Vivemos,
inegavelmente, um dos momentos mais complexos da história da humanidade. Uma
paralisação sistêmica que atinge praticamente todo globo terrestre, forçando
quase uma estagnação no processo produtivo. Não existe precedentes, mesmo nos
momentos mais críticos seja por questões de guerras, de depressão econômica, ou
mesmo de outras pandemias que já nos atingiu. Se pegarmos cada um desses
momentos, e analisarmos suas dinâmicas, veremos que por maiores que tenham sido
os impactos, isso não gerou uma quase completa paralisação no sistema
produtivo, de forma que afete a maioria das cadeias produtivas tal qual elas
funcionam, desde a aquisição de matérias-primas até a circulação de
mercadorias.
Somente essa
constatação nos permite considerar as dificuldades que teremos de lidar com os
momentos seguintes a essa pandemia e à quarentena necessária para conter a
propagação do vírus “Sars-Cov-2” e a COVID19. Claro, ainda estamos no começo do
inferno. Teremos de passar ainda por fortes labaredas para atingirmos um ponto
seguro que permita a humanidade retomar o curso da história. Nesse processo,
não podemos esperar que algum deus nos acuda. Essa não é uma tarefa para Deus,
e muito menos deve ser atribuído a qualquer um deles que seja a
responsabilidade por essa tragédia. Isso é parte de um processo que decorre das
escolhas humanas pelo seu estilo de vida. Uso a referência ao inferno como uma
metáfora, já que também não aponto para qualquer demônio que seja as diatribes
responsáveis por esse vírus, ou tantos outros que nos atormenta.
Durante a
propagação, e principalmente no combate à peste bubônica (conhecida como “peste
negra”), na Idade Média, as crenças religiosas dogmáticas tornaram-se um forte
empecilho para a superação da pandemia, com atribuições metafísicas ao problema.
Isso se repete hoje, de certa forma, principalmente entre um segmento
evangélico, de viés neopentecostal. Isso ocorre pelo caráter usurário da
prática existente nesse segmento, motivado pelas cobranças exorbitantes dos
dízimos de seus seguidores, baseado no medo, na culpa e no individualismo que
prega a doutrina da prosperidade, portanto radicalmente distanciado dos
princípios e valores fundamentais do cristianismo primitivo, o que é possível
por uma leitura bem particular e distanciada do tradicionalismo das próprias
igrejas protestantes, do livro sagrado do cristianismo, a bíblia.
Esse segmento tem
sido, por um lado absolutamente refratário ao isolamento social, principalmente
ao impacto que isso causa em suas igrejas, impedidas de realizarem cultos
presenciais; por outro lado é a parcela da sociedade que, inspirada nesses
ensinamentos dogmáticos, anticientíficos e metafísicos, aprofundam a ignorância
e o distanciamento em relação à ciência, constituindo-se em uma forte base de
apoio ao negacionismo científico e ao próprio poder destrutivo do vírus,
propagado pelo presidente da república do Brasil. Junta-se a esse segmento do
protestantismo uma parte dos católicos, seguidores da chamada renovação
carismática cristã, que se aproximam por esses caminhos dogmáticos e
conservadores. Certamente serão esses seguidores, não todos, mas em sua
maioria, que acompanharão o presidente no seu chamamento para um jejum contra o
vírus. Só não se sabe se o vírus entenderá isso como um ataque mortal à sua
existência.
No entanto,
majoritariamente, a sociedade tem se guiado pelos cuidados e orientações
científicas, isso bem explicitado em pesquisas que apontam uma concordância com
as orientações técnicas que têm permeado as decisões dos governadores,
prefeitos e do Ministério da Saúde, escorados nos fundamentos apresentados pela
Organização Mundial da Saúde.
Os embates
existentes carregam elementos da rejeição à ciência, da religiosidade
conservadora, da metafísica, mas também da política. Até porque há um projeto
de poder subsumido nessas atitudes aparentemente idílicas, de preocupações com
a necessidade de aquecer o espírito ou de combater o monstro que desde o século
XIX atormentava a Europa e depois o mundo: o comunismo. Para tanto, o
anticientificismo e a ignorância, como revés para comportamentos medievais,
constituem-se em combustíveis para disseminar a mentira e acirrar ódios de
vieses fascistas e neonazistas, trazendo para o noticiário e as análises
sociológicas uma nova terminologia: a necropolítica.
Mas, desviando
desse rumo, sem, no entanto, perder o fio da meada, faço junção dessa nova
expressão, que tende cada vez mais a ser utilizada, a partir do momento em que
se faz escolhas sobre quem deve morrer. Algo que já é costumeiro na estrutura
social, não só brasileira, como de boa parte do mundo, e acompanha a própria
maneira do sistema lidar com as desigualdades sociais, sem atacar o principal fundamento que a causa, a forte concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas. Essa
expressão foi criada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe[1], e se aproxima da
elaboração dada por Michel Foucault para compreender a maneira como os Estados
passaram a utilizar de certas metodologias de controle do corpo, da população,
e suas formas de imposição e controle social. Segundo ele, isso acontece quando
os governos passam das formas de utilização de mecanismos disciplinares para
mecanismos de controle. A saúde, a sexualidade, a alimentação, os costumes...
tudo isso leva a emersão do biopoder[2], e da governamentabilidade,
como forma de garantir o controle social[3]. As tecnologias surgem e
se desenvolvem, como reforço para essas novas formas de se estabelecer o
controle por meio da biopolítica.
Tudo leva a crer
que nos deparamos com essa realidade tal qual descrita por Foucault, e
certamente poderá estar reforçada no pós-Covid19, se não houver reações por
parte da sociedade, de forma organizada e na direção oposta ao rumo que a
humanidade tem seguido até aqui.
O que poderá fazer
com que os rumos sejam outros? A partir daqui o que podemos fazer é deduzir,
com base naquilo que nossa experiência pode permitir e nos conhecimentos
históricos que nos remetem a momentos, senão iguais, mas muito parecidos, cujas
crises chegaram ao ápice, à exaustão da economia. Não se pode estabelecer
comparações, porque como dito no início desse artigo, essa é uma situação de
absoluta excepcionalidade que estamos atravessando.
No entanto, nos
baseando no que ocorreu após a grande depressão, que se inicia no final de 1929
e atravessa toda a década de 1930, até desembocar na segunda guerra mundial,
houve uma transformação radical na sociedade, um aumento considerável do papel
do Estado na solução dos problemas econômicos e sociais, e da garantia de
emprego para a população, bem como levou a mudança de hábitos, nesse caso
quebrado pelo advento da guerra, que pode também ser incluída dentre as
consequências dessa crise de proporções mundiais, mas cujos efeitos foram mais
fortes nos EUA e na Europa. E, embora tenha havido um forte impacto nas
estruturas do sistema capitalista, esse não foi tão intenso a ponto de
paralisar as estruturas produtivas como consequência de uma imposição externa,
aparentemente casual (embora se saiba que isso decorre da forma como a
sociedade está organizada em grandes cidades, bem como a destruição da
biodiversidade do planeta), mas podendo ser cientificamente demonstrada em suas
causas fundamentais, inerentes ao próprio sistema.
Tomemos por base,
portanto, uma forte crise econômica nas primeiras décadas do século XX, mas
tendo como causa o excesso de produção do sistema e a redução do consumo, sem,
contudo, ter havido forçosamente uma paralisação da economia, já que esta se
deu na sequência da elevação produtiva. E estabeleçamos um relativo parâmetro
com o que temos hoje, numa dimensão muito maior, já que a paralisia do processo
produtivo se deu forçosamente, como necessidade para conter o poder viral, e
aqui a expressão foge ao que comumente usávamos até há pouco tempo, quando nos
referimos à ataques de vírus que afetam nossos computadores e smartfones.
Nessas
circunstâncias, de uma absoluta impossibilidade das cadeias produtivas
funcionarem, e uma paralisia no sistema afetando a quase totalidade das
empresas, o que se prevê é um impacto muito mais forte na estrutura do sistema
capitalista em comparação com o que ocorreu na depressão de 1929, ou mesmo na
mais recente explosão de crise, em 2008, com a quase debacle do sistema
financeiro mundial. Isso tenderá a jogar por terra toda e qualquer iniciativa
de gerir a economia com base nas receitas neoliberais, pois a única
possibilidade de conter um caos de dimensão planetária, são os estados
investirem maciçamente na economia, fortalecendo as empresas, dando suporte aos
micro e pequenos empreendedores, e garantindo fortes investimentos em
infraestruturas por todo o país, como elemento gerador de empregos, tal qual
foi feito na grande depressão, seguindo-se as orientações keynesianas.
Necessariamente terá que haver um retorno ao estado de bem estar social,
desmontando por completo todo esse aparato de reforma que levava a uma quase
destruição do Estado naquilo que se tornava mais essencial a sua importância
nas políticas sociais.
Isso
inevitavelmente irá levar a uma mudança substantiva no poder político, tanto
maior quanto mais próximas estejam os processos eleitorais nos países.
Atentando-se para um elemento que pode ser motivador de reforçar governos de
viés autoritário, de extrema-direita com intenções totalitárias, os possíveis
adiamentos de eleições, sob argumento do caos gerado pelo Corona Vírus, mas que
em essência pode significar a tentativa de implementação de projetos
totalizantes, como aliás já ocorre em alguns países, por meios de medidas
profundamente autoritárias e antidemocráticas.
Por fim, mas sem
ser conclusivo, outro elemento que está fora das formas com que as demais
crises se desencadearam. Focando aqui nas duas principais e mais assustadoras crises para a economia capitalista, a grande depressão de 1929 e a crise dos sub-primes de 2008. O
isolamento social, o distanciamento das pessoas e o enclausuramento em
circunstâncias as mais diversas, a depender da condição social e da dimensão
habitacional onde cada família vive, é um elemento novo e diferencial nessa situação que estamos vivendo. Certamente, o pós-quarentena trará novos
comportamentos sociais. Em primeiro lugar porque a crise imporá uma necessidade
do estabelecimento de relações muito mais solidárias, em função do aumento da
miséria e a disseminação da pobreza; em segundo lugar porque esse confinamento
poderá trazer diversas reflexões sobre as formas como temos vivido em sociedade
até então, com um distanciamento entre os próximos, e uma proximidade entre os
distantes. Aquilo que nos transformou enquanto sociedade com o advento de novas
tecnologias e das redes sociais, bem como dos mecanismos criados pela
competição a qualquer custo e a necessidade de se garantir o primeiro lugar
como condição de se ver inserido nos mecanismos inclusivos do sistema.
Penso que devemos
resgatar aquilo posto pelo geógrafo Milton Santos em uma de suas últimas obras,
e seguramente a de maior leitura: Por uma outra globalização. Não creio
que devamos culpar a globalização pela disseminação do vírus, até porque outros
vírus se disseminaram pelo mundo com alto grau de letalidade, embora não com a
velocidade deste. Claro que nosso estilo de vida, nos últimos anos se acentuou
muito fortemente pela forma como se deu a globalização, com o esvaziamento
acelerado do campo e o crescimento exponencial das cidades, bem como uma forte
destruição da nossa biodiversidade. Mas a globalização não é um sistema. Ela é
apenas uma forma pela qual o sistema ampliou seu poder de contaminação da
ganância, da usura, do acesso às novas tecnologias e das desigualdades sociais.
No entanto esses são elementos inerentes ao sistema capitalista, em sua forma
perversa, como descrito por Santos como uma das etapas, ou seja, da
globalização como perversidade.[4]
Cumpre-nos
enfatizar o aspecto final de seu livro, quando ele defende ser possível uma
outra globalização, que possa primar pela solidariedade e pela necessidade de
as pessoas por todo o mundo se ajudarem mutuamente, de forma a reduzir as
desigualdades sociais. Porque não veremos, por mais que desejemos, o fim do
capitalismo como consequência da disseminação da Covid19. Ainda teremos um
processo lento e doloroso, de ampliação da crise, da miséria, do aumento das
desigualdades sociais, da violência, da perseguição aos que lutam contra essas
condições perversas, e o poder concentrado nas mãos dos representantes das
grandes corporações, principalmente as financeiras, que podem sair dessa crise
mais fortes e concentradas, na medida em que terão fortes injeções de recursos
financeiros, como já está acontecendo e como aconteceu em 2008. Assim, suas
garras podem se ampliar, através da aquisição de empresas em estado falimentar,
levando as suas recuperações mediante a destruição de empregos, como se deu no
final da década de 1980 na Europa e nos EUA, principalmente.
O que vai estar em
jogo nos próximos meses pós-quarentena será a capacidade da sociedade não se
abater com esse confinamento, e as organizações sociais e associações
comunitárias conseguirem disputar contra o poder discriminatório do estado e
das igrejas neopentecostais, o protagonismo no envolvimento das populações periféricas,
apontando para elas a necessidade de seguir por um caminho de construção de
relações solidárias e de comum união.
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