“É que vocês não
sabem, não o podem saber,
o que é ter olhos num mundo de cegos”.
(José
Saramago – Ensaio sobre a cegueira)
1981 - 7 de setembro - greve nacional dos estudantes |
Nesta segunda-feira, dia
15 de outubro, se comemora o "Dia
do/a Professor/a". Não tenho muito o que comemorar. Nos últimos dias tenho
vivido tenso, preocupado. Lutei contra a ditadura militar, estive nas ruas e
por diversas vezes fui preso, por ousar levantar a voz contra o arbítrio e
defender os nossos direitos, inclusive dos professores, em greve históricas que
fizemos. Quase sempre éramos reprimidos brutalmente. Fui levado ao DOPS
(Departamento de Ordem Pública e Social) e à Polícia Federal, fichado e
ameaçado de ser processado com base na Lei de Segurança Nacional.
Não sei como um vírus
foi inoculado nas mentes incautas, a ponto de corrermos o risco de estarmos
prestes a revivermos os piores momentos de ataques à liberdade e à democracia,
como naqueles terríveis tempos das décadas de 1960, 1970 até meados da década
de 1980. Creiam, os estudantes e os professores eram os mais visados. Muitos
foram presso, torturados e desapareceram nos porões dos órgãos repressores. A
censura era brutal, e quase ninguém sabia o que acontecia no país. Os moradores
de ruas eram exterminados, e muitos jogados no oceano.
Como historiador,
professor de geopolítica, tento compreender o que pode acontecer a um povo que
esquece sua história. Ao ver ex-colegas que comigo militaram naqueles tempos
sombrios defender a candidatura de alguém que defende a tortura, e diz que mais
de trinta mil deveriam ter sido exterminados, me assusto. Sempre falei sobre
como isso aconteceu na Alemanha nazista, na Itália fascista, na Espanha
franquista, na ditadura no Chile de Pinochet, no Japão militarista, nas
ditaduras que aterrorizaram os que se opunham às suas idéias. É verdade que
isso também aconteceu no Camboja de Pol Pot, que se tornou também uma ditadura
perversa, embora tivesse surgido com projeto de esquerda. E assim também na
Iugoslávia socialista, cujo povo ao se rebelar contra o regime, logo após a
morte de Josip Broz Tito, levou aquele país a uma guerra fratricida, que
terminou com genocídios e o país dividido em seis partes, hoje seis países (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Sérvia) e duas províncias autônomas (Kosovo e Vojvodina). A história de Ruanda, e o genocídio de quase um milhão de pessoas da etnia
tutsis, eliminados por seus compatriotas hutus, é outro exemplo de como a
intolerância e o discurso do ódio jogam uns contra os outros sem que haja alguma razão plausível, a não ser a estupidez e o veneno do ódio.
Sempre falei sobre isso
em minhas aulas de Geopolítica. Ver ex-alunos/as, embora poucos, ficar do outro
lado da história, e se deixar levar por discursos perversos, racistas,
machistas, homofóbicos e antidemocráticos, me faz refletir sobre como temos ao
longo dos anos lidado com nossa história. Com a história do mundo. Ao ver
amigos e amigas, que por longo tempo marchamos do mesmo lado, combatendo o
inimigo perverso que nos tolhia a liberdade e ceifava a nossa democracia, e que neste momento fecham os
olhos e a mente, cedem a pressões de dogmas religiosos e apoiam propostas
abjetas, me faz refletir sobre o quanto é tênue a linha entre o que a vida pode
nos ensinar e o quão um discurso neofascista pode alienar a ponto de fechar os
olhos diante das perversidades e desumanidades que são ditas abertamente.
O Dia do/a professor/a será para mim
um momento de reflexão. Talvez um momento para relembrar (e para parafrasear)
as palavras de José Saramago, em seu livro “Ensaio sobre a cegueira”. Refletir
sobre como foi que essas pessoas cegaram. Não sabemos, mas talvez um dia
possamos descobrir a razão. E, se queres que eu diga o que penso, penso que não
são cegos. São cegos que vêem. Cegos que, vendo, não veem. Claro que Saramago se refere não à cegueira física, mas a incapacidade de enxergar a realidade em função da alienação e do fundamentalismo religioso.
Não vou me deixar me abater pela
cegueira de alguns. Não depois de quase quarenta anos lutando pela democracia.
E, neste dia, direi aos meus alunos e alunas que me assistem na disciplina de
Geopolítica: se você lê Yves Lacoste, “A geografia serve, em primeiro lugar,
para fazer a guerra”; Milton Santos, “Por uma outra globalização”; e Moniz
Banderia, “A desordem mundial”, e não compreende o que está em jogo no Brasil e
no mundo, então você não entendeu nada do que acontece à sua volta. E, talvez,
tenhamos errado na forma de procurar mostrar o que esses livros dizem, como o mundo
é de fato, de que ele é muito mais complexo do que nos querem fazer crer (Yves
Lacoste).
Como professor, historiador (mestre), geógrafo (doutor), e com quase 30
anos lidando com contradições para entender as transformações sociais não posso
me surpreender com o que está em curso no país. Cabe-me, no entanto, tentar
entender como o discurso do ódio se dissemina tão celeremente, e o quão certas
pessoas estão contaminadas com um vírus que consome a razão.
Neste dia, o que posso dizer como
professor, é que hoje eu transmito o que aprendi e compreendi ao longo de
décadas de formação. As ruas me ensinaram quando, como militante, não tive medo
de encarar uma ditadura militar. Portanto, não será o neofascismo, nem o medo
de um militarismo que pretende degradar a democracia, que me intimidará depois
de tudo que aprendi e no que me tornei defendendo a democracia e a liberdade.
Como professor, lhe direi, caso
reproduza ou apoie o discurso do ódio, da intolerância, da discriminação e do
neofascismo: eu estou do lado certo da história! O tempo dirá isso, como já
aconteceu no passado. E não haverá repetição da história. Se acontecer deste
projeto nefasto se consolidar, será uma farsa, ou uma tragédia. Certamente,
professores como eu, que lutam por uma sociedade onde o saber seja a principal
ferramenta a definir nosso futuro, seremos considerados doutrinadores, por
trânsfugas ou sectários fundamentalistas, que se consideram modeladores
iluminados do jeito das pessoas se comportarem. Seguiremos trabalhando sempre,
com a verdade, e essa verdade nos garantirá a liberdade, nem que tenhamos que
oferecer nossas vidas, como tantos fizeram no passado para fazer desse país um
ambiente de respeito às diversidades e às diferenças.
Seguirei firme, procurando transmitir
um saber que possa ser compreendido como necessário à transformação social, ao
respeito pelo outro, à aceitação da diversidade, às escolhas individuais, à
democracia e à liberdade. Agradeço aos meus melhores alunos e alunas (e são
muitos, maioria) que sempre me garantem um feedback, que possibilita meu aprimoramento. E, juntos, podemos cada vez mais
tentar entender o que há por trás dos comportamentos humanos, a complexidade da
humanidade e aprender sobre qual a melhor atitude e o caminho adequado para
atingirmos nossos objetivos comuns. Só não conseguimos, pois não é atribuição
nossa, enquanto professor, mudar o caráter das pessoas. Seria bom que fosse, pois “o caráter
de um individuo, é o seu destino”.
Um brinde aos que lutam pela liberdade! Um brinde a todos professores e professoras! Um brinde ao professor Haddad! A luta não pode parar!
Compartilho das mesmas angústias!
ResponderExcluirPerfeito seu texto caro professor!
Sensacional professor!!
ResponderExcluirseguimos na luta, em tempos sombrios se faz mas que nunca, necessário, manter a força e união!!
Romualdo,adoro ler seus artigos, você é um grande historiador, escritor de mão cheia e um professor magnifico.
ResponderExcluirTexto lucido Romuca. Muito bom.
ResponderExcluirInfelizmente chegamos nessa terrível situação por culpa do partido que teve tudo para mudar a história do Brasil mas na verdade produziu mais do mesmo.
ResponderExcluirAchei completamente equivocada também a escolha do Haddad para concorrer a eleição haja vista a quantidade de processos que ele responde bem como a administração desastrosa da cidade de São Paulo. Mas vamos continuar atentos na oposição porém com responsabilidade de concordar com o novo governo naquilo que for importante para o Brasil. Oposição apenas por oposição é atraso é burrice.