Embora nos
sintamos permanentemente instados a construir cenários sobre o que pode vir a
acontecer no pós-pandemia, como estudioso da Geopolítica sinto que é necessário
evitar precipitações. É bem verdade que podemos montar diversos cenários, sem
querer até mesmo criar expectativas que haja 100% de acerto. O que nunca é
possível. Mas uma criteriosa observação sobre o que tem acontecido no mundo,
nos permite ver que há distinções na maneira como cada país, e dentro deles,
cada região, tem se comportado no tratamento da Covid19.
Isso nos permite
também deduzir que não está descartado uma segunda onda epidêmica, naqueles
países que não souberem criar as condições para retomar as atividades normais
pós-quarentena. Imagino ser necessário aguardar até o segundo semestre deste
ano para podermos compreender melhor como as governanças globais, e cada
governo em particular, vão se preparar para reconstruir nações devastadas, economicamente
e psicologicamente. Certamente no decorrer desse artigo eu vá me contradizer, e aponte
alguns elementos que, em minha opinião, comporão os novos cenários que
definirão o que nos acostumamos a chamar de futuro.
Em outras
oportunidades já escrevi aqui nesse blog textos que tinha como objetivo extrair
de dentro de mim angústias que me acompanhavam, e ainda me acompanham.
Naturalmente cada um de nós carregamos sentimentos angustiantes e lidamos com
situações próximas ou distantes de nós que nos levam a rever nossos
comportamentos e como vivemos até aquele momento em que um trauma, ou
acontecimento impactante, nos afetou, ou a sociedade.
Esse momento em
que vivemos, marcado por uma pandemia causada por um vírus que se tenta
conhecer ainda, e que por isso inexiste medicamentos e vacina para lidar com a
doença que ele causa, os traumas serão pessoais e coletivos. No âmbito de
famílias, de grupos de amizades e das sociedades. São formas de se relacionar,
de afetos e de comportamentos, que necessariamente pelas condições ainda
indefinidas que persistirão enquanto não for possível conter esse vírus, irão
transformar nossas condições sociais e a interatividade que construímos na
forma de viver em sociedade.
Mas isso pode, e
deve, nos possibilitar se não construir cenários que apontem como serão as
sociedades em um futuro incerto, pelo menos questionar as formas de
relacionamentos que construímos até aqui, e que geraram distorções por todo o
mundo, entre nações e dentro de cada país, entre pessoas que se situam em
condições absurdamente desiguais. E para isso é preciso em primeiro lugar parar
de viver para um futuro que não somente é incerto, como inexiste.
UM MODELO DE SOCIEDADE CONSUMISTA E DESIGUAL
UM MODELO DE SOCIEDADE CONSUMISTA E DESIGUAL
O modelo de
sociedade, consumista e individualista, construído pela burguesia, em seu
interesse ganancioso e usurário, gerou distorções criminosas. No entanto, essas
distorções foram naturalizadas por outros elementos que vão além das condições
materiais de existência das pessoas. São as ideias, crenças, concepções
filosóficas e políticas, construídas no sentido de acomodar as pessoas, e
fazerem com que elas aceitem desigualdades sociais impressionantes. Na medida em
que os estados-nações foram sendo estruturados, o seu aparato ideológico também
foi construído, e suas ideias e elaborações intelectuais foram sendo geradas
para criar na sociedade a aceitação das diferenças. Formas de controles também
foram sendo criadas, envolvendo escolas, igrejas, aparatos jurídicos,
estruturas repressivas, a fim de manter as pessoas submetidas à lógicas que as
condicionavam na aceitação de um sistema perverso e concentracionista, com a
acumulação da riqueza em mãos de um percentual mínimo de pessoas. Cerca de 1%
da população controla mais de 80% da riqueza.
O modelo de
democracia inverteu a lógica determinada desde a antiguidade, em suas origens,
que a definia como geradora de formas de governos que atendessem os interesses
da maioria. Se disseminou princípios que caracterizava a democracia de forma
simplificada, determinando que esse seria um regime definido por processos
eleitorais, onde cidadãos teriam direito a escolher seus dirigentes. Nada mais
falso. Construiu-se modelos de democracia que sucessivamente, desde que a
burguesia assumiu o controle dos meios de produção e da riqueza, sempre elevou
e manteve no Poder seus representantes diretos ou indivíduos que se corrompiam numa
estrutura viciada, definida claramente para que não houvesse nenhuma
possibilidade de alteração na ordem vigente. De valores democráticos falsos,
onde o voto sempre foi definido pela manipulação e os eleitos jamais
representaram estatisticamente o perfil da sociedade.
Para manter as
pessoas submissas decantava-se mantras criados ideologicamente, mas
estranhamente jamais vistos como sendo construções ideológicas. Ideologia
passou a representar apenas aquilo que se contrapunha a esse formato de
sociedade e a esse modelo de democracia. As notícias apresentadas pela
imprensa, os cultos e celebrações religiosas, a cultura e suas representações
burguesas, tudo isso, e muito mais, nunca foram vistos como formas por onde a
ideologia dominante sempre penetraram e conformaram a maneira de viver das
pessoas. Suas aceitações da miséria e a passividade diante dela se justificavam
à espera de milagres ou que pela fé essa situação pudesse se reverter. Jamais
essas pessoas inserem em seus objetivos lutar para destituir do poder os que lhes
oprimem e reverter um modelo de sociedade profundamente desigual e absurdamente
injusta.
Qualquer tentativa
de construir cenários pós-pandemia necessariamente tem que levar em conta a
maneira como essas pessoas se comportam e aceitam seus “sacrifícios”, pretensamente
definidas por uma divindade que define os seus eleitos, a partir da dimensão de
sua fé.
Lendo a história
da rebelião dos escravos, antes da era cristã, no ótimo livro de Howard Fast,[i] construo o raciocínio
(embora historiador não deva trabalhar com suposições, mas o faço para
justificar meus argumentos) que Jesus se tornou a liderança que alimentou um
exército de seguidores, de crescimento exponencial, porque um século antes dele
despontar, Spartacus foi derrotado. A rebelião espetacular que levantou
centenas de milhares de escravos e foi a duras custas derrotada pelo poderio
romano, poderia ter alterado os rumos da humanidade. Mas, da necessidade de se
libertar pela força de suas lutas e no enfrentamento com os opressores, em
busca da liberdade, prevaleceu após a crucificação de Spartacus um outro
caminho. Tempos depois a ideologia pregada, embora na defesa dos fracos e
oprimidos, definia-se que se devia “dar a César o que é de César”, ou que era
preciso oferecer a outra face ao ser agredido, em vez de reagir na mesma
dimensão.[ii]
A história vai
demonstrar como se deu o transcurso do tempo em que essa ideologia se impôs,
após ser absorvida pelos imperadores, que espertamente se converteram ao
cristianismo e impuseram a obrigatoriedade de que todos os seus súditos também
o fizessem. Assim, de uma filosofia libertária, embora defensora da reação
pacífica, o cristianismo se transformou em religião oficial com a decadência do
Império Romano, momento em que as religiões politeístas e as divindades pagãs
foram atacadas e destruídas. Dominou a Idade Média de forma contundente,
controlando por meio de disciplinas rígidas e pelo medo uma população que vivia
em situação caótica e desprovida de proteção de mecanismos estatais, até se ver
em meio a uma forte disputa que se transformou em um grande cisma, dividindo-se
em cristãos católicos e evangélicos.
A IDEOLOGIA CRISTÃ E A ACOMODAÇÃO SOCIAL
A ideologia cristã
evangélica, foi representada a partir da elaboração de teses que foram afixadas
às portas das igrejas católicas, confrontando o poder abusivo, a corrupção e o
enriquecimento do alto clero católico. Ao enfraquecer o poder da igreja com
esses ataques, e com a divisão que se concretizou, Martinho Lutero construiu
outro caminho para os que queriam crer no deus cristão sem o controle de um
alto clero corrompido. Mas esse outro caminho também se deparou com essas
vaidades e com a submissão ao poder da nobreza. Lutero se aliou aos príncipes
alemães na primeira revolta que despontou, com os camponeses à frente lutando
contra a opressão em que viviam. Na guerra que se seguiu ele ficou ao lado dos
príncipes, defendendo que os camponeses deveriam ser eliminados como cães.
Mas se deu nesse
momento o começo da divisão que não pararia mais, e só cresceria entre essa
nova vertente do cristianismo. Thomas Munzer rompe com Lutero e torna-se
ferrenho defensor das revoltas camponesas, a liderando inclusive. Dessa divisão
surgiu os anabatistas, em contraposição ao luteranismo. Logo depois João
Calvino se integrou nesse movimento disseminando pela Europa valores que
passaram a ser incorporados pela burguesia emergente e que nortearam os princípios
do capitalismo. Principalmente porque não via pecado na acumulação de riqueza,
mas desígnio divino, e que os ricos não deveriam se envergonhar dessa condição,
estando aos demais se esforçarem pelo trabalho para ascenderem socialmente. A
fé seria o mecanismo pelo qual cada um deveria entregar-se à adoração cristã,
e os que conseguissem sucesso isso se deveria ao esforço individual e à escolha
feita por Deus.
Figura que representou o Destino Manifesto - Séc. XIX |
A partir desse
movimento inicial o protestantismo se espalhou por toda a Europa, dando origem
a um grande número de outras correntes cristãs de origem evangélica. A crise
econômica no Reino Unido, gerado pela segunda onda da peste bubônica, no século
XVII, e após o grande incêndio que devastou Londres, acentuou as diferenças
entre algumas dessas correntes. A dominante na Inglaterra era a Anglicana,
criada praticamente como uma religião de Estado, em função do rompimento de
Henrique VIII com o catolicismo, por questões de fórum íntimo. Boa parte da
população pobre foi enviada para a América, em navios bancados pelo governo
britânico.
Como resultado
desse processo vamos ver a disseminação pela América, a partir dos EUA da
influência de novas correntes, minoritárias na Europa, mas que irão se
consolidar no continente americano: pentecostais, adventistas, mórmons, testemunhas
de Jeová, metodistas, batistas e puritanos, dentre outras denominações
religiosas, que se expandiram e constituíram um forte poder nacional com o
chamado “Destino Manifesto”, pelo qual esse país estava designado por Deus para
comandar o destino da América . E a partir do final do século XX, a influência
crescente dos neopentecostais, inflados estrategicamente no interesse dos EUA
em combater a teologia da libertação e o movimento de forte penetração popular
exercido pelas comunidades eclesiais de base.[iii]
A Igreja Católica
se refez do cisma que gerou o protestantismo e a enfraqueceu, pelo menos em
termos quantitativos de seguidores, por alguns países europeus. Manteve sua
influência na Itália, Espanha e Portugal. Na Grécia e Rússia uma nova
divisão gerou a Igreja Católica Ortodoxa. Mas o movimento que levou ao seu
ressurgimento foi escorado em linhas de caráter contemplativo e de rejeição à
riqueza. Cumpriu papel importante as correntes franciscanas e os jesuítas, que
comungavam praticamente dos mesmos valores. E foram essas correntes católicas,
inspiradas na veneração à pobreza por Francisco de Assis, e no caráter
missionário da Companhia de Jesus, que se deu a maior influência no que se
denominou chamar de Novo Mundo: a América. Embora na última década tenha
vigorado um pensamento católico conservador, com o fortalecimento de segmentos
que usam práticas semelhantes aos evangélicos, como a corrente mais forte nesse
aspecto, a carismática, e outros ultraconservadores
a ponto de se oporem a certas ações do próprio papa Francisco, que tem adotado
discursos que se contrapõem à lógica gananciosa capitalista.
Enfim, qualquer
discussão sobre ideologia não pode menosprezar esses movimentos e como a
história das religiões explicam a forma como foram se dando o processo de
transformação das sociedades modernas. E podemos incluir nisso a influência e o
crescimento exponencial do islamismo, na configuração das sociedades orientais,
ou do hinduísmo e budismo em grandes populações asiáticas. Mas não é esse o
caso, embora ilustre bem como as religiões se tornaram fatores de disseminação
de ideologias que serão apropriadas pelos detentores do poder, notadamente por
aqueles que avidamente disputavam as riquezas.
Ou seja, se
quisermos compreender por quais caminhos, ou cenários, podemos seguir no
pós-pandemia, o melhor que fazemos é olhar para o passado. “A história é um
profeta com o olhar voltado para trás. Pelo que foi e contra o que foi, anuncia
o que será” (Eduardo Galeano). O que aconteceu em épocas passadas após
situações de caos atingirem as sociedades? Sobre quais suportes as pessoas se
sustentaram para superarem as adversidades? É essencial conhecermos esses
processos, para nos ensinar como superar o momento crítico em que estamos.
UM MUNDO PÓS-PANDEMIA OU PÓS-CAPITALISMO?
Mas em direção a
que futuro? O que temos hoje como presente pode ser visto como o futuro pensado
lá atrás, em circunstâncias parecidas, de crise e de caos? Se chegamos até
aqui, com uma sociedade desigual, com dois terços das pessoas vivendo em
condições de pobreza e um desiquilíbrio social vergonhoso, foi porque a forma
como saímos dessas crises não se fundamentaram em perspectivas que fossem
solidárias e coletivistas.
O que podemos
encontrar em um mundo devastado? Seja em temos de guerra, de grave crise
econômica ou em meio a uma pandemia, cuja doença não pode ser contida por
medicamentos? Desespero, medo, descontrole social, agonia e sofrimento. Esse
cenário, que é o atual, nos leva em direção ao aprisionamento doutrinário que
as religiões comandam. Não à toa que houve toda uma pressão para que as igrejas não
fechassem durante a pandemia. Haverá a corrida na disputa pelos desesperados. E
a fé, convenhamos, constitui-se em um bálsamo em meio a situações
desesperadoras, de perdas de entes queridos e falta de perspectivas para as
pessoas.
metropole.com |
Por outro lado, aqueles
que controlam os meios de produção e definem os caminhos por onde seguirá a
economia, irão desesperadamente recuperar seu poder de riqueza. Já que não
estão acostumados a ver escaparem por meio de seus dedos uma quantidade tão
grande de ativos, de ações desvalorizadas e de redução de seus lucros. A fé no
dinheiro soma-se aquela esbravejada nos templos, e conduzirão os rebanhos, em
metáforas bíblicas, seus carneiros e ovelhas, sempre cordatos, pelos mesmos
caminhos de aceitação das desgraças como desígnios divinos, tendo os
sacrifícios como provação aos que têm fé. Como sempre, poucos serão os ungidos.
Evitar esse
caminho não é fácil, mas é o cenário mais provável. Resta no entanto apostar na
construção de meios que nos levem a romper com esses mecanismos, o que não
necessariamente significa tornar-se ateus, mas reforçar o poder das
comunidades, por alternativas solidárias e através da cooperação construir
alternativas, que, inclusive, se contraponha a estrutura gananciosa de um
sistema capitalista absolutamente perverso, e de combate a políticas perversas
que obstruem qualquer caminho que não seja o determinado por uma lógica insana
e individualista. Esse caminho inevitavelmente levará ao descontrole social.
É necessário
tornar usual palavras como resiliência, solidariedade, comunidade, comum união.
Se observarmos o comportamento deste governo que nos deixa apreensivos quanto
ao que será o futuro desse país, veremos que suas ações se contrapõem ao que
significam essas palavras. O atual presidente e seus seguidores, inclusive os
que gritam dos púlpitos de templos acintosamente e estupidamente, de igrejas
que pregam vidas em bolhas somente com aqueles que ali frequentam, possuem
comportamentos centrados no ódio, no distanciamento da sociedade, na frieza dos
relacionamentos e na insensibilidade com as pessoas mais vulneráveis. Por isso
esse governo tem como estratégia principal a desunião. Não visa uma união
nacional, não deseja o fortalecimento do país e o respeito à suas diferenças e
diversidades.
O cenário mais
provável do que virá pela frente não será muito diferente em termos ideológicos
do que estamos deixando para trás. Poderá ser pior, porque em meio a um caos e uma
enorme crise econômica, com milhões de desempregados, provavelmente com um
percentual que chegará a um terço da população.
Como vejo o mundo
hoje, e analiso o passado, me resta enfatizar a necessidade de buscarmos
fortalecer os mecanismos que venham a aglutinar as pessoas vulneráveis,
oprimidas, desempregados, enfim, principalmente aqueles que vivem nas
periferias das grandes cidades. Em um forte movimento que garanta a essas pessoas
terem à sua disposição entidades que lhes deem voz e a exigirem a presença do
Estado em ações que lhes protejam, por direito. Para que possam lutar por esses
direitos que mesmo antes da pandemia já estavam sendo destruídos e retirados. E
a partir dessas organizações focar na busca por outro mundo, outra
globalização, outra mundialização, em que a solidariedade, a cooperação e o bem
comum, seja o objetivo alcançável, e que garanta à essas pessoas mesmo que em
condições miseráveis de vida um sentimento de autoconfiança, de percepção da
realidade e de possibilidade de adquirir capacidade crítica para compreenderem
que o mundo em que vivemos é movido pela luta de classes. E somente sua
organização e senso de comunidade garantirá conquistar esse novo mundo. Para
além da pandemia do Covid19 e do capitalismo.
[ii]
Aqui refiro-me à construção do mundo ocidental. O Império Romano do Oriente, e,
principalmente após a sua queda, tomou outra direção e seguiu outros preceitos
religiosos fundados no islamismo, cuja ideologia indicava reação diferente às
agressões sofridas: olho por olho, dente por dente.
[iii]
LIMA, Décio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Editora
Francisco Alves, 1991.
Leitura complementar:
CAMPOS FILHO, R. (2020). A peste, a
gripe espanhola e a covid19 – geografizando as pandemias pelo mundo. Élisée -
Revista De Geografia Da UEG, 9(1), e912014. Recuperado de https://www.revista.ueg.br/index.php/elisee/article/view/10301
Li, gostei de sua aproximação otimista; principalmente pela configuração da solidariedade esperada! A história tem muito a contar. Grande abraço,
ResponderExcluirLi, gostei de sua aproximação otimista; principalmente pela configuração da solidariedade esperada! A história tem muito a contar. Grande abraço,
ResponderExcluirLi, gostei. Seu texto me inspira para as minhas intervenções que terei que fazer na minha campanha para vereador por Aparecida de Goiânia. Devo até fazer algumas citações do seu texto (sem dar o crédito devido).
ResponderExcluirMuito interessante o artigo, com a pandemia desestabilizando as economias e principalmente as emergentes me pergunto o que a sociedade aprendeu com ela! Acredito que o pós pandemia será desolador para os trabalhadores, minorias e vulneráveis...
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