Para um
historiador nada do que está acontecendo pode surpreender. E não me refiro
somente a situação política e social que vive o nosso país. O que acontece no
mundo também parece ser incompreensível. Mas para o estudioso da história, da
geopolítica ou das ciências sociais, uma análise pelas transformações que
ocorreram no passado, em diversas partes, nos dá a indicação de que tudo é
possível. Os avanços, as transformações sociais, a intolerância, os
retrocessos, as ditaduras, o fascismo, o nazismo. Tudo muda, permanentemente, e
em muitos casos, essas mudanças carregam traços do passado, ainda latente e de
muitas feridas não cicatrizadas.
Mas quero me
ater ao Brasil, nesse momento tenso em que estamos passando. Sempre tivemos
como característica uma sociedade muito conservadora. Nos costumes, nos
valores, na maneira de encarar as mudanças de comportamentos e na dificuldade
de aceitar as transformações que se contrapõem a dogmas seculares, e até mesmo
milenares. Por certo tempo avançamos em direção a ideias progressistas, e
certamente isso se deveu porque as pessoas sentiram que o rumo que o país estava
tomando, no final do século passado, era terrivelmente prejudicial para si e
também para a imensa maioria da população desse país. Assim, apostaram em um
novo projeto político, bem na contramão desses valores.
De lá pra cá
muita coisa mudou. E não foi somente devido aos erros que teriam sido cometidos
pelos governos de esquerda. Isso, como a insistência tanto reverberada pela
mídia, tem alimentado o discurso fascista. Mas o que mudou é consequência de
uma crise que é muito maior. Estamos num processo de transição de um sistema
falido, que joga milhões de pessoas no desespero e na miséria, enquanto
concentra uma riqueza absurda com 1% da população. A crise econômica de 2008
deixou os Estados em grande parte falidos, porque precisaram salvar os bancos e
o sistema financeiro. Mas com poucos recursos no tesouro os Estados não podem
adotar políticas sociais e isso acentua as crises, porque se perde um forte
agente indutor de investimentos e, por extensão, gerador de empregos. Já os
bancos... vão muito bem, e nem sequer se preocupam em salvar os estados. Estes
só servem para atender aos seus objetivos. Só não se admite, pela elite, que as
políticas do Estado ajudem a população pobre a sair das condições de crise. É
claro que isso vai transformar a sociedade num inferno. O problema é que as
pessoas olham para o lado errado, e se submetem as informações falsas e
deturpadas sobre como deve ser a saída para esses dilemas.
O golpe dado
aqui no Brasil, em meio à ambição tresloucada dos derrotados nas eleições de
2014, afundou o país no caos. Três anos de uma perversa recessão, e a ilusão
transmitida pela grande mídia que estávamos saindo do buraco, quando na verdade
nos afundávamos cada vez mais, deixou os brasileiros baratinados. O que se via,
ouvia e se acompanhava pela mídia e redes sociais, era a repetição de acusações
e indicações de culpas contra as políticas de governos que ousaram fazer do
Estado um estimulador de políticas sociais em benefício dos mais pobres. Bem
como inseri-los na fila de ingresso nas universidades públicas.
Paradoxalmente
essas camadas beneficiadas por tais ações e políticas passam a combater esses
projetos e a defender, de forma inusual, um indivíduo que se contrapõe por
essência, e por questões ideológicas, aos mecanismos que foram criados para
beneficiá-los. Isso parece loucura, mas não é. As circunstâncias surgidas no
contexto da crise, a maneira como a mídia criou um ambiente nefasto, de
pessimismo, como condição para desconstruir tudo que havia sido construído de
positivo no Brasil desde 2002, a insistente desmoralização dos dirigentes
políticos, em especial da presidenta, e a forma como se iniciou um processo de
investigação das corrupções dentro da estrutura do Estado como elemento
construtor das campanhas eleitorais foi gradativamente criando uma aversão pela
política, inicialmente, e pelas principais lideranças de esquerda, algumas
envolvidas nas denúncias do uso da máquina pública para manter um projeto de
poder. Não importava se esse projeto de Poder visava combater as desigualdades
sociais, muito embora não se combatesse a concentração da riqueza. Outro
paradoxo.
Mas talvez o
elemento mais histriônico, pelo qual se construiu uma chocadeira eletrônica, de
onde proliferou uma infinidade de filhotes de fascismo, foram as pautas hipócritas
de defesa da família, dos valores tradicionais, se contrapondo às lutas de
minorias contra o machismo, a opressão e a intolerância a que sempre foram
submetidos. Daí despontou as vozes perversas do fascismo, irritantemente
estúpidas e mentirosas, que desvalorizam as pessoas pelas suas opções e
escolhas de vida, apregoando para justificar essas posturas bizarras versículos
bíblicos e exaltando o nome de Jesus como condutor dessas mais abjetas
perversidades humanas. Há uma terrível inversão de valores nesse comportamento,
que destrói os melhores valores apregoados pelo cristianismo primitivo.
Mas, nada de
novo nisso, é um dejá vu, aconteceu também em 1964, com a famigerada “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”. Não visava liberdade coisa nenhuma. Simplesmente
as submissas senhorinhas da classe média alta e da burguesia foram para as ruas
com as mesmas pautas intolerantes de hoje, em um contexto diferente,
naturalmente. Ali por um golpe militar, agora se vê militares tentando assumir
o poder com o mesmo discurso mediante um processo eleitoral, cujo objetivo, se
se sagrar vitorioso é a destruição da democracia e das liberdades a muito custo
e sacrifício conquistadas, e assim mesmo de forma limitada. Pois é justamente
contra a ampliação dessas liberdades que o fascismo se remexeu no cio.
Qual a diferença
nos fatos e estratégias adotadas nesses dois momentos? Primeiro, em 1964, a
base da religião que possibilitou esses movimentos foi a igreja católica,
naquele momento de forte envolvimento conservador. O que estamos vivendo neste
momento, 54 anos depois, é uma estratégia adotada para que se tivesse um
movimento favorável, e que não seria um partido político – tanto que para isso
usou-se um bastante inexpressivo – foi a conversão de um candidato de
extrema-direita, com discurso ditatorial, intolerante, preconceituoso, machista
e racista, ao evangelismo neopentecostal, de feição nitidamente
ultraconservadora, e isso bem recentemente, em 2016. Em um caso e outro o discurso
de intolerância dá também um tom anticristão, e o mesmo caráter reacionário.
Mas, naturalmente, há cristãos que resistem a esse engodo. Os que não são
alienados e não se submetem à lavagens cerebrais.
Não há cérebros
sãos por trás de tudo isso, e se transmite pelo ar um clima insuportável, que se espalha perigosamente e deixa o ambiente cinzento. Há uma frase
do poeta Bertold Brecht, forte, mas que sintetiza bem o que significa esse
movimento: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. É o que parece nesse
momento. Haveremos de combatê-lo, mas conhecemos pela história que isso se
dissemina perigosamente, em meio à ignorância, alienação e desespero de uma
população que porventura tenha perdido as esperanças. O discurso do ódio, da
violência para combater a violência gerada por problemas sociais, a absoluta
ausência de preocupação com a harmonia da sociedade, pois desejam eliminar os
diferentes, a hipocrisia e as mentiras, encontram nesses ambientes um solo
fértil para germinar e crescer. Miremo-nos na história, aprendamos com o
passado, ainda é tempo de impedir que entremos na loucura em que se transformaram
outras sociedades, em alguns casos gerando genocídios de multidões inocentes.
Acreditem que isso possa a vir novamente acontecer, mas tenha uma crença maior,
de que é preciso impedir essa possibilidade. A humanidade já extirpou em outros
momentos essas serpentes. Elas foram chocadas, estão se reproduzindo, mas serão
mais uma vez derrotadas. Esperamos que somente pela via eleitoral.
Por fim, não se
trata de querer aplicar esse rótulo de fascista a todos que porventura sejam
conservadores. Não pode ser isso. Até porque nem mesmo esses liberais mais
moderados escapam desse ódio visceral fascista, e vimos também isso quando se
instalou uma ditadura militar aqui no Brasil, e de como funcionou o nazi
fascismo na Alemanha e na Itália. Os arrependidos foram perseguidos e também se
tornaram vítimas dessas ditaduras. Para isso é fundamental diferenciar quem
propaga o discurso do ódio, da intolerância, da violência, daqueles que na
ânsia de propor uma mudança terminam seduzidos por esses comportamentos abjetos.
Trata-se de utilizarmos estratégias de convencimento, a fim de impedirmos que
aqueles que são bem intencionados sejam atraídos pelo canto da serpente.
Devemos trazê-los para o lado da democracia, da tolerância, do respeito às
diferenças, e da liberdade.
(*) Déjà Vu – “A expressão francesa, que significa “já
visto”, é usada para indicar um fenômeno que acontece no cérebro da maior parte
da população mundial. O termo foi aplicado pela primeira vez por Emile Boirac
(1851-1917), um estudioso interessado em fenômenos psicológicos. Déjà vu é
quando nós vemos ou sentimos algo pela primeira vez e temos a sensação de já
ter visto ou experimentado aquela sensação anteriormente”. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/deja-vu.htm
(**) Em 2012
publiquei outro artigo com o mesmo título: O Ovo da Serpente. E ali eu já
abordava as fake news e os comportamentos intolerantes. Acesse o link e
leia: https://gramaticadomundo.blogspot.com/search?q=O+ovo+da+serpente
Excelente reflexão amigo Romualdo.
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