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Vou ser duro nessa minha
análise crítica. Não propriamente sobre a conjuntura na Argentina, mas sobre
como as esquerdas latino-americanas têm se comportado diante das escolhas
políticas que precisaram encarar. Para saber como vamos lidar com esse
crescimento da influência, principalmente entre as massas populares, da extrema
direita, é preciso saber como e porque chegamos até esse ponto.
Alguma resposta precisa
ser dada. Não adianta ficar nos indignando com as escolhas que o povo faz, ou
como boa parte desse povo tem incorporado esse discurso fascista... ou
neo-fascista... ou neo-nazista... Afinal, vamos culpar aqueles que assimilaram
o discurso da extrema-direita apenas tratando-os como ignorantes e alienados?
Um rebanho de cegos seguidores de “mitos”, personagens ridículos de uma nova
forma de fazer política? Como os apelidaram os cientistas políticos: os
outsiders. É essa a explicação para todo esse turbilhão de alterações
conjunturais em sociedades radicalizadas politicamente?
Eu aprendi ao longo de
minha formação política, desde quando entrei na universidade como estudante, no
começo dos anos 1980, que a metodologia mais importante para a compreensão da
realidade é a dialética, criada por filósofos na antiguidade, e aperfeiçoada no
século XIX por Hegel e depois Marx e Engels. Por essa metodologia, e por essa
dimensão filosófica, compreendemos o quanto é fundamental entendermos as
contradições que governam nossas vidas, na natureza e na sociedade.
As contradições, o seu
choque a partir das lutas dos contrários, o conhecimento da realidade objetiva,
compreendendo as causas geradoras dos fatos, seus efeitos e as consequências,
nos possibilitam ter a dimensão da realidade objetiva e concreta.
Assim, podemos dizer que
não existe nenhum fato que não possa ser explicado a partir de suas causas
geradoras. Ele, esse fato, tem uma razão de existir. Não surge do nada, nem
podemos conceder ao acaso a condução do processo histórico. O que precisamos é
saber fazer uma análise concreta da realidade objetiva. Ponto!
Quero ser enfático em uma
questão, pois acredito que é consensual entre os que possuem ligações com a
esquerda: desde a virada dos anos 2000, mais especificamente a partir do ataque
às torres gêmeas, chegando ao ápice com a crise dos chamado “sub-primes” e da
especulação imobiliária nos EUA em 2008, como consequência da ganância que é o
motor do capitalismo, o mundo entrou em uma crise econômica sistêmica da qual
não se recuperou. De lá para cá o que vemos no planeta é uma forte disputa
geopolítica pelo controle da economia, com a disputa pela hegemonia entre
grandes potências, principalmente EUA e China. A Globalização mudou de lado,
foi demonizada por Donald Trump e defendida por Xi Jin Ping.
Ora, como a esquerda se
comportou desde a queda da União Soviética e da crise do chamado Socialismo
Real? Substituímos um discurso revolucionário, de questionamento das estruturas
do sistema capitalista, como altamente perversa a impulsionar uma vergonhosa
desigualdade social, pela disputa eleitoral através dos caminhos da chamada
“democracia ocidental”. A fim de atingir o poder político, assumir o controle
político e comandar os destinos do nosso país. Assim como também passou a
acontecer em outros países.
E deu certo, no aspecto
político. Houve uma onda de eleições de lideranças de esquerda assumindo
governos na América Latina e em outras partes do mundo. Até mesmo Barak Obama
entrou nessa conta. Embora muito do que ele prometeu não foi cumprido. Mas ele
foi importante, como os demais governos de esquerda em um aspecto: fez
despertar com bastante força a luta identitária, antirracista e do
empoderamento das mulheres. Questões importantes, a reforçar a necessária luta
dos direitos humanos.
Acontece que o
capitalismo não se movimenta por esses caminhos. O que determina a sua essência
são as questões econômicas, a base, ou a infraestrutura que constrói todo o
arcabouço do sistema. Inclusive no aspecto do sucesso ou fracasso de um
determinado governo, seja à direita ou à esquerda.
Então precisamos separar três
aspectos. O econômico, o político e o social. Quando é possível a um grupo
político alcançar sucesso na democracia? Quando há um fracasso econômico no
comando do Estado, levando a que a população passe a ter descrédito por aquele
grupo partidário ou ideológico que está à frente do governo. Assim aconteceu
por muito tempo, quando levantamos a bandeira anticapitalista, em defesa de um
sistema mais justo socialmente, e contra as estruturas construídas dentro da
lógica sistêmica capitalista. Bem como no ataque forte e ideológico contra as
classes que comandavam, e comandam, o poder econômico seja com as grandes
corporações, bancos e indústrias, a burguesia urbana; e contra o grande
latifúndio, produtor de monocultura para exportação, perfidamente
concentracionista. Passamos a combater cada vez mais o rentismo e o latifúndio.
E a esquerda cresceu, à medida em que a crise econômica capitalista se
intensificava.
Ora, com o poder político
na mão, e o controle do governo seja na federação ou em estados importantes, o
que coube a esquerda fazer? Aí podemos usar de forma ilustrativa a metáfora do
cachorro que corre atrás dos carros exibindo os dentes para os pneus. Mas o que
fazer quando esses veículos param? Não tem o que fazer. Ou pouco há para fazer.
Talvez eu esteja sendo
bastante duro, até mesmo nessa comparação. Tudo bem. Mantenho o meu raciocínio.
Vamos debater a questão, caso alguém se disponha. Por muito tempo esbravejamos
contra o caráter desigual, perverso e concentrador de riquezas do capitalismo,
e por isso a esquerda angariou um número cada vez maior de simpatizantes,
socialistas ou não. Essas pessoas, através do discurso da esquerda,
compreendiam a perversão na lógica sistêmica capitalista.
No entanto, o que se
ofereceu para essa massa? O discurso do social, dos direitos humanos, de gênero
e do antirracismo. Todas as questões absolutamente importantes numa sociedade
desigual e preconceituosa. Mas e quanto às críticas feitas ao caráter perverso,
desigual e concentrador do capitalismo? Ou às mudanças na economia que
possibilitaria uma melhoria nas condições de vida das pessoas, que veriam não
mais o paraíso nos céus, mas a garantia de vida digna na terra?
Deixou-se de lado o
discurso antissistema e se passou à absoluta ineficaz tarefa de salvar o
capitalismo, ou de pelo menos tentar moderar suas perversões. E, no controle do
Estado, a difícil tarefa de lidar com contradições que impunham a necessária
subserviência de seus governos aos poderes dos senhores locais, personagens
corruptos que por décadas dominam a política passando a herança de suas
riquezas e de suas influências políticas para filhos e filhas.
As oligarquias agrárias
regionais só se fortaleceram. E passamos a mudar a nomenclatura da luta contra
esses segmentos. Deixamos de nominá-los de latifundiários para nos referirmos a
agronegócio. Isso é como deixar de classificar os venenos que se espalham pelas
produções como agrotóxicos e passar a chamá-los de “defensivos agrícolas”. Esse
foi um dos erros, porque o “agro virou pop”, e se tornou a alavanca do PIB
nacional. E os fazendeiros latifundiários prosseguiram ampliando seu poder e
grilando cada vez mais terras.
Amenizamos as críticas
aos bancos, porque eles passaram a ser parceiros importantes em muitos
programas e políticas de governos. E se adequaram bem ao discurso de
“investimento no social”. A burguesia migrou fortemente para o rentismo e a
indústria brasileira foi indo ladeira abaixo, escorada no investimento
estrangeiro em novas fontes de tecnologias que, por óbvio, expulsou milhões de
pessoas de seus empregos. E lá se vai aumento na concentração de riquezas e de
renda.
Fomos perdendo
gradativamente nossos discursos revolucionário, à medida em que se percebia a
possibilidade de ascensão ao poder, mediante a participação no processo
eleitoral. E isso aconteceu, e foi se espalhando.
Mas sem nenhuma mudança
no caráter desigual da estrutura do sistema, já em meio a uma crise forte,
oriunda de uma globalização fracassada. Os Estados se fragilizaram salvando
corporações financeiras, e até mesmo grandes fábricas automobilísticas, e o desemprego
foi se espalhando cada vez mais. Ao mesmo tempo, o parlamento majoritariamente
conservador insistia em cortar direitos dos trabalhadores, seja no tocante ao
trabalho, como na questão previdenciária.
E a esquerda no Poder. Em
meio à crise econômica e tentando geri-la. Pois, claro, é papel de quem está no
governo. Sendo assim, de pedra nos tornamos vidraças. As pessoas, que
acreditaram no discurso da construção de uma nova sociedade, de redução das desigualdades,
tornaram-se revoltadas, ressentidas, desesperançadas e fragilizadas em suas
condições sociais. Frustradas em suas melhores expectativas de passarem a viver
com dignidade.
Isso aconteceu por um
tempo, para boa parte da população, por meio de programas sociais importantes,
que amenizaram as condições péssimas de vida de dezenas de milhões de pessoas.
Mas isso não foi sustentável. Simplesmente porque não é somente sair da miséria
para a pobreza que contenta as pessoas no capitalismo. Pior ainda é uma classe
média não ser saciada em sua expectativa de chegar ao topo da pirâmide social.
Naturalmente ela se radicaliza e joga por terra todo o apoio concedido, se suas
expectativas não são atendias.
O que temos assistido neste
século é um fracasso econômico dos estados na tentativa de salvar um sistema
moribundo, mas que mantém as classes dominantes cada vez mais ricas, no limite
de suas vergonhosas contradições, pois isso se dá com um aumento crescente do
endividamento da maioria da população. Diante disso, e da impossibilidade de
apresentar aquilo que foi oferecido por décadas, de a esquerda assumir o poder
para combater a desigualdade que o capitalismo impunha, o que restou aos
governos progressistas foi elevar o tom na defesa de questões sociais, radicalizando
na defesa de legislações e políticas que pelo menos amenizasse o sofrimento de
boa parte da população, sujeita a preconceitos os mais perversos possíveis.
Só que isso despertou,
por outro lado, uma extrema-direita que vivia nos porões da política, sem até
então nenhum tipo de protagonismo que a colocasse como alternativa ao poder,
sempre disputado entre a esquerda, centro e centro-esquerda no espectro político
brasileiro, desde a redemocratização do país. Aliou-se ao fundamentalismo
evangélico e ao movimento conservador católico carismático, alguns pastores se
tornaram parlamentares e construíram um forte movimento dentro e fora do
Congresso Nacional, passando a influenciar os rumos da política institucional e
a liderar uma malta de pessoas desiludidas, fracassadas e assustadas com a
falta de perspectiva e insegurança crescente. Foi fácil arrastar essa turba
para engrossar a pauta da extrema-direita, juntando a alta burguesia, os
latifundiários e os movimentos religiosos conservadores.
Por outro lado, foi instrumentalizado
todo um aparato midiático tradicional e oficial, na defesa dos interesses das
camadas dominantes, e uma onda de influenciadores religiosos e outros
personagens oportunistas, a fim de desconstruir todo o discurso da esquerda na
defesa de um sistema alternativo ao capitalismo. E, mediante a acusação de
corrupção (sempre um risco para quem controla o estado) e de usar as
instituições para o interesse ideológico, construindo uma falsa narrativa de
guerra cultural, disseminando entre a população dúvida e raiva.
A partir de todo esse
movimento, e enquanto a esquerda se enrolava tentando gerenciar a crise do
estado capitalista, a extrema-direita ergueu o discurso de “anti-sistema”. Numa
postura absolutamente hipócrita, porque esse segmento se coloca contra as
estruturas políticas e a democracia (embora defensores do autoritarismo e das
ditaduras), não contra o sistema capitalista. Mas é uma dubiedade que confunde
pessoas que não possuem discernimento suficiente para compreender a dimensão de
cada significado desses objetivos. E o discurso “antissistêmico” da
extrema-direita passou a envolver principalmente quem por muito tempo era os
pilares dos discursos revolucionários: a juventude. Isso foi muito marcante na
Argentina, mas também aqui no Brasil.
Mesclando o discurso
forte, antissistema, com a pauta conservadora dos costumes, na contraposição às
lutas encampadas pela esquerda, e tornada praticamente a principal bandeira de
suas ações, a extrema-direita passou a se fortalecer, e, a construir um forte
discurso reacionário, na defesa de questões que se imaginava estarem
resolvidas, a ponto de surgirem personagens defendendo a aberrações de governos
ditatoriais militares. E isso sendo aceito e disseminado na sociedade, desde o
topo à base da pirâmide social.
Nessas circunstâncias,
não criadas pelas esquerdas, mas pela tentativa de se adaptar-se a elas e
amenizar a crise (condição natural para quem assume governo em um Estado
capitalista) a extrema direita foi acuando cada vez mais os setores
progressistas e a apresentar os mais diabólicos e extremistas personagens, com
discursos claramente fascistas, eivados de todos os tipos de preconceitos e
fortemente violentos.
Isso levou os setores
conservadores a construírem uma base parlamentar enorme, como nunca se viu na
política brasileira, e a ganharem eleições nos estados e no governo brasileiro,
mas não somente por aqui. Isso já vinha acontecendo pela Europa (Itália,
Polônia, Hungria, Grécia...), nos Estados Unidos, e em boa parte da América
Latina, até chegar ao mais novo energúmeno a ser alçado à condição de
presidente: o histriônico Milei, agora eleito presidente da Argentina, a meu
ver, sem muita surpresa. Porque tudo isso que relatei anteriormente, embora com
foco no Brasil, aconteceu também na Argentina. E ainda vai acontecer em
diversos outros países, enquanto a esquerda não voltar a ter um discurso forte,
verdadeiramente contra o sistema capitalista, e apontando objetivamente
alternativas a essas estruturas perversas que existem.
Não estou apresentando
nenhuma receita, e sei que essa é a parte mais difícil. Mas só sai de uma
enrascada tentando entender como se chegou a ela. E se me prolonguei nessa abordagem, falando o
que pra mim por todo esse tempo sempre foi o óbvio (e já escrevi muito sobre
isso neste blog), é para dizer que não há surpresa nenhuma no que está
acontecendo. A esquerda precisa mudar a estratégia. Como a extrema-direita fez.
Para retomar um discurso que já se fazia até as datas iniciais deste século. Ou
seja, naquele momento em que as pessoas começaram a acreditar nos discursos e
eleger partidos de esquerda para os governos, como consequência da crise
sistêmica capitalista.
Não estou sugerindo que
se esqueçam bandeiras importantes na luta pelos direitos humanos, nas questões
de gêneros ou antirracistas. Mas essas não podem se constituir em embates
radicalizados, de importância maior do que aquelas que nos mostrem, de forma
geral, quais são as raízes de todos esses males que nos consomem. É necessário
que saiamos da especificidade e retomemos bandeiras gerais, de fato antissistêmicas,
num enfrentamento ideológico claro, de forma a contribuir com a formação
política e intelectual das camada oprimidas, no objetivo daquilo que sempre nos
miramos, mesmo que numa esperança utópica, da construção de um sistema mais
justo e menos desigual. Apontar as mazelas do capitalismo, mesmo para quem é
parlamentar ou está em um governo, deve ser o objetivo de quem se elegeu criando
expectativas e estimulando sonhos dos desfavorecidos socialmente, e de uma
classe média que por muito tempo apostou nas pautas dos partidos de esquerda.
O combate à pobreza e à
desigualdade social não pode ser travado sem deixar claro que essas condições
são criadas por um sistema injusto, escorado na ganância e na usura. Só assim
poderemos nos livrar dos Bolsonaros e dos Mileis, que podem se multiplicar,
caso a esquerda não seja convincente na apresentação de alternativas ao sistema
capitalista. E é preciso deixar claro que a extrema-direita não é, nem nunca
foi, antissistema. Mas usa de um discurso escorado na falsa e hipócrita defesa
de costumes, apoiando-se no medo que se dissemina na maneira como se dá essa
comunicação, por meio da religião, embora também reflexo da crise: fragilidade,
ignorância, medo e ressentimento, alimentam a extrema-direita e faz ressurgir a
sombra do fascismo.
É difícil reverter isso?
É. Mais difícil, no entanto, está sendo viver nessa conjuntura política e nessa
crise estrutural sistêmica. E enquanto eu escrevia esse texto me deparei com o
mais novo trabalho sobre as desigualdades sociais, refletidas no Relatório da Oxfam
sobre o consumo dos 1% mais ricos, escandalosamente maior do que os 99%
restante. E que “Em 2030, as emissões do 1% mais rico do mundo deverá ser 22
vezes superior ao limite seguro de emissões permitidas”.
Ou seja, não há salvação para a humanidade enquanto perdurar essa lógica que movimenta expansivamente o sistema capitalista. É dever da esquerda retomar seu discurso e sua prática revolucionária antissistêmica. Refazer a utopia, e fazer as pessoas sonharem novamente com um outro mundo, sem essa lógica perversa e desigual que o capitalismo impõe. Antes que seja tarde.
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* Esse artigo foi produzido, com algumas alterações, a partir de um vídeo publicado no Canal do YouTube @ROMUCAPESSOA: https://youtu.be/bEA-2vFPzik
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