sexta-feira, 10 de abril de 2020

A DIMENSÃO DA GEOPOLÍTICA NO MUNDO ATUAL

De repente, não mais que de repente, muito se ouve falar de geopolítica. Tudo que se fala é geopolítica. Mas, afinal, o que é a Geopolítica?
A Geopolítica pode ser vista como a junção da Geografia, História e Ciências Políticas, com necessárias pitadas de economia devido a ser preciso compreender a dimensão sistêmica que conduz cada época e serve como motor da engrenagem dos Estados-Nação.
Mas a geopolítica, ao contrário do que erroneamente se imagina, não é somente uma ferramenta para noticiar as transformações conjunturais, e os eventos que aflige a humanidade, as crises econômicas e o espocar das guerras. Ela é fundamental para a compreensão das causas geradoras de cada um dos fatos abordados dentro dos aspectos citados e da construção de cenários para o que se desenrolará a posteriori. Ou, caso estejamos analisando um fato histórico já ocorrido, ela permite compreender o jogo do Poder que o desencadeou, as disputas em torno do controle de territórios e, principalmente, a compreensão das estratégias utilizadas para se atingir os objetivos daqueles atores envolvidos no processo.
Esse é o elemento principal da geopolítica: a estratégia. Sua origem remonta o tempo em que os estados nações se expandiam, final do século XIX, época do poder crescente dos impérios, mas também da modernização do Estado e da criação de mecanismos que fortaleceriam toda a estrutura necessária para garantir a defesa das fronteiras territoriais nacionais, do controle da “core área” na expressão de Ratzel, da manutenção dos seus recursos naturais e da sua população.
Inicialmente vista como Geografia Política, na construção temática e epistemológica elaborada por Ratzel, e depois tornada Geopolítica na criação desse acrônimo por Rudolf Kjellen, que se consolidou com a expansão desse saber estratégico pela Europa, principalmente Alemanha, onde se difundiu fortemente através de Karl Haushofer, criador da escola alemã de geopolítica e o tornou personagem dúbio na relação com a estratégia nazista do expansionismo do III Reich.
Os embates com a escola francesa, vidaliana ou lablacheana, e tendo sido o foco das diatribes de Hitler, na Alemanha, a geopolítica amargou um forte revés, pela dimensão que alcançou naquele país. De Ratzel a Haushofer, o caráter expansionista, elemento da visão estratégica que considerava a um estado-nação uma condição necessária para o seu hegemonismo, e até mesmo sobrevivência, a escola geográfica naquele país deveu a geopolítica toda a sua influência. O pós-guerra reforçou os ataques franceses, e prevaleceu as intrigas feitas por historiadores da recém projetada Escola dos Annales, principalmente Lucien Febvre, que oporia Ratzel (identificado como determinista) a La Blache (visto como possibilista). 
A queda do nazismo levou junto a geopolítica, e Haushofer ao suicídio. Os ares democráticos que virão depois, e mais do que a identificação da Alemanha com a geopolítica, também a preocupação com a União Soviética, induziria as escolas ocidentais a transformar a geopolítica como “persona non grata”. Por trás disso o temor com um poder estratégico advindo desses conhecimentos. Sempre usado pelos estados, mas negligenciado a partir de então pela academia. A geopolítica tornou-se vítima de si mesma.
Naturalmente por trás da geopolítica há a Geografia, e o saber estratégico que a mesma carrega, isso posto a nu em um trabalho paradigmático que resgatou o papel crítico da geografia, depois de ser levada ao limbo pelas marcas que ficaram no embate com a escola francesa e com o pós-guerra: “A geografia, isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, obra de Yves Lacoste.
Mais do que reforçar o caráter político desse saber, e tecer forte crítica à geografia ensinada nas escolas, até aquela época e como consequência desses embates políticos e geopolíticos, Lacoste é enfático em afirmar que, mais importante do que considerar ser uma ciência, a geografia é essencialmente um saber estratégico. E essa é a real grandeza de sua importância, e por isso tão temida por determinados setores, mais inerentes e necessários ao planejamento e ação do Estado. E não somente para a guerra.
Lacoste reforça a necessidade da política para a geografia e, além de resgatar o papel de Ratzel na projeção desse saber estratégico, traz também de volta a importância das obras de Elisée Reclus, este um geógrafo francês mais engajado, de visão mais progressista, até pelo seu histórico de militância e participação nos movimentos populares e revolucionários de sua época.
O movimento da Geografia Crítica que advém a partir dessa obra de Lacoste buscou tirar a geografia do limbo, e junto com ela a geopolítica. Mas o elemento diferente que vai projetar a geopolítica de volta ao seu patamar de importância, mesmo que em muitas escolas tendo como denominação Geografia Política (o que para Lacoste é redundante), é asua afirmação que a Geopolítica é a Geografia em toda a sua essência. E o caráter de totalidade, essencial para essa ciência e saber estratégico, só poderia estar completado com a devida importância da inserção da política em seus conteúdos, por sua própria natureza.
Lacoste critica em sua obra a fragmentação da Geografia, algo que será objeto de preocupação de uma geração de geógrafos até o final do século, quando submetido como outros conhecimentos ao processo da globalização, tornou-se difícil de evitar que isso deixasse de acontecer. Ao contrário, se acelerou, como um elemento forte da característica marcante de uma nova etapa do capitalismo, levando todas as áreas do conhecimento na mesma direção, para o bem ou para o mal.
Evidente que a visão de totalidade acompanhava toda uma condição e uma visão epistemológica advinda da influência marxista na geografia. Mas, como entender as partes sem o todo, e como compreender o todo sem o conhecimento das partes? Isso é o que garantiria à Geopolítica a condição de reforçar o caráter crítico da geografia e o resgate da política como elemento fundamental de sua essência como saber estratégico.
Mas todo esse movimento não foi suficiente. O estigma criado em torno da geopolítica era muito forte, e ideologicamente se constituiu em uma arma muito bem utilizada no âmbito da guerra fria. Muito embora nenhum estado-nação, de qualquer um dos lados, abdicasse da geopolítica como fundamento de seus planejamentos, de estudos do potencial de riquezas estratégicas, principalmente no âmbito da geração de energia, e da proteção e expansão de suas fronteiras, em síntese, da defesa de seus territórios nacionais, e até mesmo de suas colônias, muitas ainda mantidas diretamente ou de forma disfarçada.
No entanto, a mesma globalização que acentuou a fragmentação, e os conhecimentos, projetou a geopolítica. A aceleração contemporânea, o desenvolvimento científico e tecnológico, o poder da informação acessível a praticamente todas as pessoas, o deslocamento de mercadorias com muito mais facilidade, e das pessoas, com certas restrições, mas por veículos mais rápidos e eficientes, e, principalmente, a multipolarização do mundo, decorrente desse processo, muito embora não sendo algo desejado pelo império. Todos esses elementos já não podiam mais ser compreendidos sem a geopolítica, notadamente quando a partir de 2001, com um ataque mortal no coração do império, disseminou conflitos por todos os cantos e modificou para sempre o formato das guerras e o sentido da paz. A clássica frase “se desejas a paz, prepara-te para a guerra”[i], passou a fazer cada vez mais sentido.
Em sua nova fase, o capitalismo disseminou pelo mundo a ganância e a usura, distribuiu riqueza para poucos, e a pobreza para muitos. O que se projetou com a globalização, em seus momentos de deslumbramentos, se demonstrou pérfido, perverso e destruidor a partir do final da primeira década do século XXI. Impossível tentar compreender esse mundo sem a geopolítica, pela noção de totalidade que ela representa.
Mas qual geopolítica? Porque de repente se falava de geopolítica de alimentos, de biodiversidade, da água, do oriente médio, da África, do petróleo, dos recursos naturais, das questões ambientais... e por aí foi. A grande mídia trouxe para o foco de suas análises e interpretações aquilo que a geografia refutou por muito tempo, e a popularizou. Isso se acentuou com a disseminação de um vírus, mortal, o “Sars-Cov-2” sem nenhuma forma de contenção, a partir da China e daí para o mundo primeiro pela Europa, depois América, restante da Ásia, e África, e praticamente paralisou o sistema, com o necessário isolamento social para conter a sua propagação. O olhar crítico e cirúrgico a ser feito sobre esse processo não pode prescindir da geopolítica.
Os embates que se acentuaram, e estremeceram as relações políticas e comerciais entre grandes potências, notadamente EUA e China, fez parecer como restrito apenas a um desses países eventuais descontroles internos em suas políticas e levaram a uma quebra daqueles princípios que foram constituídos com a criação de organismos multilaterais. Assim, a ocorrência de uma epidemia foi inicialmente vista como algo localizado, típico do estilo de vida chinês, algo já enfaticamente questionado com o agravamento da pandemia. Havia um desejo implícito que isso reduzisse o poder crescente da China.
Os países não se prepararam para o impacto que isso teria na vida das pessoas, na economia dos países e do sistema caso houvesse uma disseminação global. De repente, o mundo se deparou com uma crise de impactos monumentais, com uma quarentena necessária para se prevenir do contágio e paralisou praticamente todo o processo produtivo, algo inédito na história recente, e vista de forma catastrófica somente comparado à grande depressão da década de 1930. Mas em número de mortos ainda perde, longe, da gripe “espanhola”, apesar da celeridade do contágio. 
Essa reviravolta por completo na maneira como a vida das pessoas se acostumara com a facilidade de deslocamento e com um consumo acelerado, embora o sistema não tivesse ainda se livrado dos sintomas da crise de 2008, deixou atônito o mundo como um todo. E não chegamos ainda sequer ao topo da disseminação desse vírus.
Em um ambiente criado pela globalização, de notícias que viajam por todo o globo em tempo real, e de redes sociais onde as pessoas se conectam e conversam a qualquer instante estejam onde estiverem, tentar compreender tudo isso se tornou a nova rotina. Ao mesmo tempo sendo necessário combater uma nova onda que esses mesmos mecanismos criaram, as notícias falsas, fake News, que confundem e criam uma horda de estúpidos, dispostos a acreditar naquilo que desejam, no que se convencionou chamar, ainda antes do Covid19, a doença que tem impactado o capitalismo, de “pós-verdade”.
Naturalmente cada noticiário vem acompanhado de relatos e análises de especialistas em diversas áreas, principalmente naquelas ligadas à epidemiologia, infectologia, das ciências médicas de uma maneira geral, mas também da economia, da política, da psicologia... e, naturalmente, da geopolítica. Enfim, nunca se intitulou tantos artigos com a palavra geopolítica a ilustrá-los, como nesse nosso tempo de impactantes imprecisões sobre não somente o que estamos vivendo, mas, principalmente, sobre o que virá como consequência dessa pandemia.
Mas porque é interessante olhar para todas essas reviravoltas, de como uma área temática da geopolítica se torna malquista como consequência de uma guerra mundial, na qual em tese ela teria sido coadjuvante, e para os dias de hoje, com uma guerra a um inimigo quase invisível, e não é o terrorismo, mas o terror de um vírus implacável e sem formas de contê-lo até então?
Porque assim chego ao ponto em que desejo demonstrar que não é tão somente a geopolítica, essencial para a compreensão de tudo isso. Mas a Geografia. A maioria desses artigos que são intitulados com a geopolítica, são centrados em seus conteúdos, nos elementos que compõem a geografia. O objetivo não é reforçar o que dito por Lacoste há pelo menos cinco décadas, de que a geopolítica é a geografia. Porque a globalização, como dito, fragmentou tudo, inclusive o conhecimento geográfico.
Ocorre que esses elementos que são necessários para identificar a origem do vírus, as condições em que ficam as cidades como forma de combatê-lo, a disseminação pelo espaço geográfico, a alteração dos lugares e hábitos até então corriqueiros, o reforço das estruturas nas áreas de saúde em grandes metrópoles de fortes densidades demográficas bem como o atlas ou mapeamento dessas fragilidades, a transposição de fronteiras praticamente inexistentes enquanto barreira, a forma de aceleração do contágio inicialmente por meio de vias de transportes aéreas ou de grandes transatlânticos, o necessário isolamento social de populações que precisam ficar restritas a suas residências, em seus bairros, seja em casas, condomínios horizontais ou verticais, o impacto na economia e a distribuição espacial como ele ocorre, e as mudanças nos comportamentos individuais e coletivos que tudo isso possibilita, são, inevitavelmente questões necessárias e postas no hoje e no depois para serem analisadas, entendidas e compreendidas em todas as suas dimensões pela geografia. Não há um único elemento em todo esse processo que não caiba em trabalhos de pesquisas da Geografia em suas mais diversificadas áreas do conhecimento, inclusive da geolocalização, nas informações geoprocessadas, por onde “viaja” esse vírus, os países, as regiões e setores das cidades mais infectados.
Em que entra a Geopolítica, então? Na análise estratégica dos impactos gerados pelas medidas tomadas para combater o vírus; a paralisia das cidades e os impactos econômicos que deverão gerar processos recessivos e depressivo; as alterações na ordem geopolítica mundial, com a provável troca de hegemonia entre as grandes nações líderes do comércio mundial e dos possíveis conflitos e guerras que advirão como resultado de desentendimentos naturais nesse processo. Some-se a isso, como área de interesse da geopolítica, a ação de organismos multilaterais, como a OMS, FMI e a ONU, dentre outros, e como sairão desse processo altamente desgastante a partir da forma como os países verão suas ações. Fundamentalmente, a geopolítica centra o seu olhar eminentemente estratégico no interesse dos estados nações, das grandes corporações, da beligerância e das relações entre os estados-nações, e, internamente, como sobreviverão os setores estratégicos e empresas que representam o capital nacional para além fronteiras e na defesa do território nacional.
A globalização, o neoliberalismo principalmente e o sistema capitalista em essência, se tornam pacientes em alto grau de contaminação e com grandes possibilidades de frequentar uma unidade de terapia intensiva. O olhar sobre essa possibilidade e as consequências do estrago que essa pandemia causará em todos os segmentos sociais e por todos os cantos do mundo, se tornam, sim, elementos essenciais da abordagem Geopolítica.
Pode-se então observar diferenças, nuances que são identificadas quando se compreende a Geografia como um saber estratégico, e um ramo de seu conhecimento que se preocupa por meio da necessária busca do conhecimento estratégico, a identificação da política que norteia as ações dos países e/ou grupos de países e como se dão e se darão suas relações: a geopolítica.
Concluo considerando como algo relevante, inclusive como parte do ensinamento posto por Yves Lacoste, ser necessário resgatar o papel da geografia crítica. E reforço o seu destaque à urgência de se retomar os estudos de um dos mais renomados geógrafos, contido por governos da época pelo caráter social de sua obra e pelo seu olhar libertário para o mundo. Este é o momento da geografia resgatar a obra e os ensinamentos de Elisée Reclus. Por uma Geografia crítica, política e necessária para que os geógrafos não se limitem somente a descrever o mundo, mas que possam contribuir para transformá-lo.



[i] “Si vis pacem, para bellum”, Públio Flávio Vegécio Renato, conhecido como Vegécio, escritor do Império Romano do século IV.

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