terça-feira, 9 de outubro de 2018

O OVO DA SERPENTE – DÉJÀ VU!* - Crônica sobre um Brasil à beira do abismo

Para um historiador nada do que está acontecendo pode surpreender. E não me refiro somente a situação política e social que vive o nosso país. O que acontece no mundo também parece ser incompreensível. Mas para o estudioso da história, da geopolítica ou das ciências sociais, uma análise pelas transformações que ocorreram no passado, em diversas partes, nos dá a indicação de que tudo é possível. Os avanços, as transformações sociais, a intolerância, os retrocessos, as ditaduras, o fascismo, o nazismo. Tudo muda, permanentemente, e em muitos casos, essas mudanças carregam traços do passado, ainda latente e de muitas feridas não cicatrizadas.
Mas quero me ater ao Brasil, nesse momento tenso em que estamos passando. Sempre tivemos como característica uma sociedade muito conservadora. Nos costumes, nos valores, na maneira de encarar as mudanças de comportamentos e na dificuldade de aceitar as transformações que se contrapõem a dogmas seculares, e até mesmo milenares. Por certo tempo avançamos em direção a ideias progressistas, e certamente isso se deveu porque as pessoas sentiram que o rumo que o país estava tomando, no final do século passado, era terrivelmente prejudicial para si e também para a imensa maioria da população desse país. Assim, apostaram em um novo projeto político, bem na contramão desses valores.
De lá pra cá muita coisa mudou. E não foi somente devido aos erros que teriam sido cometidos pelos governos de esquerda. Isso, como a insistência tanto reverberada pela mídia, tem alimentado o discurso fascista. Mas o que mudou é consequência de uma crise que é muito maior. Estamos num processo de transição de um sistema falido, que joga milhões de pessoas no desespero e na miséria, enquanto concentra uma riqueza absurda com 1% da população. A crise econômica de 2008 deixou os Estados em grande parte falidos, porque precisaram salvar os bancos e o sistema financeiro. Mas com poucos recursos no tesouro os Estados não podem adotar políticas sociais e isso acentua as crises, porque se perde um forte agente indutor de investimentos e, por extensão, gerador de empregos. Já os bancos... vão muito bem, e nem sequer se preocupam em salvar os estados. Estes só servem para atender aos seus objetivos. Só não se admite, pela elite, que as políticas do Estado ajudem a população pobre a sair das condições de crise. É claro que isso vai transformar a sociedade num inferno. O problema é que as pessoas olham para o lado errado, e se submetem as informações falsas e deturpadas sobre como deve ser a saída para esses dilemas.
O golpe dado aqui no Brasil, em meio à ambição tresloucada dos derrotados nas eleições de 2014, afundou o país no caos. Três anos de uma perversa recessão, e a ilusão transmitida pela grande mídia que estávamos saindo do buraco, quando na verdade nos afundávamos cada vez mais, deixou os brasileiros baratinados. O que se via, ouvia e se acompanhava pela mídia e redes sociais, era a repetição de acusações e indicações de culpas contra as políticas de governos que ousaram fazer do Estado um estimulador de políticas sociais em benefício dos mais pobres. Bem como inseri-los na fila de ingresso nas universidades públicas.
Paradoxalmente essas camadas beneficiadas por tais ações e políticas passam a combater esses projetos e a defender, de forma inusual, um indivíduo que se contrapõe por essência, e por questões ideológicas, aos mecanismos que foram criados para beneficiá-los. Isso parece loucura, mas não é. As circunstâncias surgidas no contexto da crise, a maneira como a mídia criou um ambiente nefasto, de pessimismo, como condição para desconstruir tudo que havia sido construído de positivo no Brasil desde 2002, a insistente desmoralização dos dirigentes políticos, em especial da presidenta, e a forma como se iniciou um processo de investigação das corrupções dentro da estrutura do Estado como elemento construtor das campanhas eleitorais foi gradativamente criando uma aversão pela política, inicialmente, e pelas principais lideranças de esquerda, algumas envolvidas nas denúncias do uso da máquina pública para manter um projeto de poder. Não importava se esse projeto de Poder visava combater as desigualdades sociais, muito embora não se combatesse a concentração da riqueza. Outro paradoxo.
Mas talvez o elemento mais histriônico, pelo qual se construiu uma chocadeira eletrônica, de onde proliferou uma infinidade de filhotes de fascismo, foram as pautas hipócritas de defesa da família, dos valores tradicionais, se contrapondo às lutas de minorias contra o machismo, a opressão e a intolerância a que sempre foram submetidos. Daí despontou as vozes perversas do fascismo, irritantemente estúpidas e mentirosas, que desvalorizam as pessoas pelas suas opções e escolhas de vida, apregoando para justificar essas posturas bizarras versículos bíblicos e exaltando o nome de Jesus como condutor dessas mais abjetas perversidades humanas. Há uma terrível inversão de valores nesse comportamento, que destrói os melhores valores apregoados pelo cristianismo primitivo.
Mas, nada de novo nisso, é um dejá vu, aconteceu também em 1964, com a famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Não visava liberdade coisa nenhuma. Simplesmente as submissas senhorinhas da classe média alta e da burguesia foram para as ruas com as mesmas pautas intolerantes de hoje, em um contexto diferente, naturalmente. Ali por um golpe militar, agora se vê militares tentando assumir o poder com o mesmo discurso mediante um processo eleitoral, cujo objetivo, se se sagrar vitorioso é a destruição da democracia e das liberdades a muito custo e sacrifício conquistadas, e assim mesmo de forma limitada. Pois é justamente contra a ampliação dessas liberdades que o fascismo se remexeu no  cio.
Qual a diferença nos fatos e estratégias adotadas nesses dois momentos? Primeiro, em 1964, a base da religião que possibilitou esses movimentos foi a igreja católica, naquele momento de forte envolvimento conservador. O que estamos vivendo neste momento, 54 anos depois, é uma estratégia adotada para que se tivesse um movimento favorável, e que não seria um partido político – tanto que para isso usou-se um bastante inexpressivo – foi a conversão de um candidato de extrema-direita, com discurso ditatorial, intolerante, preconceituoso, machista e racista, ao evangelismo neopentecostal, de feição nitidamente ultraconservadora, e isso bem recentemente, em 2016. Em um caso e outro o discurso de intolerância dá também um tom anticristão, e o mesmo caráter reacionário. Mas, naturalmente, há cristãos que resistem a esse engodo. Os que não são alienados e não se submetem à lavagens cerebrais.
Não há cérebros sãos por trás de tudo isso, e se transmite pelo ar um clima insuportável, que se espalha perigosamente e deixa o ambiente cinzento. Há uma frase do poeta Bertold Brecht, forte, mas que sintetiza bem o que significa esse movimento: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. É o que parece nesse momento. Haveremos de combatê-lo, mas conhecemos pela história que isso se dissemina perigosamente, em meio à ignorância, alienação e desespero de uma população que porventura tenha perdido as esperanças. O discurso do ódio, da violência para combater a violência gerada por problemas sociais, a absoluta ausência de preocupação com a harmonia da sociedade, pois desejam eliminar os diferentes, a hipocrisia e as mentiras, encontram nesses ambientes um solo fértil para germinar e crescer. Miremo-nos na história, aprendamos com o passado, ainda é tempo de impedir que entremos na loucura em que se transformaram outras sociedades, em alguns casos gerando genocídios de multidões inocentes. Acreditem que isso possa a vir novamente acontecer, mas tenha uma crença maior, de que é preciso impedir essa possibilidade. A humanidade já extirpou em outros momentos essas serpentes. Elas foram chocadas, estão se reproduzindo, mas serão mais uma vez derrotadas. Esperamos que somente pela via eleitoral.
Por fim, não se trata de querer aplicar esse rótulo de fascista a todos que porventura sejam conservadores. Não pode ser isso. Até porque nem mesmo esses liberais mais moderados escapam desse ódio visceral fascista, e vimos também isso quando se instalou uma ditadura militar aqui no Brasil, e de como funcionou o nazi fascismo na Alemanha e na Itália. Os arrependidos foram perseguidos e também se tornaram vítimas dessas ditaduras. Para isso é fundamental diferenciar quem propaga o discurso do ódio, da intolerância, da violência, daqueles que na ânsia de propor uma mudança terminam seduzidos por esses comportamentos abjetos. Trata-se de utilizarmos estratégias de convencimento, a fim de impedirmos que aqueles que são bem intencionados sejam atraídos pelo canto da serpente. Devemos trazê-los para o lado da democracia, da tolerância, do respeito às diferenças, e da liberdade.


(*) Déjà Vu – “A expressão francesa, que significa “já visto”, é usada para indicar um fenômeno que acontece no cérebro da maior parte da população mundial. O termo foi aplicado pela primeira vez por Emile Boirac (1851-1917), um estudioso interessado em fenômenos psicológicos. Déjà vu é quando nós vemos ou sentimos algo pela primeira vez e temos a sensação de já ter visto ou experimentado aquela sensação anteriormente”. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/deja-vu.htm


(**) Em 2012 publiquei outro artigo com o mesmo título: O Ovo da Serpente. E ali eu já abordava as fake news e os comportamentos intolerantes. Acesse o link e leia: https://gramaticadomundo.blogspot.com/search?q=O+ovo+da+serpente


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