COMO COMPREENDO A MORTE E COMO SINTO A PRESENÇA DE QUEM JÁ MORREU, E QUE ESTÁ NAS LEMBRANÇAS, EM NOSSAS MEMÓRIAS
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https://youtu.be/JVhPrA6zmI8 |
Há 16 anos vivi o pior
momento de minha vida. No fatídico dia 13 de dezembro de 2007, perdi minha
querida filha Ana Carolina, aos 10 anos de idade. De lá para cá, claro, muita
coisa mudou. Nós envelhecemos, o mundo se transformou radicalmente, e posso
dizer sem medo de errar, para pior. Isso não se refere a mim, mas as
sociedades, como um todo. Se afunila uma crise sistêmica que passa
imperceptível, porque as pessoas vivem suas rotinas e os meios de comunicação
procuram formas de evitar considerar a existência de uma realidade tóxica,
causada pelo acirramento das contradições nas sociedades.
Algo não mudou, no
entanto, na minha rotina após esses 16 anos vividos, mais sofridos do que
antes, de lembranças latentes e permanentes. Porque quando perdemos uma filha,
ou um filho, jamais esquecemos... nunca esqueceremos. O que não mudou, então, é
a nossa permanente presença, sempre no dia 13 de dezembro, em visita à sua
sepultura. Outros dois momentos nos levam até lá, a data de seu aniversário, em
05 de março; e no dia dedicado aos mortos, 02 de novembro.
Em uma das crônicas que
escrevi para o livro que dediquei a ela, “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”, eu explico por
que não professando nenhuma religião, mantenho essa rotina, ao lado de minha
companheira Celma Grace. Ela, diferente de mim, que sou ateu, é agnóstica, e
professa a sua espiritualidade à sua maneira.
Infelizmente, para nosso
sofrimento e enorme tristeza, já não temos mais nossa filha entre nós. Ela
permanece nas lembranças, e na crença dos que acreditam haver alguma forma de
experiencia espiritual após a morte. Eu, como materialista que sou, não tenho
essa crença, embora respeite quem quer que assim veja o mundo, ou o pós-mundo.
Então o que me leva
rotineiramente ao cemitério, a visitar uma sepultura onde o que existe são os
restos mortais de minha filha? Sei de outros amigos que passaram pela mesma dor
que eu, e adotam outro comportamento. Respeito, pois cada pessoa lida com a morte
e com a perda de entes queridos de maneira diferente. E isso não significa
sentir menos ou mais essas perdas. Mas representam escolhas de cada uma dessas
pessoas, que seguramente carregam dentro de si seus sentimentos sinceros. Não
as julgo.
Para mim a morte é algo
sempre presente em nossas vidas. Não sabemos quando, nem escolhemos a forma
como vamos morrer. Embora alguns resolvam, por questões psicológicas e
angustiantes, tirar a sua própria vida. Mas a morte é inevitável, e a única
certeza que temos na vida: que em algum momento de nossas vidas cessaremos de
existir e morreremos.
Para um materialista,
isso para além de me considerar ateu, porque essa é uma denominação “concedida”
pelos cristãos, lidar com a morte pode ser mais angustiante do que para quem
acredita na espiritualidade, e na existência de uma vida pós-morte. A religião
se torna, assim, um refúgio, por onde se aceita a morte e se prepara para ela.
Ou, de maneira mais contundente, o espiritismo.
Não creio nisso. A morte,
na concepção materialista é o momento em que deixamos de existir para a vida, e
o nosso cérebro para de funcionar. Mesmo que por um certo tempo, por meio de
aparelhos, partes de nosso corpo ainda funcionem, e por isso são utilizadas
para transplantes, já não há mais vida em um corpo onde o cérebro tenha parado
de funcionar. Ocorre de, em algumas vezes, haver uma falência múltipla de
órgãos, que implicará também no fim daquele corpo. É trágico tratar disso, mas
é a pura consequência de nossa existência. De uma maneira, ou de outra,
passaremos por isso.
Penso na morte como um
sono profundo, definitivo, onde não haverá mais a possibilidade de sonharmos, e
do qual jamais sairemos. É o fim, dessa vida. Sem reagir, o corpo padece e se
consumirá ou na forma tradicional do sepultamento, ou no método que cresce como
escolha, da cremação.
Restarão as lembranças,
que estarão presentes nas mentes dos que ficarão vivos, de maneira mais fortes
nos primeiros momentos daquela perda, ou de forma significativa pelo resto da
vida das pessoas que vivenciaram a história de quem partiu, particularmente os
parentes, e mais especialmente em datas específicas. Porque, por mais que
amemos aquelas pessoas que já partiram, nossas vidas devem seguir em frente.
Porque continuamos a viver.
Mas essas lembranças, os
possíveis diálogos imaginários que possamos fazer para quem morreu,
principalmente uma filha, não tem a ver com a crença na permanência de um
espírito que vaga até encontrar um “paraíso”, onde os encontraremos quando
também morrermos. Para mim, se trata de estabelecer um diálogo com minhas
próprias lembranças, e de manter sempre presente o amor que sinto pela minha
filha, apesar de ela não estar mais entre nós.
Para mim, importa agora
tê-la viva nas minhas lembranças, em minhas memórias, principalmente ela,
porque perder uma filha um filho, foge do que imaginamos ser a ordem natural de
nossas vidas. Esperamos sepultar nossos pais, e desejamos que eles vivam até os
cem anos, com saúde. Já nossos filhos e filhas, perdê-los é como retirar partes
de nossos corpos. É uma ferida que jamais cicatriza, se mantém aberta, e
cuidamos dela de maneira diferente, dependendo de como cada um, ou cada uma,
veja a morte. E aprendemos a viver assim.
Não é uma questão de ser
religioso ou não, acreditar na espiritualidade ou ser ateu. É um sentimento que
extrapola qualquer relação com crenças religiosas. A única coisa que precisamos
para manter presente esses sentimentos e essas relações é o amor. Esse é o
sentimento que percorre nosso corpo, entre o coração e o cérebro, e nos faz
manter nossas lembranças sempre num estágio de permanente presença, que nos faz
sonhar até mesmo com quem já não está mais entre nós.
Embora não seja visto
assim, o coração tem um papel fundamental nessa relação. Para mim, é lá que
está o “deus” que cada um de nós procura. Pode ser um deus de bondade, ou um
deus que justifique todas as perversidades, guerras, mortes, crimes. Ele se liga
inevitavelmente com o cérebro, e esses dois órgãos agem concomitantemente
definindo nossas vidas, nossa forma de ser e o nosso caráter. Não é o que
“criamos” pelo nosso cérebro que nos faz ser o que somos. Importa pouco
“inventarmos” um deus, se nossos corações estiverem estimulados por ódios e por
indiferenças diante das coisas, das outras pessoas e de uma realidade social
perversa. Infelizmente, a maior parte da humanidade se refere ao coração de
maneira abstrata, figurativa.
Eis porque mantenho minha
rotina, mesmo sendo “ateu”, de ir frequentemente ao cemitério, nas datas
especiais, para ali, em frente à sepultura de minha filha, travar um monólogo,
embora eu queira ser que se trate de um diálogo. Mas é um monólogo. Ela não me
ouvirá. Mas do meu coração trato como se ela estivesse ouvindo, e minhas
memórias em minha mente, trazem as lembranças de sua vida, no tempo em que
esteve conosco.
Essa é a primeira vez, de
tantas vezes que já escrevi sobre esses sentimentos que nutro por minha filha,
desde quando ela partiu, em que faço referência explícita à minha condição de
ateu, ou materialista.
Quero assim romper com
essas concepções odiosas, de quem julga por meio de um coração recheado de ódio
e intolerância, ser melhor por “crer” em um deus. Ter uma religião, ou
acreditar em um deus, não torna as pessoas melhores, nem piores. O que define uma
pessoa é o seu caráter. Não é possível imaginar que existe um deus de
perversão, que estimule o ódio, que justifique a intolerância e os crimes
praticados em seu nome. O que vemos ao longo dos séculos, e milênios, são
violências sendo praticadas em nome de Deus. Nessas condições o que determina
esse comportamento é a ilusão criada nas mentes, que impõe a essas pessoas um
grau de intolerância que a leva a não aceitar que o outro não seja seguidor de
suas crenças, e o faz sentir ódio e até matar, com a justificativa perversa que
todos tem que acreditar em seu deus.
O materialista não age no
sentido de combater de forma odiosa as crenças na espiritualidade ou nos mitos,
que a nosso ver, são criados pelo ser humano. Mas visa explicar o mundo pela
concretude da vida. Por meio dos sentidos, da objetividade de nossa existência
real, daquilo que é comprovável. No entanto, compreendemos que o ser humano
sempre precisou da crença em deuses e na existência da vida para além da morte,
como forma de serem resilientes diante de adversidades inevitáveis, até mesmo
como lidar com a morte. Isso não é necessariamente algo ruim. Se torna ruim
quando se transforma numa justificativa para a disseminação de ódio e
intolerância, quando se deseja obrigar, por meio dessas crenças, que todos os
demais se enquadrem nessas concepções. Isso é o que se chama, doutrinação.
Assim, sigo visitando
minha filha em sua última morada. Transportando os sentimentos bons de sua
existência para o meu coração e mantendo-a sempre presente ao meu lado. Sofro,
choro, sinto tristeza... sua ausência é para mim ainda incompreensível e
resultado de uma perversão. Afinal, filhos não deveriam morrer antes de seus pais.
Mas cada vez mais não temos como evitar isso, em um mundo transtornado, cujos
valores se vão com enorme intensidade precipício abaixo. Doenças como câncer e
leucemia, vírus, bactérias, pesticidas, guerras, esses dentre outros elementos
nocivos, aliados à própria perversão humana, seguem vitimando crianças em grau
insuportável. E, apesar de tudo isso, sinto alegria em alguns momentos, me
divirto, mantenho algumas esperanças, porque, como disse, sigo vivo em meio a
tudo isso. Só não perco a empatia, mesmo com a frustração por ver o mundo indo
em direção oposta a tudo o que sonhei. Eu até posso ser um pouco pessimista,
embora me julgue sendo realista, mas a geração de meu filho tem a obrigação de
ser otimista, ou de acreditar em um mundo diferente décadas adiante.
No silêncio que cerca a
sepultura de minha filha, tento ali me comunicar mentalmente, e nesses
pensamentos transmito as minhas sensações sobre o mundo, a falta que ela faz, e
fico ainda a imaginar como seriam nossas vidas com ela entre nós, hoje com 26
anos. Seguramente estaria ao lado daquelas pessoas que incansavelmente lutam
contra as injustiças sociais, pelos direitos das mulheres, se incorporando às
causas antirracistas e por um sistema social mais justo e menos desigual.
Sei que ela seria uma
guerreira, como a Mulan, personagem forte da história, ou do folclore, oriental
chinês. Em um dos últimos diálogos que travei com ela, ainda antes de ser
levada para a UTI, disse que ela era uma guerreira, e perguntei com qual
personagem ela se identificava: Mulan ou Pocahontas, filmes que havíamos
assistidos juntos. Ela escolheu Mulan. Até hoje vejo e revejo os filmes sobre a
Mulan, que eternizo nas lembranças que tenho dela.
Assim, essa rotina, e
esse diálogo imaginário com minha filha, persistirá enquanto eu estiver vivo.
Lá, onde seu corpo repousa, também estão sepultados meu pai e minha mãe. Também
é um sentimento de perda enorme, muitos de nós sabemos disso. Mas nada comparável
ao sentimento que ainda sinto, com um misto de revolta, pela morte de minha
filha.
A razão da revolta está
explícita no texto. Porque sempre considerei que são os filhos que devem
enterrar seus pais e mães, e não o contrário. Só que esse é um sentimento, que
nem sempre segue o destino que desejamos e muitas vezes não temos como evitar.
Encerro por aqui, mais
uma crônica que tem para mim um objetivo claro, amenizar as minhas angústias e
saudades de minha filha. Ana Carol está eternizada em nossas memórias, mas
merecia ter vivido por muito mais tempo do que viveu. Seguirei, portanto,
produzindo textos como esses, mesmo depois de tantos outros que já escrevi e se
encontra no meu livro e neste blog Gramática do Mundo. Blog este que foi
justamente criado para servir de anteparo, ou de catarse, ao sofrimento que se
impôs sobre nós desde sua morte.
13 de dezembro trará,
sempre, essas lembranças mais fortes. E os finais de ano, bem como as festas
que tradicionalmente festejávamos, jamais serão como eram nos tempos em que
Carol estava conosco. Se tornou um tempo frio e sombrio, que procuramos
alimentar de esperanças com a presença de nosso filho, de nossos parentes,
amigos e amigas. Mas nada será como antes.
Me resta seguir o lema
que adotei, e que intitula o meu blog: “Carpe diem quam minimum credula
postero!”[1]
Até que o amanhã não exista mais para mim.
[1] "Odes"
(I, 11.8) do poeta romano Horácio (65 - 8 AC): Carpe diem, quam minimum credula
póstero. (Aproveite o dia, confia o mínimo no amanhã).