quinta-feira, 24 de junho de 2010

PARA SEMPRE NA MEMÓRIA

Hoje, 24 de junho, completam-se 9 anos da morte de meu pai. Foi em seu velório, entre meio à dor que eu sentia, que fiquei sabendo da morte de outro baiano ilustre, na mesma data. Este um conhecido cidadão do mundo: Milton Santos. Na época escrevi um artigo, publicado inclusive no Jornal A Tarde, de Salvador homenageando-os. Depois inseri o texto, com alguns reparos no Boletim Goiano de Geografia, Vol. 21, n. 1, pág. .(http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/viewFile/4205/3681).

Repito a homenagem neste blog, incluindo trechos do mesmo. Um pouco longo, mesmo resumido, mas se o leitor chegar ao final verá, em seu último parágrafo, um sentimento sobre a morte escrito antes que minha filha também partisse. Ainda não consegui chegar ao estágio daquilo que ali escrevi. Mas sigo tentando.

DOIS BAIANOS: DO LUGAR E DO MUNDO


Conheci Milton Santos, em 1996 no Simpósio realizado na USP em sua homenagem: “O mundo do cidadão - cidadão do mundo”. Tempo suficiente para aprender a respeitá-lo e admirá-lo, e a me tornar leitor ardoroso de seus textos e livros.

O lugar, o território, o espaço, a paisagem, as cidades, o urbano e o rural; a cultura, as tradições, enfim a busca de conhecimentos não mecanicamente estabelecidos, mas numa interação dialética que aponta claramente as relações entre o planeta e a sociedade, visualizando as “heranças sociais materiais e o presente social” (Santos, Milton. Território e Sociedade. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2000. Pág. 26) Sem se limitar, contudo, à simples constatação de uma determinada realidade, mas procurando soluções que dêem conta de resolver os problemas da imensa maioria da população.

Ninguém melhor do que Milton Santos soube compreender o momento da Geografia, direcionando seus olhares para o fazer, na maneira como o homem no presente constrói o seu futuro sobre os restos do passado. Vendo nas técnicas, e em seus usos, as respostas para o entendimento das complexas relações sociais, como “um dado fundamental da explicação histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos os lugares”. (Santos, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994. Pág. 67) Mas, mesmo com tais considerações, ele via a vida “não como um produto da técnica, mas da política, a ação que dá sentido à materialidade” ( Idem, Pág. 39)



Acreditando na força do pobre e do lugar, Milton Santos enfatizava, utilizando-se de uma expressão da professora Maria Adélia de Souza, que “todos os lugares são virtualmente mundiais”, (Santos, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Pág. 252) o próprio sentido da globalidade corresponderia a uma maior individualidade, e nessa relação unicidade-totalidade acreditava que tornava-se necessário encontrar os novos significados do mundo atual redescobrindo o lugar.

Aos pobres ele concedia a primazia de situar-se num ponto de intersecção com o futuro. Acreditava que o distanciamento ao totalitarismo da racionalidade transformava as imagens do conforto, da modernidade tecnológica, em miragens para aqueles que por não estarem inseridos nessa aceleração contemporânea, nesse mundo da profusão de sempre novos objetos, eram por ele caracterizados como “homens lentos”. E por assim ser, por escaparem dessa ventura vedada aos ricos e às classes médias, é que os pobres podem esquadrinhar as cidades e ver na diversidade a necessidade de transformação.


Como afirmou o geógrafo e ex-presidente da SBPC, Aziz Ab’Saber, Milton Santos foi um filósofo da Geografia. Procurou incorporar a crítica aos seus estudos geográficos num crescente resgate da concepção humanista, fundamentada na dialética marxista e no existencialismo sartriano. E assim, ele se impôs perante a Geografia mundial, e no Brasil se tornou um dos mais citados intelectuais do momento. Para confirmar a exceção, numa regra caracterizada pela formação cultural dominada por uma elite branca e “estrangeirizada”, a sua cor negra não foi barreira para que se consolidasse como uma das vozes altissonantes da universidade brasileira, e de nossa cultura de uma maneira geral. Autoridade que lhe permitia, inclusive, cobrar coerência de seus colegas de Academia, e a ser duro nas críticas à apatia em que vivia a universidade.

No seu último escrito, um artigo publicado pelo jornal Correio Braziliense, afirma que “por definição, vida intelectual e recusa a assumir idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre os verdadeiros intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou não querem mostrar, à luz do dia, o que pensam. (...) A apatia ainda está presente na maior parte do corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada animador do estado de saúde cívico dessa camada social cuja primeira obrigação é constituir, como porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com os rumos atuais da vida pública” (Correio Braziliense, 03 de junho de 2001)

Milton Santos faleceu no mesmo dia que meu pai, Romualdo Pessoa Campos, também baiano, vereador por 16 anos pelo PTB, na cidade de Alagoinhas, e por cinco vezes secretário do legislativo daquela cidade, até ser preso após o golpe militar, em 1964, e ter desistido da política, tornando-se funcionário público do DNER até se aposentar. A altivez e o orgulho pelo seu trabalho alimentavam uma esperança de que o nosso país desse certo pelo esforço de cada um, como ele fazia.

24 de junho, dia de São João, tão lembrado pelos nordestinos. Um dia para ficar para sempre guardado na minha memória.

Um, cidadão do lugar, incorporado na força dos lentos, baiano do interior, embora quase anônimo me alimentou o orgulho de ser seu homônimo. O outro, também baiano, cidadão do mundo, esgrimindo na força de seus argumentos, de suas criações e elaborações intelectuais a esperança de outro mundo, de outra globalização. E a morte, a igualá-los na eternidade do meu pensamento, na afinidade dos meus sonhos, na consolidação das minhas crenças, e na afirmação das certezas de que embora curta a nossa vida nessa imensidão de tempo que gesta e desenvolve a humanidade, vale a pena lutar, mesmo sendo ela, a morte, a única certeza do porvir. Mas ela não deve nos desanimar, e sim nos reconfortar, na medida em que escapemos da nossa individualidade e possamos transferir nossos sentimentos humanistas para a construção de uma utopia, sem a qual a nossa existência não teria sentido.

Um comentário:

  1. Prezado colega, relembrando aquele que foi meu e seu inspirador no sentido de se fazer uma geográfia cidadã, deparei-me com seu texto sublime que presta tão digna homenagem ao grande mestre de todos os brasileiros. Nosso eterno Milton Santos. Como é gratificante saber que meu amado geógrafo continua vivo, inspirando e instigando corações e mentes daqueles que como ele procuram ser um intelectual público. Forte abraço e mais uma vez obrigado pelo brilhante texto.

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