segunda-feira, 5 de julho de 2010

MINHA PEQUENA “WENDY”

(Escrito em abril de 2008. Reedito aqui novamente para aplacar a saudade. Nesse mês de outubro, o dia da criança faz aumentar a lembrança de minha filha. Essa crônica, que publiquei no livro que escrevi para ela, é uma das que mais vezes li e uma das que mais gosto.  Um beijo minha filha, aonde você estiver)
Estou a milhares de quilômetros de distância de casa. No momento em que aproveito para escrever essa crônica espero o horário do vôo que me levará para Salvador na área de alimentação do Aeroporto do Recife. Passei cinco dias na cidade de João Pessoa, participando da Conferência da Terra, um evento feito para discutir os problemas ambientais que afetam o planeta e afligem a humanidade. Muito embora, apesar de aflitas, as pessoas ainda resistem em mudar hábitos e rever a lógica da nossa sociedade, consumista e predadora da natureza.
É a primeira viagem que faço depois da morte da minha Carol. Desde antes de sair de casa eu ficava a me perguntar qual seria a minha reação diante de uma possível solidão que poderia me afetar e da preocupação em saber que não ficavam mais dois filhos com a mãe, agora, somente o Iago estava a lhe fazer companhia. Afinal, seria uma solidão também para ela, que ficaria em casa, ambiente onde por todos os lados estão presentes marcas da Carolina.
Como eu suspeitava por todo o tempo a lembrança da Carolina me acompanhou. O momento mais forte foi quando assisti a um belíssimo espetáculo da natureza: o pôr do sol na cidade da capital paraibana. Na verdade em uma das cidades da Grande João Pessoa, Cabedelo, na praia do Jacaré. Transformado em um verdadeiro ritual, para fins de atratividade turística, ao ritmo de uma ótima interpretação do Bolero de Ravel, por um artista local, saxofonista, o espetáculo é belíssimo, e atrai centenas de pessoas, turistas ou não, que se deleitam ao ver o sol desaparecer às 17 horas da tarde. Segundo os paraibanos é o lugar onde o sol nasce e se põe primeiro no Brasil, e isso parecer ter se tornado motivo de orgulho, bem aproveitado por um povo simpático e hospitaleiro e por uma cidade surpreendente em sua beleza.
Por opção da maneira de viver meu luto, tenho evitado ir a reuniões, principalmente festivas, a bares e lugares onde haja muita aglomeração, a não ser com meu filho e a Celma. Mas aceitei o convite de duas amigas que estavam participando do mesmo evento e fomos juntos ver aquilo que já se tornou uma das principais atrações turística de João Pessoa.
Não me arrependi. De fato é muito bonita a visão que temos das barracas colocadas às margens do rio Paraíba. Mas ficamos apenas o prazo de terminar a apresentação do bolero, já com o sol tendo descido por trás das águas. Depois fomos conhecer as demais barracas e lugares de vendas de artesanato, bijuterias e roupas, com destaque para bonitas confecções produzidas com algodão colorido, exclusividade dessas paragens, por enquanto, por ter a Embrapa sediado no Estado da Paraíba o projeto que possibilitou isso.
Esses momentos, da beleza do sol desaparecendo no poente, e de me deparar com uma enorme quantidade de barracas vendendo uma porção de objetos que eram as coisas que a Carol mais gostava de fazer me fizeram sentir uma forte saudade. Ao comprar algumas coisas para presentear Celma e Iago, vendo algumas roupas para garotas e aquele diversidade de artesanato, comecei a sentir uma profunda tristeza. A dor no peito, que às vezes aparece, parecendo que o coração está sendo comprimido voltou forte e me deixou abatido.
Saímos logo dali, e fomos procurar um bar próximo à praia, e de onde estávamos hospedados. Mas a angústia e a saudade cresciam dentro de mim, e me fazia querer falar da Carol, mas o que deveria ser um desabafo para mim, certamente era um assunto que minhas amigas não queriam prolongar. Fiquei então a observar ao meu redor, e por todos os lados eu via uma garota da idade da Carol. Num pequeno muro quebra-mar, fiquei observando alguns pais acompanhando suas filhas, um pouco mais novas do que ela e a lhes mostrar o mar e a lua que surgia por trás dele.
Lembrei-me de quantas vezes, em Salvador principalmente e Florianópolis, nos divertimos à beira do mar, e como num projetar de slides esses momentos vieram despertar a minha memória. Mas só me deixava mais triste. Lembrar da Carolina ainda me traz muita tristeza, mas sei que eu deveria me lembrar desses momentos com alegria, pois pude vivê-los intensamente e demonstrar por ela todo o meu amor.
Ao chegar ao hotel, e responder um e-mail da Celma, chorei profundamente enquanto escrevia e relatava a solidão que eu sentia naquele momento e a enorme saudade que eu sentia dela e do Iago, mas o que me fazia chorar e me deixava triste era a lembrança de minha pequena.
Nos dias seguintes, a companhia de novos colegas, conhecidos ali mesmo, amenizou esse meu sofrimento, sintoma de que até este momento não consigo viver a ausência da minha filha, buscando tê-la presente.
No aeroporto, como lá na praia, pude vê-la em cada menina que eu imaginasse ter mais ou menos a sua idade. E como parece ter se multiplicado a quantidade de garotas dessa idade desde que a Carol partiu. Por todos os lados elas parecem transmitir uma mensagem que tem como objetivo não deixar jamais que eu deixe de pensar nela, a cada momento, por qualquer lugar por onde eu estiver.
Em meio a essas lembranças pensei na Wendy, personagem da história do Peter Pan. Foi quando resolvi começar a escrever essa mensagem. Lembrei-me deles, personagens que marcaram a minha infância porque o fundamento da existência da Terra do Nunca era preservar para sempre o sentido de ser criança. Não crescer, recusar a tornar-se adulto, e manter vivas sempre as fantasias infantis. Pois assim será, com minha querida Carol, só poderei vê-la em seus dez aninhos infantis, por quanto tempo a vida passe para mim. Para nós, que a amamos tanto.
Vendo aquelas garotinhas a correr ali por todos os lados, plenas de inocências e alegrias, imaginei-me daqui a dez, vinte anos, se a morte permitir, a continuar lembrando-me da minha pequena Wendy, agora na Terra do Nunca, imortalizada em nossa memória nessa tenra e doce idade.

Quão saborosa é a infância, momento em que fantasiamos um mundo repleto de heróis, de ambientes construídos sempre de forma maniqueísta, numa eterna luta entre o bem e o mal, tal como nossos pais transmitem suas heranças culturais marcadas pela religiosidade. Peter Pan foi para mim um herói que lutava para manter nosso universo da fantasia, e a figura tragicômica do Capitão Gancho representava a perversidade e o comportamento abjeto dos que não compreendem o jeito pueril e aproveitam-se da inocência e fragilidade típicas dessa fase da vida.
Ter minha filha sempre criança como desejavam Wendy e Peter Pan, não me possibilita, por outro lado, sonhar com o seu mundo da adolescência. Isso já me jogou por vezes em outra situação, de observar as garotas com idade entre 15 e 16 anos e tentar construir uma imagem do que seria minha filha nesta idade. Fico pensando se ela manteria seus desejos fortemente representados em seus traços de desenhos, de ser uma estilista. Tanto ver aquelas garotas em seus dez anos, idade da Carol, e pensar que a verei para sempre assim em minhas lembranças, quanto projetar sua imagem de um futuro que não acontecerá, como adolescente, me faz acordar para a triste realidade de uma perda precoce que desconstruiu parte de meu futuro.
Melhor voltar à Terra do Nunca, e ver minha pequena Carol, como a Wendy, flutuando pelo uso do pó de pir-li-pim-pim, tendo ao seu lado a fada Sininho a iluminar o seu caminho. É assim, portanto, que a verei e procurarei tê-la sempre ao meu lado. Por isso as pessoas eternizam-se em nossa memória, sempre construímos para elas um universo que represente o que faria sentido em suas vidas, mesmo sendo um mundo repleto de lugares impossíveis.

Carol queria ser estilista, mas não se via como adulta, ela julgava já viver isso, desenhando, vestindo seu manequim quando queria criar um estilo, acompanhando todo o mês as novidades da moda, mesmo em revista para adulto, mas com olhar de criança. Brincando e se divertindo como toda criança de sua idade. É assim que a verei para sempre: minha pequena Wendy, minha eterna Carol.
(Publicado no livro DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU, de minha autoria, em dezembro de 2008, um ano depois da morte da pequena Carol)

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