O Grito de Edvard Munch. Obra expressionista |
Não podemos achar que vivemos em uma
ilha, onde as coisas acontecem independentemente da realidade que reflete os
fatos que se sucedem no mundo. Evidente que não. O que nos afeta é consequência
de transformações que foram geradas pelo fracasso daquilo que se convencionou
chamar de globalização. E das políticas neoliberais que formaram as condições
necessárias para que tais políticas fossem implementadas.
Fracassados os modelos tentados por
essa onda de desregulamentação e destruição dos Estados o mundo se depara com
uma crise, que não advém de 2008 como muitos possam imaginar. Ela é um processo
cíclico que se inicia, se é que há um início ali, na década de 1970. Mas
somente na década de 1990 as soluções desejadas pelo capitalismo conseguiram
ser plantadas, como decorrência da decadência dos países que seguiam pelo
socialismo, e em especial a União Soviética.
Passou-se a um ambiente de absoluta
ausência de regulamentações, a não ser aquelas definidas por um ente abstrato,
erigido à condição de sujeito: o mercado. Naturalmente isso significa dizer que
não havia nenhum tipo de regulação. Em termos, claro. Porque muitos países se
aproveitaram dessas circunstâncias, se incluíram no mundo globalizado sem
abdicar de ter o Estado como instrumento necessário para transformar o
desenvolvimento econômico e social em algo mais palatável em relação à
sociedade. Ou seja, sem o Estado como instrumento regulador as classes sociais
mais baixas estariam entregues a um sistema claramente marcado pela selvageria
da lei do mais forte. E assim ocorreu, em muitos casos. Em outros não. E para
onde foi o mundo quase ao final da segunda década do século XXI?
Essa lógica foi desastrosa. Sob
diversos aspectos. No econômico levou a uma poder descontrolado das
corporações, principalmente aquelas que estão na ponta dos conglomerados: os
bancos. A concentração de riquezas chegou a níveis escandalosos. Houve um
processo de saneamento das empresas, motivado pela lógica inerente ao sistema
capitalista, da necessidade de lucros, levando a uma escalada de desempregos
por diversos países, principalmente aqueles que se encontravam em fortes
conflitos, seja guerras com inimigos externos, seja por desestabilizações
políticas internas, acrescidos das ações de agentes que executavam a chamada
“guerra híbrida”.
Para tornar a situação mais complexa o
capitalismo, como é comum acontecer diante do agravamento de suas crises
crônicas, cíclicas, busca um processo de reestruturação, acelerando
transformações tecnológicas cada vez mais sofisticadas, por meio da robotização
acentuada e da inteligência artificial. Naturalmente isso garante maior
lucratividade para empresas e a redução do uso de mão de obra humana,
alimentando uma crise social de proporções crescentes, trazendo junto com isso
desemprego, mais problemas sociais, uma juventude cooptada pela criminalidade,
desestruturação familiar, intolerância, ódio e xenofobia.
Por outro lado, governos
conservadores, alguns alçados à condição de dirigentes por meio de golpes institucionais,
programam medidas austeras em relação aos gastos do Estado, prejudicando as
camadas mais baixas, ao mesmo tempo em que seguem mantendo subsídios às grandes
empresas, ou as beneficiando por meio de isenções fiscais e garantia de
infraestruturas para seus aportes e instalações.
No Brasil não foi diferente. As
circunstâncias de uma situação política que levou o país a uma forte crise
fiscal serviu de pretexto para a derrubada em 2016 de um governo eleito
legitimamente, mediante acusações nitidamente farsescas, embora com a anuência
de um judiciário carregado de mágoas por causa de decisões que feriram seus
interesses corporativos.
A crise política, econômica e
institucional se agravou ao longo dos anos seguintes, e deixou numa situação
caótica o quadro político e social brasileiro. Um governo incompetente e
imoral, completamente distanciado dos interesses da Nação, até porque não foi
eleito democraticamente, adotou medidas que sufocaram mais ainda os
trabalhadores e empurrou o país para uma das maiores recessões de sua história.
Mas o aspecto moral foi o que mais se deteriorou, potencializado pelo
crescimento da criminalidade, da insegurança, da violência e do discurso que
projeta mais um sentimento de vingança do que a sensação que a justiça prevalecerá.
Um vale-tudo se instalou no país disseminado por fake-news nas redes sociais
que toma proporções parecidas com o que aconteceu nas eleições dos EUA e no
plebiscito do Brexit na Inglaterra.
Inquisição medieval |
Nesse quadro a sociedade vive a
expectativa de um processo eleitoral. Numa conjuntura em que a população se vê
perdida diante dessa manipulação de fatos e da utilização dos mecanismos que
foram adotados em outros países, da falsificação da verdade e de informações
distorcidas, aliado à perseguição comandada por um Ministério Público de uma
parcialidade irritante, embora reforçado por comportamentos semelhantes do
judiciário.
Assim, tudo é feito, até por meios
desleais no âmbito de uma justiça que se desmoraliza, aprofundando a sensação
de parcialidade explícita para que o poder político não retorne às mãos dos
partidos de esquerda. À medida que os principais candidatos dos segmentos
conservadores não conseguem deslanchar, destaca-se como representante do ódio
alimentado ao longo desse tempo, um candidato da extrema-direita. Como
característica desses perfis de candidaturas por todas as partes do mundo, seu
discurso é baseado na intolerância, na descriminação ao outro sem respeito às
diferenças e na alimentação do ódio, sob todos os aspectos. Um discurso que
pode ser caracterizado sem erro de neonazista. Paradoxalmente, ao tempo em que
professa esse sentimento intolerante, alicerça-se em crenças evangélicas,
cristãs, e diz falar em nome de deus.
Cenas da Inquisção |
Mas, porque esse indivíduo chegou a
essa situação? Basta olharmos para a história e veremos muitos trágicos
exemplos de como uma população fica refém de discursos de ódio, na medida em que
perde a esperança, não vê perspectivas em curto prazo, principalmente os
jovens, e são nesse desespero capturados pelo discurso fácil, enganador,
manipulador. São conduzidos pelo medo, e pela forma como culturalmente foram
sendo constituídos os valores e a ideologia de uma sociedade conservadora.
Submersos em momentos de avanços
sociais, como na primeira década deste século, um sentimento conservador se
libertou das profundezas, alimentando o medo e iludindo as pessoas com
versículos bíblicos escritos há mais de dois mil anos. Seria impossível crer
que um discurso de ódio e perversidade encontrasse guaridas em páginas
religiosas? Não é bem assim. A história nos levará a outros tempos, e nos
veremos diante de fatos por épocas passadas, onde o discurso religioso se
tornou instrumento de fascistas, farsantes e até mesmo de fanáticos que levaram
centenas de seguidores à morte, ou a tornarem-se, eles próprios, armas contra
quem eles sequer jamais chegaram a conhecer. Porque o ódio cega, e o ódio do
sectarismo fanático religioso se alimenta da ilusão e da crença de que
determinado indivíduo se torna ungido e destacado por deus para libertá-lo das
angústias e dos medos. E os que professam desse ódio e desse sentimento
perverso, matam e se matam em nome de deus.
Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, em apoio ao golpe militar - 1964 |
Numa situação de crise grave, de
desemprego que se conta a dezenas de milhões, em que uma juventude se perde na
ausência de esperança e de perspectiva, esse discurso farsesco se espalha
rapidamente. E, por mais paradoxo que possa parecer, mesmo sendo os que assim
propagam como sendo o escolhido, representante das camadas ricas, que defende
abertamente a eliminação dos pobres pela execução daqueles que os deveriam
proteger, muitos pobres, alienados, e/ou dominados pelas crenças sectárias
religiosas, são facilmente convencidos por esses discursos de ódio, por esse
ambiente no qual eles vivem e que a crise o aprofunda. Foi assim que surgiram
os personagens mais perversos e genocidas da história mundial.
Muito embora isso, no espectro
político que define a disputa eleitoral em curso, tem valido mais a disputa do
Poder e da projeção partidária desconectada da preocupação com o futuro que nos
aflige. Seria de esperar que num quadro assim delineado tivéssemos uma junção
de pensamentos, e de partidos, que se opõem a esse perigo eminente de
caminharmos para uma fascistização aberta da sociedade. Mas seguimos um enredo
já visto no passado, e isso parece não despertar uma sensação de risco, ou
talvez venha acompanhado de um sentimento de que uma derrota agora pode ser
revertida nas próximas eleições. Provavelmente alguns estrategistas imaginam
que da eleição de um desastroso e pérfido projeto levará as pessoas a se arrependerem,
e imaginam um fenômeno semelhante ao sebastianismo ocorrido em Portugal, país
que viu seu rei perder-se em meio a uma guerra, sem que jamais se soubesse qual
foi o seu destino. A expectativa do retorno de um salvador ilude a sociedade e
transfere para um futuro incerto um destino que estará sendo definido neste
momento.
Podemos dizer que a história julgará
aqueles que se omitirem ou manipularem um processo à custa de um jogo perigoso
que envolve toda uma nação. Mas ainda temos tempo de alterar o curso dos
acontecimentos. Praticamente vai se definindo uma disputa que colocará de um
lado uma candidatura nesse perfil aqui analisado, que representará a destruição
de tudo que se construiu e que se avançou na sociedade. Agora, a menos de um mês da eleição é preciso recuperar o tempo perdido de forma a garantir uma candidatura de esquerda na contraposição a essa onda de perseguição e intolerância que tomou conta do Brasil. A
rejeição a esse projeto reacionário está num patamar bastante elevado,
indicando a possibilidade de uma derrota efetiva em um segundo turno das
eleições. Temos que ter foco e saber definir bem claramente quem é o alvo a ser derrotado e quais propostas o povo rejeitará nas urnas, porque trariam mais incertezas para o nosso país. Neste momento virar as baterias contra possíveis aliados no segundo turno é uma estupidez. O "fogo amigo" só ajuda o adversário.
Mas o tempo não para. E as pessoas vão
se definindo, em meio a uma confusão inédita na história dos processos
eleitorais brasileiro.
Não temos tempo a perder. “Nosso suor
sagrado, é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério… temos nosso
próprio tempo” (Legião Urbana).
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