domingo, 5 de abril de 2020

O COVID 19 E O MUNDO NA ENCRUZILHADA

Vivemos, inegavelmente, um dos momentos mais complexos da história da humanidade. Uma paralisação sistêmica que atinge praticamente todo globo terrestre, forçando quase uma estagnação no processo produtivo. Não existe precedentes, mesmo nos momentos mais críticos seja por questões de guerras, de depressão econômica, ou mesmo de outras pandemias que já nos atingiu. Se pegarmos cada um desses momentos, e analisarmos suas dinâmicas, veremos que por maiores que tenham sido os impactos, isso não gerou uma quase completa paralisação no sistema produtivo, de forma que afete a maioria das cadeias produtivas tal qual elas funcionam, desde a aquisição de matérias-primas até a circulação de mercadorias.
Somente essa constatação nos permite considerar as dificuldades que teremos de lidar com os momentos seguintes a essa pandemia e à quarentena necessária para conter a propagação do vírus “Sars-Cov-2” e a COVID19. Claro, ainda estamos no começo do inferno. Teremos de passar ainda por fortes labaredas para atingirmos um ponto seguro que permita a humanidade retomar o curso da história. Nesse processo, não podemos esperar que algum deus nos acuda. Essa não é uma tarefa para Deus, e muito menos deve ser atribuído a qualquer um deles que seja a responsabilidade por essa tragédia. Isso é parte de um processo que decorre das escolhas humanas pelo seu estilo de vida. Uso a referência ao inferno como uma metáfora, já que também não aponto para qualquer demônio que seja as diatribes responsáveis por esse vírus, ou tantos outros que nos atormenta.
Durante a propagação, e principalmente no combate à peste bubônica (conhecida como “peste negra”), na Idade Média, as crenças religiosas dogmáticas tornaram-se um forte empecilho para a superação da pandemia, com atribuições metafísicas ao problema. Isso se repete hoje, de certa forma, principalmente entre um segmento evangélico, de viés neopentecostal. Isso ocorre pelo caráter usurário da prática existente nesse segmento, motivado pelas cobranças exorbitantes dos dízimos de seus seguidores, baseado no medo, na culpa e no individualismo que prega a doutrina da prosperidade, portanto radicalmente distanciado dos princípios e valores fundamentais do cristianismo primitivo, o que é possível por uma leitura bem particular e distanciada do tradicionalismo das próprias igrejas protestantes, do livro sagrado do cristianismo, a bíblia.
Esse segmento tem sido, por um lado absolutamente refratário ao isolamento social, principalmente ao impacto que isso causa em suas igrejas, impedidas de realizarem cultos presenciais; por outro lado é a parcela da sociedade que, inspirada nesses ensinamentos dogmáticos, anticientíficos e metafísicos, aprofundam a ignorância e o distanciamento em relação à ciência, constituindo-se em uma forte base de apoio ao negacionismo científico e ao próprio poder destrutivo do vírus, propagado pelo presidente da república do Brasil. Junta-se a esse segmento do protestantismo uma parte dos católicos, seguidores da chamada renovação carismática cristã, que se aproximam por esses caminhos dogmáticos e conservadores. Certamente serão esses seguidores, não todos, mas em sua maioria, que acompanharão o presidente no seu chamamento para um jejum contra o vírus. Só não se sabe se o vírus entenderá isso como um ataque mortal à sua existência.
No entanto, majoritariamente, a sociedade tem se guiado pelos cuidados e orientações científicas, isso bem explicitado em pesquisas que apontam uma concordância com as orientações técnicas que têm permeado as decisões dos governadores, prefeitos e do Ministério da Saúde, escorados nos fundamentos apresentados pela Organização Mundial da Saúde.
Os embates existentes carregam elementos da rejeição à ciência, da religiosidade conservadora, da metafísica, mas também da política. Até porque há um projeto de poder subsumido nessas atitudes aparentemente idílicas, de preocupações com a necessidade de aquecer o espírito ou de combater o monstro que desde o século XIX atormentava a Europa e depois o mundo: o comunismo. Para tanto, o anticientificismo e a ignorância, como revés para comportamentos medievais, constituem-se em combustíveis para disseminar a mentira e acirrar ódios de vieses fascistas e neonazistas, trazendo para o noticiário e as análises sociológicas uma nova terminologia: a necropolítica.
Mas, desviando desse rumo, sem, no entanto, perder o fio da meada, faço junção dessa nova expressão, que tende cada vez mais a ser utilizada, a partir do momento em que se faz escolhas sobre quem deve morrer. Algo que já é costumeiro na estrutura social, não só brasileira, como de boa parte do mundo, e acompanha a própria maneira do sistema lidar com as desigualdades sociais, sem atacar o principal fundamento que a causa, a forte concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas. Essa expressão foi criada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe[1], e se aproxima da elaboração dada por Michel Foucault para compreender a maneira como os Estados passaram a utilizar de certas metodologias de controle do corpo, da população, e suas formas de imposição e controle social. Segundo ele, isso acontece quando os governos passam das formas de utilização de mecanismos disciplinares para mecanismos de controle. A saúde, a sexualidade, a alimentação, os costumes... tudo isso leva a emersão do biopoder[2], e da governamentabilidade, como forma de garantir o controle social[3]. As tecnologias surgem e se desenvolvem, como reforço para essas novas formas de se estabelecer o controle por meio da biopolítica.
Tudo leva a crer que nos deparamos com essa realidade tal qual descrita por Foucault, e certamente poderá estar reforçada no pós-Covid19, se não houver reações por parte da sociedade, de forma organizada e na direção oposta ao rumo que a humanidade tem seguido até aqui.
O que poderá fazer com que os rumos sejam outros? A partir daqui o que podemos fazer é deduzir, com base naquilo que nossa experiência pode permitir e nos conhecimentos históricos que nos remetem a momentos, senão iguais, mas muito parecidos, cujas crises chegaram ao ápice, à exaustão da economia. Não se pode estabelecer comparações, porque como dito no início desse artigo, essa é uma situação de absoluta excepcionalidade que estamos atravessando.
No entanto, nos baseando no que ocorreu após a grande depressão, que se inicia no final de 1929 e atravessa toda a década de 1930, até desembocar na segunda guerra mundial, houve uma transformação radical na sociedade, um aumento considerável do papel do Estado na solução dos problemas econômicos e sociais, e da garantia de emprego para a população, bem como levou a mudança de hábitos, nesse caso quebrado pelo advento da guerra, que pode também ser incluída dentre as consequências dessa crise de proporções mundiais, mas cujos efeitos foram mais fortes nos EUA e na Europa. E, embora tenha havido um forte impacto nas estruturas do sistema capitalista, esse não foi tão intenso a ponto de paralisar as estruturas produtivas como consequência de uma imposição externa, aparentemente casual (embora se saiba que isso decorre da forma como a sociedade está organizada em grandes cidades, bem como a destruição da biodiversidade do planeta), mas podendo ser cientificamente demonstrada em suas causas fundamentais, inerentes ao próprio sistema.
Tomemos por base, portanto, uma forte crise econômica nas primeiras décadas do século XX, mas tendo como causa o excesso de produção do sistema e a redução do consumo, sem, contudo, ter havido forçosamente uma paralisação da economia, já que esta se deu na sequência da elevação produtiva. E estabeleçamos um relativo parâmetro com o que temos hoje, numa dimensão muito maior, já que a paralisia do processo produtivo se deu forçosamente, como necessidade para conter o poder viral, e aqui a expressão foge ao que comumente usávamos até há pouco tempo, quando nos referimos à ataques de vírus que afetam nossos computadores e smartfones.
Nessas circunstâncias, de uma absoluta impossibilidade das cadeias produtivas funcionarem, e uma paralisia no sistema afetando a quase totalidade das empresas, o que se prevê é um impacto muito mais forte na estrutura do sistema capitalista em comparação com o que ocorreu na depressão de 1929, ou mesmo na mais recente explosão de crise, em 2008, com a quase debacle do sistema financeiro mundial. Isso tenderá a jogar por terra toda e qualquer iniciativa de gerir a economia com base nas receitas neoliberais, pois a única possibilidade de conter um caos de dimensão planetária, são os estados investirem maciçamente na economia, fortalecendo as empresas, dando suporte aos micro e pequenos empreendedores, e garantindo fortes investimentos em infraestruturas por todo o país, como elemento gerador de empregos, tal qual foi feito na grande depressão, seguindo-se as orientações keynesianas. Necessariamente terá que haver um retorno ao estado de bem estar social, desmontando por completo todo esse aparato de reforma que levava a uma quase destruição do Estado naquilo que se tornava mais essencial a sua importância nas políticas sociais.
Isso inevitavelmente irá levar a uma mudança substantiva no poder político, tanto maior quanto mais próximas estejam os processos eleitorais nos países. Atentando-se para um elemento que pode ser motivador de reforçar governos de viés autoritário, de extrema-direita com intenções totalitárias, os possíveis adiamentos de eleições, sob argumento do caos gerado pelo Corona Vírus, mas que em essência pode significar a tentativa de implementação de projetos totalizantes, como aliás já ocorre em alguns países, por meios de medidas profundamente autoritárias e antidemocráticas.
Por fim, mas sem ser conclusivo, outro elemento que está fora das formas com que as demais crises se desencadearam. Focando aqui nas duas principais e mais assustadoras crises para a economia capitalista, a grande depressão de 1929 e a crise dos sub-primes de 2008. O isolamento social, o distanciamento das pessoas e o enclausuramento em circunstâncias as mais diversas, a depender da condição social e da dimensão habitacional onde cada família vive, é um elemento novo e diferencial nessa situação que estamos vivendo. Certamente, o pós-quarentena trará novos comportamentos sociais. Em primeiro lugar porque a crise imporá uma necessidade do estabelecimento de relações muito mais solidárias, em função do aumento da miséria e a disseminação da pobreza; em segundo lugar porque esse confinamento poderá trazer diversas reflexões sobre as formas como temos vivido em sociedade até então, com um distanciamento entre os próximos, e uma proximidade entre os distantes. Aquilo que nos transformou enquanto sociedade com o advento de novas tecnologias e das redes sociais, bem como dos mecanismos criados pela competição a qualquer custo e a necessidade de se garantir o primeiro lugar como condição de se ver inserido nos mecanismos inclusivos do sistema.
Penso que devemos resgatar aquilo posto pelo geógrafo Milton Santos em uma de suas últimas obras, e seguramente a de maior leitura: Por uma outra globalização. Não creio que devamos culpar a globalização pela disseminação do vírus, até porque outros vírus se disseminaram pelo mundo com alto grau de letalidade, embora não com a velocidade deste. Claro que nosso estilo de vida, nos últimos anos se acentuou muito fortemente pela forma como se deu a globalização, com o esvaziamento acelerado do campo e o crescimento exponencial das cidades, bem como uma forte destruição da nossa biodiversidade. Mas a globalização não é um sistema. Ela é apenas uma forma pela qual o sistema ampliou seu poder de contaminação da ganância, da usura, do acesso às novas tecnologias e das desigualdades sociais. No entanto esses são elementos inerentes ao sistema capitalista, em sua forma perversa, como descrito por Santos como uma das etapas, ou seja, da globalização como perversidade.[4]
Cumpre-nos enfatizar o aspecto final de seu livro, quando ele defende ser possível uma outra globalização, que possa primar pela solidariedade e pela necessidade de as pessoas por todo o mundo se ajudarem mutuamente, de forma a reduzir as desigualdades sociais. Porque não veremos, por mais que desejemos, o fim do capitalismo como consequência da disseminação da Covid19. Ainda teremos um processo lento e doloroso, de ampliação da crise, da miséria, do aumento das desigualdades sociais, da violência, da perseguição aos que lutam contra essas condições perversas, e o poder concentrado nas mãos dos representantes das grandes corporações, principalmente as financeiras, que podem sair dessa crise mais fortes e concentradas, na medida em que terão fortes injeções de recursos financeiros, como já está acontecendo e como aconteceu em 2008. Assim, suas garras podem se ampliar, através da aquisição de empresas em estado falimentar, levando as suas recuperações mediante a destruição de empregos, como se deu no final da década de 1980 na Europa e nos EUA, principalmente.
O que vai estar em jogo nos próximos meses pós-quarentena será a capacidade da sociedade não se abater com esse confinamento, e as organizações sociais e associações comunitárias conseguirem disputar contra o poder discriminatório do estado e das igrejas neopentecostais, o protagonismo no envolvimento das populações periféricas, apontando para elas a necessidade de seguir por um caminho de construção de relações solidárias e de comum união.

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