terça-feira, 28 de abril de 2020

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI E COMO SERÁ O MUNDO PÓS-PANDEMIA?


Embora nos sintamos permanentemente instados a construir cenários sobre o que pode vir a acontecer no pós-pandemia, como estudioso da Geopolítica sinto que é necessário evitar precipitações. É bem verdade que podemos montar diversos cenários, sem querer até mesmo criar expectativas que haja 100% de acerto. O que nunca é possível. Mas uma criteriosa observação sobre o que tem acontecido no mundo, nos permite ver que há distinções na maneira como cada país, e dentro deles, cada região, tem se comportado no tratamento da Covid19.
Isso nos permite também deduzir que não está descartado uma segunda onda epidêmica, naqueles países que não souberem criar as condições para retomar as atividades normais pós-quarentena. Imagino ser necessário aguardar até o segundo semestre deste ano para podermos compreender melhor como as governanças globais, e cada governo em particular, vão se preparar para reconstruir nações devastadas, economicamente e psicologicamente. Certamente no decorrer desse artigo eu vá me contradizer, e aponte alguns elementos que, em minha opinião, comporão os novos cenários que definirão o que nos acostumamos a chamar de futuro.
Em outras oportunidades já escrevi aqui nesse blog textos que tinha como objetivo extrair de dentro de mim angústias que me acompanhavam, e ainda me acompanham. Naturalmente cada um de nós carregamos sentimentos angustiantes e lidamos com situações próximas ou distantes de nós que nos levam a rever nossos comportamentos e como vivemos até aquele momento em que um trauma, ou acontecimento impactante, nos afetou, ou a sociedade.
Esse momento em que vivemos, marcado por uma pandemia causada por um vírus que se tenta conhecer ainda, e que por isso inexiste medicamentos e vacina para lidar com a doença que ele causa, os traumas serão pessoais e coletivos. No âmbito de famílias, de grupos de amizades e das sociedades. São formas de se relacionar, de afetos e de comportamentos, que necessariamente pelas condições ainda indefinidas que persistirão enquanto não for possível conter esse vírus, irão transformar nossas condições sociais e a interatividade que construímos na forma de viver em sociedade.
Mas isso pode, e deve, nos possibilitar se não construir cenários que apontem como serão as sociedades em um futuro incerto, pelo menos questionar as formas de relacionamentos que construímos até aqui, e que geraram distorções por todo o mundo, entre nações e dentro de cada país, entre pessoas que se situam em condições absurdamente desiguais. E para isso é preciso em primeiro lugar parar de viver para um futuro que não somente é incerto, como inexiste.

UM MODELO DE SOCIEDADE CONSUMISTA E DESIGUAL

O modelo de sociedade, consumista e individualista, construído pela burguesia, em seu interesse ganancioso e usurário, gerou distorções criminosas. No entanto, essas distorções foram naturalizadas por outros elementos que vão além das condições materiais de existência das pessoas. São as ideias, crenças, concepções filosóficas e políticas, construídas no sentido de acomodar as pessoas, e fazerem com que elas aceitem desigualdades sociais impressionantes. Na medida em que os estados-nações foram sendo estruturados, o seu aparato ideológico também foi construído, e suas ideias e elaborações intelectuais foram sendo geradas para criar na sociedade a aceitação das diferenças. Formas de controles também foram sendo criadas, envolvendo escolas, igrejas, aparatos jurídicos, estruturas repressivas, a fim de manter as pessoas submetidas à lógicas que as condicionavam na aceitação de um sistema perverso e concentracionista, com a acumulação da riqueza em mãos de um percentual mínimo de pessoas. Cerca de 1% da população controla mais de 80% da riqueza.
O modelo de democracia inverteu a lógica determinada desde a antiguidade, em suas origens, que a definia como geradora de formas de governos que atendessem os interesses da maioria. Se disseminou princípios que caracterizava a democracia de forma simplificada, determinando que esse seria um regime definido por processos eleitorais, onde cidadãos teriam direito a escolher seus dirigentes. Nada mais falso. Construiu-se modelos de democracia que sucessivamente, desde que a burguesia assumiu o controle dos meios de produção e da riqueza, sempre elevou e manteve no Poder seus representantes diretos ou indivíduos que se corrompiam numa estrutura viciada, definida claramente para que não houvesse nenhuma possibilidade de alteração na ordem vigente. De valores democráticos falsos, onde o voto sempre foi definido pela manipulação e os eleitos jamais representaram estatisticamente o perfil da sociedade.
Para manter as pessoas submissas decantava-se mantras criados ideologicamente, mas estranhamente jamais vistos como sendo construções ideológicas. Ideologia passou a representar apenas aquilo que se contrapunha a esse formato de sociedade e a esse modelo de democracia. As notícias apresentadas pela imprensa, os cultos e celebrações religiosas, a cultura e suas representações burguesas, tudo isso, e muito mais, nunca foram vistos como formas por onde a ideologia dominante sempre penetraram e conformaram a maneira de viver das pessoas. Suas aceitações da miséria e a passividade diante dela se justificavam à espera de milagres ou que pela fé essa situação pudesse se reverter. Jamais essas pessoas inserem em seus objetivos lutar para destituir do poder os que lhes oprimem e reverter um modelo de sociedade profundamente desigual e absurdamente injusta.
Qualquer tentativa de construir cenários pós-pandemia necessariamente tem que levar em conta a maneira como essas pessoas se comportam e aceitam seus “sacrifícios”, pretensamente definidas por uma divindade que define os seus eleitos, a partir da dimensão de sua fé.
Lendo a história da rebelião dos escravos, antes da era cristã, no ótimo livro de Howard Fast,[i] construo o raciocínio (embora historiador não deva trabalhar com suposições, mas o faço para justificar meus argumentos) que Jesus se tornou a liderança que alimentou um exército de seguidores, de crescimento exponencial, porque um século antes dele despontar, Spartacus foi derrotado. A rebelião espetacular que levantou centenas de milhares de escravos e foi a duras custas derrotada pelo poderio romano, poderia ter alterado os rumos da humanidade. Mas, da necessidade de se libertar pela força de suas lutas e no enfrentamento com os opressores, em busca da liberdade, prevaleceu após a crucificação de Spartacus um outro caminho. Tempos depois a ideologia pregada, embora na defesa dos fracos e oprimidos, definia-se que se devia “dar a César o que é de César”, ou que era preciso oferecer a outra face ao ser agredido, em vez de reagir na mesma dimensão.[ii]
A história vai demonstrar como se deu o transcurso do tempo em que essa ideologia se impôs, após ser absorvida pelos imperadores, que espertamente se converteram ao cristianismo e impuseram a obrigatoriedade de que todos os seus súditos também o fizessem. Assim, de uma filosofia libertária, embora defensora da reação pacífica, o cristianismo se transformou em religião oficial com a decadência do Império Romano, momento em que as religiões politeístas e as divindades pagãs foram atacadas e destruídas. Dominou a Idade Média de forma contundente, controlando por meio de disciplinas rígidas e pelo medo uma população que vivia em situação caótica e desprovida de proteção de mecanismos estatais, até se ver em meio a uma forte disputa que se transformou em um grande cisma, dividindo-se em cristãos católicos e evangélicos.

A IDEOLOGIA CRISTÃ E A ACOMODAÇÃO SOCIAL

A ideologia cristã evangélica, foi representada a partir da elaboração de teses que foram afixadas às portas das igrejas católicas, confrontando o poder abusivo, a corrupção e o enriquecimento do alto clero católico. Ao enfraquecer o poder da igreja com esses ataques, e com a divisão que se concretizou, Martinho Lutero construiu outro caminho para os que queriam crer no deus cristão sem o controle de um alto clero corrompido. Mas esse outro caminho também se deparou com essas vaidades e com a submissão ao poder da nobreza. Lutero se aliou aos príncipes alemães na primeira revolta que despontou, com os camponeses à frente lutando contra a opressão em que viviam. Na guerra que se seguiu ele ficou ao lado dos príncipes, defendendo que os camponeses deveriam ser eliminados como cães.
Mas se deu nesse momento o começo da divisão que não pararia mais, e só cresceria entre essa nova vertente do cristianismo. Thomas Munzer rompe com Lutero e torna-se ferrenho defensor das revoltas camponesas, a liderando inclusive. Dessa divisão surgiu os anabatistas, em contraposição ao luteranismo. Logo depois João Calvino se integrou nesse movimento disseminando pela Europa valores que passaram a ser incorporados pela burguesia emergente e que nortearam os princípios do capitalismo. Principalmente porque não via pecado na acumulação de riqueza, mas desígnio divino, e que os ricos não deveriam se envergonhar dessa condição, estando aos demais se esforçarem pelo trabalho para ascenderem socialmente. A fé seria o mecanismo pelo qual cada um deveria entregar-se à adoração cristã, e os que conseguissem sucesso isso se deveria ao esforço individual e à escolha feita por Deus.
Figura que representou o Destino
Manifesto - Séc. XIX
A partir desse movimento inicial o protestantismo se espalhou por toda a Europa, dando origem a um grande número de outras correntes cristãs de origem evangélica. A crise econômica no Reino Unido, gerado pela segunda onda da peste bubônica, no século XVII, e após o grande incêndio que devastou Londres, acentuou as diferenças entre algumas dessas correntes. A dominante na Inglaterra era a Anglicana, criada praticamente como uma religião de Estado, em função do rompimento de Henrique VIII com o catolicismo, por questões de fórum íntimo. Boa parte da população pobre foi enviada para a América, em navios bancados pelo governo britânico.
Como resultado desse processo vamos ver a disseminação pela América, a partir dos EUA da influência de novas correntes, minoritárias na Europa, mas que irão se consolidar no continente americano: pentecostais, adventistas, mórmons, testemunhas de Jeová, metodistas, batistas e puritanos, dentre outras denominações religiosas, que se expandiram e constituíram um forte poder nacional com o chamado “Destino Manifesto”, pelo qual esse país estava designado por Deus para comandar o destino da América . E a partir do final do século XX, a influência crescente dos neopentecostais, inflados estrategicamente no interesse dos EUA em combater a teologia da libertação e o movimento de forte penetração popular exercido pelas comunidades eclesiais de base.[iii]
A Igreja Católica se refez do cisma que gerou o protestantismo e a enfraqueceu, pelo menos em termos quantitativos de seguidores, por alguns países europeus. Manteve sua influência na Itália, Espanha e Portugal. Na Grécia e Rússia uma nova divisão gerou a Igreja Católica Ortodoxa. Mas o movimento que levou ao seu ressurgimento foi escorado em linhas de caráter contemplativo e de rejeição à riqueza. Cumpriu papel importante as correntes franciscanas e os jesuítas, que comungavam praticamente dos mesmos valores. E foram essas correntes católicas, inspiradas na veneração à pobreza por Francisco de Assis, e no caráter missionário da Companhia de Jesus, que se deu a maior influência no que se denominou chamar de Novo Mundo: a América. Embora na última década tenha vigorado um pensamento católico conservador, com o fortalecimento de segmentos que usam práticas semelhantes aos evangélicos, como a corrente mais forte nesse aspecto, a carismática, e outros ultraconservadores a ponto de se oporem a certas ações do próprio papa Francisco, que tem adotado discursos que se contrapõem à lógica gananciosa capitalista.
Enfim, qualquer discussão sobre ideologia não pode menosprezar esses movimentos e como a história das religiões explicam a forma como foram se dando o processo de transformação das sociedades modernas. E podemos incluir nisso a influência e o crescimento exponencial do islamismo, na configuração das sociedades orientais, ou do hinduísmo e budismo em grandes populações asiáticas. Mas não é esse o caso, embora ilustre bem como as religiões se tornaram fatores de disseminação de ideologias que serão apropriadas pelos detentores do poder, notadamente por aqueles que avidamente disputavam as riquezas.
Ou seja, se quisermos compreender por quais caminhos, ou cenários, podemos seguir no pós-pandemia, o melhor que fazemos é olhar para o passado. “A história é um profeta com o olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será” (Eduardo Galeano). O que aconteceu em épocas passadas após situações de caos atingirem as sociedades? Sobre quais suportes as pessoas se sustentaram para superarem as adversidades? É essencial conhecermos esses processos, para nos ensinar como superar o momento crítico em que estamos.

UM MUNDO PÓS-PANDEMIA OU PÓS-CAPITALISMO?

Mas em direção a que futuro? O que temos hoje como presente pode ser visto como o futuro pensado lá atrás, em circunstâncias parecidas, de crise e de caos? Se chegamos até aqui, com uma sociedade desigual, com dois terços das pessoas vivendo em condições de pobreza e um desiquilíbrio social vergonhoso, foi porque a forma como saímos dessas crises não se fundamentaram em perspectivas que fossem solidárias e coletivistas.
O que podemos encontrar em um mundo devastado? Seja em temos de guerra, de grave crise econômica ou em meio a uma pandemia, cuja doença não pode ser contida por medicamentos? Desespero, medo, descontrole social, agonia e sofrimento. Esse cenário, que é o atual, nos leva em direção ao aprisionamento doutrinário que as religiões comandam. Não à toa que houve toda uma pressão para que as igrejas não fechassem durante a pandemia. Haverá a corrida na disputa pelos desesperados. E a fé, convenhamos, constitui-se em um bálsamo em meio a situações desesperadoras, de perdas de entes queridos e falta de perspectivas para as pessoas.
metropole.com
Por outro lado, aqueles que controlam os meios de produção e definem os caminhos por onde seguirá a economia, irão desesperadamente recuperar seu poder de riqueza. Já que não estão acostumados a ver escaparem por meio de seus dedos uma quantidade tão grande de ativos, de ações desvalorizadas e de redução de seus lucros. A fé no dinheiro soma-se aquela esbravejada nos templos, e conduzirão os rebanhos, em metáforas bíblicas, seus carneiros e ovelhas, sempre cordatos, pelos mesmos caminhos de aceitação das desgraças como desígnios divinos, tendo os sacrifícios como provação aos que têm fé. Como sempre, poucos serão os ungidos.
Evitar esse caminho não é fácil, mas é o cenário mais provável. Resta no entanto apostar na construção de meios que nos levem a romper com esses mecanismos, o que não necessariamente significa tornar-se ateus, mas reforçar o poder das comunidades, por alternativas solidárias e através da cooperação construir alternativas, que, inclusive, se contraponha a estrutura gananciosa de um sistema capitalista absolutamente perverso, e de combate a políticas perversas que obstruem qualquer caminho que não seja o determinado por uma lógica insana e individualista. Esse caminho inevitavelmente levará ao descontrole social.
É necessário tornar usual palavras como resiliência, solidariedade, comunidade, comum união. Se observarmos o comportamento deste governo que nos deixa apreensivos quanto ao que será o futuro desse país, veremos que suas ações se contrapõem ao que significam essas palavras. O atual presidente e seus seguidores, inclusive os que gritam dos púlpitos de templos acintosamente e estupidamente, de igrejas que pregam vidas em bolhas somente com aqueles que ali frequentam, possuem comportamentos centrados no ódio, no distanciamento da sociedade, na frieza dos relacionamentos e na insensibilidade com as pessoas mais vulneráveis. Por isso esse governo tem como estratégia principal a desunião. Não visa uma união nacional, não deseja o fortalecimento do país e o respeito à suas diferenças e diversidades.
O cenário mais provável do que virá pela frente não será muito diferente em termos ideológicos do que estamos deixando para trás. Poderá ser pior, porque em meio a um caos e uma enorme crise econômica, com milhões de desempregados, provavelmente com um percentual que chegará a um terço da população.
Como vejo o mundo hoje, e analiso o passado, me resta enfatizar a necessidade de buscarmos fortalecer os mecanismos que venham a aglutinar as pessoas vulneráveis, oprimidas, desempregados, enfim, principalmente aqueles que vivem nas periferias das grandes cidades. Em um forte movimento que garanta a essas pessoas terem à sua disposição entidades que lhes deem voz e a exigirem a presença do Estado em ações que lhes protejam, por direito. Para que possam lutar por esses direitos que mesmo antes da pandemia já estavam sendo destruídos e retirados. E a partir dessas organizações focar na busca por outro mundo, outra globalização, outra mundialização, em que a solidariedade, a cooperação e o bem comum, seja o objetivo alcançável, e que garanta à essas pessoas mesmo que em condições miseráveis de vida um sentimento de autoconfiança, de percepção da realidade e de possibilidade de adquirir capacidade crítica para compreenderem que o mundo em que vivemos é movido pela luta de classes. E somente sua organização e senso de comunidade garantirá conquistar esse novo mundo. Para além da pandemia do Covid19 e do capitalismo.



NOTAS:

[i] FAST, Howard. Spartacus. São Paulo: Círculo do Livro, 1979.
[ii] Aqui refiro-me à construção do mundo ocidental. O Império Romano do Oriente, e, principalmente após a sua queda, tomou outra direção e seguiu outros preceitos religiosos fundados no islamismo, cuja ideologia indicava reação diferente às agressões sofridas: olho por olho, dente por dente.
[iii] LIMA, Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1991.
Leitura complementar:
CAMPOS FILHO, R. (2020). A peste, a gripe espanhola e a covid19 – geografizando as pandemias pelo mundo. Élisée - Revista De Geografia Da UEG, 9(1), e912014. Recuperado de https://www.revista.ueg.br/index.php/elisee/article/view/10301

4 comentários:

  1. Li, gostei de sua aproximação otimista; principalmente pela configuração da solidariedade esperada! A história tem muito a contar. Grande abraço,

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  2. Li, gostei de sua aproximação otimista; principalmente pela configuração da solidariedade esperada! A história tem muito a contar. Grande abraço,

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  3. Li, gostei. Seu texto me inspira para as minhas intervenções que terei que fazer na minha campanha para vereador por Aparecida de Goiânia. Devo até fazer algumas citações do seu texto (sem dar o crédito devido).

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  4. Muito interessante o artigo, com a pandemia desestabilizando as economias e principalmente as emergentes me pergunto o que a sociedade aprendeu com ela! Acredito que o pós pandemia será desolador para os trabalhadores, minorias e vulneráveis...

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