De repente, não
mais que de repente, muito se ouve falar de geopolítica. Tudo que se fala é
geopolítica. Mas, afinal, o que é a Geopolítica?
A Geopolítica pode
ser vista como a junção da Geografia, História e Ciências Políticas, com necessárias
pitadas de economia devido a ser preciso compreender a dimensão sistêmica que
conduz cada época e serve como motor da engrenagem dos Estados-Nação.
Mas a geopolítica,
ao contrário do que erroneamente se imagina, não é somente uma ferramenta para
noticiar as transformações conjunturais, e os eventos que aflige a humanidade,
as crises econômicas e o espocar das guerras. Ela é fundamental para a
compreensão das causas geradoras de cada um dos fatos abordados dentro dos
aspectos citados e da construção de cenários para o que se desenrolará a
posteriori. Ou, caso estejamos analisando um fato histórico já ocorrido, ela
permite compreender o jogo do Poder que o desencadeou, as disputas em torno do
controle de territórios e, principalmente, a compreensão das estratégias
utilizadas para se atingir os objetivos daqueles atores envolvidos no processo.
Esse é o elemento
principal da geopolítica: a estratégia. Sua origem remonta o tempo em que os
estados nações se expandiam, final do século XIX, época do poder crescente dos
impérios, mas também da modernização do Estado e da criação de mecanismos que
fortaleceriam toda a estrutura necessária para garantir a defesa das fronteiras
territoriais nacionais, do controle da “core área” na expressão de Ratzel, da
manutenção dos seus recursos naturais e da sua população.
Inicialmente vista
como Geografia Política, na construção temática e epistemológica elaborada por
Ratzel, e depois tornada Geopolítica na criação desse acrônimo por Rudolf
Kjellen, que se consolidou com a expansão desse saber estratégico pela Europa,
principalmente Alemanha, onde se difundiu fortemente através de Karl Haushofer,
criador da escola alemã de geopolítica e o tornou personagem dúbio na relação
com a estratégia nazista do expansionismo do III Reich.
Os embates com a
escola francesa, vidaliana ou lablacheana, e tendo sido o foco das diatribes de
Hitler, na Alemanha, a geopolítica amargou um forte revés, pela dimensão que
alcançou naquele país. De Ratzel a Haushofer, o caráter expansionista, elemento
da visão estratégica que considerava a um estado-nação uma condição necessária
para o seu hegemonismo, e até mesmo sobrevivência, a escola geográfica naquele
país deveu a geopolítica toda a sua influência. O pós-guerra reforçou os
ataques franceses, e prevaleceu as intrigas feitas por historiadores da recém
projetada Escola dos Annales, principalmente Lucien Febvre, que oporia Ratzel
(identificado como determinista) a La Blache (visto como possibilista).
Naturalmente por
trás da geopolítica há a Geografia, e o saber estratégico que a mesma carrega, isso
posto a nu em um trabalho paradigmático que resgatou o papel crítico da
geografia, depois de ser levada ao limbo pelas marcas que ficaram no embate com
a escola francesa e com o pós-guerra: “A geografia, isso serve em primeiro
lugar para fazer a guerra”, obra de Yves Lacoste.
Mais do que reforçar
o caráter político desse saber, e tecer forte crítica à geografia ensinada nas escolas,
até aquela época e como consequência desses embates políticos e geopolíticos, Lacoste
é enfático em afirmar que, mais importante do que considerar ser uma ciência, a
geografia é essencialmente um saber estratégico. E essa é a real grandeza de
sua importância, e por isso tão temida por determinados setores, mais inerentes
e necessários ao planejamento e ação do Estado. E não somente para a guerra.
Lacoste reforça a
necessidade da política para a geografia e, além de resgatar o papel de Ratzel
na projeção desse saber estratégico, traz também de volta a importância das
obras de Elisée Reclus, este um geógrafo francês mais engajado, de visão mais progressista,
até pelo seu histórico de militância e participação nos movimentos populares e
revolucionários de sua época.
O movimento da
Geografia Crítica que advém a partir dessa obra de Lacoste buscou tirar a
geografia do limbo, e junto com ela a geopolítica. Mas o elemento diferente que
vai projetar a geopolítica de volta ao seu patamar de importância, mesmo que em
muitas escolas tendo como denominação Geografia Política (o que para Lacoste é
redundante), é asua afirmação que a Geopolítica é a Geografia em toda a sua
essência. E o caráter de totalidade, essencial para essa ciência e saber
estratégico, só poderia estar completado com a devida importância da inserção
da política em seus conteúdos, por sua própria natureza.
Lacoste critica em
sua obra a fragmentação da Geografia, algo que será objeto de preocupação de
uma geração de geógrafos até o final do século, quando submetido como outros
conhecimentos ao processo da globalização, tornou-se difícil de evitar que isso
deixasse de acontecer. Ao contrário, se acelerou, como um elemento forte da
característica marcante de uma nova etapa do capitalismo, levando todas as
áreas do conhecimento na mesma direção, para o bem ou para o mal.
Evidente que a
visão de totalidade acompanhava toda uma condição e uma visão epistemológica
advinda da influência marxista na geografia. Mas, como entender as partes sem o
todo, e como compreender o todo sem o conhecimento das partes? Isso é o que
garantiria à Geopolítica a condição de reforçar o caráter crítico da geografia
e o resgate da política como elemento fundamental de sua essência como saber
estratégico.
Mas todo esse
movimento não foi suficiente. O estigma criado em torno da geopolítica era
muito forte, e ideologicamente se constituiu em uma arma muito bem utilizada no
âmbito da guerra fria. Muito embora nenhum estado-nação, de qualquer um dos
lados, abdicasse da geopolítica como fundamento de seus planejamentos, de
estudos do potencial de riquezas estratégicas, principalmente no âmbito da
geração de energia, e da proteção e expansão de suas fronteiras, em síntese, da
defesa de seus territórios nacionais, e até mesmo de suas colônias, muitas
ainda mantidas diretamente ou de forma disfarçada.
No entanto, a
mesma globalização que acentuou a fragmentação, e os conhecimentos, projetou a
geopolítica. A aceleração contemporânea, o desenvolvimento científico e
tecnológico, o poder da informação acessível a praticamente todas as pessoas, o
deslocamento de mercadorias com muito mais facilidade, e das pessoas, com
certas restrições, mas por veículos mais rápidos e eficientes, e,
principalmente, a multipolarização do mundo, decorrente desse processo, muito
embora não sendo algo desejado pelo império. Todos esses elementos já não
podiam mais ser compreendidos sem a geopolítica, notadamente quando a partir de
2001, com um ataque mortal no coração do império, disseminou conflitos por
todos os cantos e modificou para sempre o formato das guerras e o sentido da
paz. A clássica frase “se desejas a paz, prepara-te para a guerra”[i], passou a fazer cada vez mais
sentido.
Em sua nova fase,
o capitalismo disseminou pelo mundo a ganância e a usura, distribuiu riqueza
para poucos, e a pobreza para muitos. O que se projetou com a globalização, em
seus momentos de deslumbramentos, se demonstrou pérfido, perverso e destruidor
a partir do final da primeira década do século XXI. Impossível tentar
compreender esse mundo sem a geopolítica, pela noção de totalidade que ela
representa.
Mas qual
geopolítica? Porque de repente se falava de geopolítica de alimentos, de
biodiversidade, da água, do oriente médio, da África, do petróleo, dos recursos naturais, das questões
ambientais... e por aí foi. A grande mídia trouxe para o foco de suas análises
e interpretações aquilo que a geografia refutou por muito tempo, e a
popularizou. Isso se acentuou com a disseminação de um vírus, mortal, o “Sars-Cov-2”
sem nenhuma forma de contenção, a partir da China e daí para o mundo primeiro
pela Europa, depois América, restante da Ásia, e África, e praticamente
paralisou o sistema, com o necessário isolamento social para conter a sua propagação.
O olhar crítico e cirúrgico a ser feito sobre esse processo não pode prescindir
da geopolítica.
Os embates que se
acentuaram, e estremeceram as relações políticas e comerciais entre grandes
potências, notadamente EUA e China, fez parecer como restrito apenas a um
desses países eventuais descontroles internos em suas políticas e levaram a uma
quebra daqueles princípios que foram constituídos com a criação de organismos
multilaterais. Assim, a ocorrência de uma epidemia foi inicialmente vista como
algo localizado, típico do estilo de vida chinês, algo já enfaticamente
questionado com o agravamento da pandemia. Havia um desejo implícito que isso
reduzisse o poder crescente da China.
Os países não se
prepararam para o impacto que isso teria na vida das pessoas, na economia dos
países e do sistema caso houvesse uma disseminação global. De repente, o mundo
se deparou com uma crise de impactos monumentais, com uma quarentena necessária
para se prevenir do contágio e paralisou praticamente todo o processo
produtivo, algo inédito na história recente, e vista de forma catastrófica
somente comparado à grande depressão da década de 1930. Mas em número de mortos
ainda perde, longe, da gripe “espanhola”, apesar da celeridade do contágio.
Essa reviravolta
por completo na maneira como a vida das pessoas se acostumara com a facilidade
de deslocamento e com um consumo acelerado, embora o sistema não tivesse ainda
se livrado dos sintomas da crise de 2008, deixou atônito o mundo como um todo.
E não chegamos ainda sequer ao topo da disseminação desse vírus.
Em um ambiente
criado pela globalização, de notícias que viajam por todo o globo em tempo
real, e de redes sociais onde as pessoas se conectam e conversam a qualquer
instante estejam onde estiverem, tentar compreender tudo isso se tornou a nova
rotina. Ao mesmo tempo sendo necessário combater uma nova onda que esses mesmos
mecanismos criaram, as notícias falsas, fake News, que confundem e criam uma horda
de estúpidos, dispostos a acreditar naquilo que desejam, no que se convencionou
chamar, ainda antes do Covid19, a doença que tem impactado o capitalismo, de
“pós-verdade”.
Naturalmente cada
noticiário vem acompanhado de relatos e análises de especialistas em diversas
áreas, principalmente naquelas ligadas à epidemiologia, infectologia, das
ciências médicas de uma maneira geral, mas também da economia, da política, da
psicologia... e, naturalmente, da geopolítica. Enfim, nunca se intitulou tantos
artigos com a palavra geopolítica a ilustrá-los, como nesse nosso tempo de
impactantes imprecisões sobre não somente o que estamos vivendo, mas,
principalmente, sobre o que virá como consequência dessa pandemia.
Mas porque é
interessante olhar para todas essas reviravoltas, de como uma área temática da
geopolítica se torna malquista como consequência de uma guerra mundial, na qual
em tese ela teria sido coadjuvante, e para os dias de hoje, com uma guerra a um
inimigo quase invisível, e não é o terrorismo, mas o terror de um vírus
implacável e sem formas de contê-lo até então?
Porque assim chego
ao ponto em que desejo demonstrar que não é tão somente a geopolítica, essencial
para a compreensão de tudo isso. Mas a Geografia. A maioria desses artigos que
são intitulados com a geopolítica, são centrados em seus conteúdos, nos
elementos que compõem a geografia. O objetivo não é reforçar o que dito por
Lacoste há pelo menos cinco décadas, de que a geopolítica é a geografia. Porque
a globalização, como dito, fragmentou tudo, inclusive o conhecimento
geográfico.
Ocorre que esses
elementos que são necessários para identificar a origem do vírus, as condições em
que ficam as cidades como forma de combatê-lo, a disseminação pelo espaço
geográfico, a alteração dos lugares e hábitos até então corriqueiros, o reforço
das estruturas nas áreas de saúde em grandes metrópoles de fortes densidades
demográficas bem como o atlas ou mapeamento dessas fragilidades, a transposição
de fronteiras praticamente inexistentes enquanto barreira, a forma de
aceleração do contágio inicialmente por meio de vias de transportes aéreas ou
de grandes transatlânticos, o necessário isolamento social de populações que
precisam ficar restritas a suas residências, em seus bairros, seja em casas,
condomínios horizontais ou verticais, o impacto na economia e a distribuição
espacial como ele ocorre, e as mudanças nos comportamentos individuais e
coletivos que tudo isso possibilita, são, inevitavelmente questões necessárias
e postas no hoje e no depois para serem analisadas, entendidas e compreendidas
em todas as suas dimensões pela geografia. Não há um único elemento em todo
esse processo que não caiba em trabalhos de pesquisas da Geografia em suas mais
diversificadas áreas do conhecimento, inclusive da geolocalização, nas
informações geoprocessadas, por onde “viaja” esse vírus, os países, as regiões
e setores das cidades mais infectados.
Em que entra a Geopolítica,
então? Na análise estratégica dos impactos gerados pelas medidas tomadas para
combater o vírus; a paralisia das cidades e os impactos econômicos que deverão
gerar processos recessivos e depressivo; as alterações na ordem geopolítica
mundial, com a provável troca de hegemonia entre as grandes nações líderes do
comércio mundial e dos possíveis conflitos e guerras que advirão como resultado
de desentendimentos naturais nesse processo. Some-se a isso, como área de
interesse da geopolítica, a ação de organismos multilaterais, como a OMS, FMI e
a ONU, dentre outros, e como sairão desse processo altamente desgastante a
partir da forma como os países verão suas ações. Fundamentalmente, a
geopolítica centra o seu olhar eminentemente estratégico no interesse dos
estados nações, das grandes corporações, da beligerância e das relações entre
os estados-nações, e, internamente, como sobreviverão os setores estratégicos e
empresas que representam o capital nacional para além fronteiras e na defesa do
território nacional.
A globalização, o
neoliberalismo principalmente e o sistema capitalista em essência, se tornam
pacientes em alto grau de contaminação e com grandes possibilidades de
frequentar uma unidade de terapia intensiva. O olhar sobre essa possibilidade e
as consequências do estrago que essa pandemia causará em todos os segmentos
sociais e por todos os cantos do mundo, se tornam, sim, elementos essenciais da
abordagem Geopolítica.
Pode-se então observar
diferenças, nuances que são identificadas quando se compreende a Geografia como
um saber estratégico, e um ramo de seu conhecimento que se preocupa por meio da
necessária busca do conhecimento estratégico, a identificação da política que
norteia as ações dos países e/ou grupos de países e como se dão e se darão suas
relações: a geopolítica.
Concluo considerando
como algo relevante, inclusive como parte do ensinamento posto por Yves
Lacoste, ser necessário resgatar o papel da geografia crítica. E reforço o seu
destaque à urgência de se retomar os estudos de um dos mais renomados
geógrafos, contido por governos da época pelo caráter social de sua obra e pelo
seu olhar libertário para o mundo. Este é o momento da geografia resgatar a
obra e os ensinamentos de Elisée Reclus. Por uma Geografia crítica, política e
necessária para que os geógrafos não se limitem somente a descrever o mundo, mas
que possam contribuir para transformá-lo.
[i]
“Si
vis pacem, para bellum”, Públio Flávio Vegécio Renato, conhecido como Vegécio, escritor
do Império Romano do século IV.
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