de serem abordados para estabelecermos uma ligação com o que quisemos dizer nas linhas acimas: o primeiro o tipo do vírus e a sua origem, certamente já próximos a obtermos uma resposta cem por cento correta, de ter surgido a partir das relações humanas com animais silvestres, fora de seus habitats; o segundo devido a maneira como nós nos estabelecemos nas cidades, superpopulosas e a facilidade com que nos deslocamos por distâncias enormes em curtos espaços de tempo, como consequência dos avanços tecnológicos nos meios de transportes.
Avatar
Somente esses dois aspectos, dentre tantos muitos outros que podemos citar, já nos coloca, a nós seres humanos, como os principais responsáveis pelas alterações dos ambientes naturais, causando um absoluto descontrole no equilíbrio ecológico, bem como construindo artificialmente formas de vida concentradas, em cidades que potencializam disseminação de doenças, e onde, pela absoluta ausência de condições de criarmos as condições de nossas próprias sobrevivências, nos habituamos a nos alimentar e nos vestir seguindo padrões gerados por processos industriais que são fontes por onde se originam todas as ações que são destrutivas para a natureza e a biodiversidade.
Por esse caminho, da agressão à natureza, e de ambientes criados por condições vergonhosamente desiguais, é que o caminho apontado como consequência do processo evolutivo sistêmico, produtor de mercadorias e destruidor de ambientes naturais, será da eliminação de uma quantidade enorme de espécies, que veem seus habitats destruídos. Algumas poucas dessas espécies, desesperadamente em busca de sobrevivência, encontram nos ambientes urbanos refúgios e um novo processo adaptativo. Mas trazem consigo vírus que são mortais para o organismo do ser humano e até mesmo de alguns animais criados em larga escala para atender a uma demanda alimentar de base carnívora.
Mito de Gaia
Compreendemos então, que a crise ambiental que vivenciamos nada mais é do que parte da crise sistêmica capitalista, pelo seu caráter eminentemente expansionista, e que nos leva aceleradamente para mais uma extinção em massa de espécies, a “sexta extinção”. A pandemia da COVID19 poderá não ser o maior processo de disseminação de vírus deste século. Se não mudarmos a forma como lidamos com a natureza, e não conseguirmos conter a ganância e obsessão com que se dão as relações capitalistas e a sua insensibilidade diante de um mundo terrivelmente desigual, iremos em espaços de tempos cada vez mais curtos, nos deparar com outras pandemias, e em muitos casos teremos que nos acostumar com a permanência entre nós de vírus que serão incapazes de serem contidos, transformando doenças epidêmicas em endêmicas, a infernizar principalmente a vida da maioria da população mais pobre e vivente em periferias desassistidas do poder público e entregues à uma miséria crescente.
Cabe-nos questionar se o ser humano também estará incluído na lista das espécies que desaparecerão com a “Sexta Extinção”.




NOTAS:

(*) Em conversas com um colega professor após a produção desse artigo, resolvi acrescentar essa nota explicativa, para melhor compreensão de conceitos que envolvem termos que hoje são ditos usualmente, mas muitas vezes, como eu fiz, de forma muito abrangente, mas nem sempre cientificamente correta: "mudanças climáticas", esse termo é amplo e usual, mas é errado sob o ponto de vista da Climatologia, mudanças climáticas são mensuráveis em intervalos iguais ou superiores a 100 mil anos, o que temos é "variabilidade climática", pois são intervalos curtos de uma ou mais décadas e causadas pelo ser humano. O mais adequado e que não gera problemas é a "ciclicidade climática", pois os eventos extremos se repetem, após décadas, séculos etc. É possível determinar a idade da Terra sim: 4,56 bilhões de anos. (...) o Big Bang ocorreu há 13,87 bilhões de anos, portanto a Terra não é derivada disso, mas sim de vários processos astrofísicos que ocorreram na galáxia Via Láctea até gerar o Sol e o Sistema Solar, por um período de aproximadamente 5 bilhões de anos após o Big Bang". (Prof. Dr. Paulo Henrique Azevedo Sobreira. Geógrafo (bacharelado e licenciatura) e Cosmógrafo. Mestre e Doutor em Geografia Física - Ensino de Astronomia em  Geografia. Professor Associado do Instituto de Estudos Socioambientais - IESA-UFG)
[1] Faço aqui um trocadilho não com o Planeta dos Macacos, o filme. Mas com um documentário, produzido por Michael Moore e lançado em 2019, “Planeta dos Humanos”, disponível no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=VKNTrFKju3g
[2]  Lovelock propôs a teoria Gaia. Esta teoria propõe a existência de um sistema cibernético de controle, que compreenderia a biosfera, a hidrosfera, a atmosfera, os solos e parte da crosta terrestre, e teria a capacidade de manter propriedades do ambiente, como a composição química e a temperatura, em estados adequados para a vida. https://www.ecodebate.com.br/2017/07/04/teoria-de-gaia-de-ideia-pseudocientifica-teoria-respeitavel-artigo-de-roberto-naime/
[3] Palavra formada a partir do Grego ANTHROPOS, “homem”, mais  GENEA, “geração, raça, ascendência”. https://www.dicio.com.br/antropogenico-2/
REFERÊNCIAS:
HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: LP&M, 2019. 46ª edição.
KOLBERT, Elizabeth. A Sexta extinção. Uma história não natural. Rio de Janeiro, RJ: Editora Intrínseca, 2015. Edição Digital.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2016. 2ª edição.



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