sexta-feira, 26 de junho de 2020

NASCENTES: O BERÇO DAS ÁGUAS – ONDE TUDO COMEÇA

Imagem, CPT
Quando nos debruçamos sobre os estudos a respeito da questão hídrica, sob quaisquer aspectos, independente de estarmos falando de crise ou não, mesmo que seja para o simples entendimento de um (quase) mistério que cerca a importância da água em nossa vida, passa despercebido algo que é crucial para termos o entendimento necessário sobre esse líquido vital. Sabemos por um deslumbramento natural para onde vão as águas. Ou para os grandes rios, essa é uma resposta óbvia, mas, também sabemos que dos grandes rios o destino final das águas são os oceanos.
Mas, de onde vem a água? Mais do que um mistério, porque se torna evidente ao mínimo estudo sobre o ciclo da água, isso representa um aspecto da cultura que se criou a respeito desse líquido essencial para nossas vidas. Talvez por estar correndo livremente, pelo menos é o que se imagina, e ser considerado um bem comum (ao menos até então), há uma certa ignorância natural sobre a necessidade e importância de sabermos qual é o ponto de partida dos mananciais, córregos, rios... e até mesmo para se ter uma compreensão em sua origem da formação de lagos, lagoas, açudes, barragens, mares fechados, oceanos. Talvez a questão não seja a indiferença, e até mesmo é lícito considerar que não há ignorância a respeito disso. Mas é fato, que se negligencia o quão é crucial sabermos a origem da água, o conhecimento do ciclo hidrológico, e, naturalmente, a necessidade de protegermos as nascentes, por onde ela retorna à superfície nesse deslumbrante e permanente ciclo que não é infinito, como também não é o fogo, o vento, o ar... a vida.
Óbvio em tudo isso, também, é que sem água não há vida. O que torna esse líquido vital para o ser humano e para todos os seres vivos, de todos os gêneros e espécies.
Na verdade, não se pode falar em um início, de onde se originaria a água, visto que o ciclo, que por seu próprio significado compreende uma permanente rotatividade e renovação, nesse caso por sua essência, não nos permite apontar por onde ele começaria. Naturalmente estamos falando de uma dinâmica que não é meramente repetitiva, mas que devemos observá-la dialeticamente, pois carrega em si mesmo mais do que elementos da matemática. Estamos falando de contradições e de situações que envolvem a natureza como um todo, e, exatamente por isso as condições que são criadas pelas ações antrópicas, terminam por quebrar essa relação, afetando todo um processo que deveria ser permanente e completo em toda a sua complexidade.
É possível, no entanto, apontar um começo de uma brotação da água, por onde ela passa a circular pela superfície da terra, para além de toda a sua dinâmica subterrânea, como parte de seu ciclo. O ponto de partida das águas superficiais é, portanto, uma nascente, por onde a água irá brotar para seguir o seu curso formador de mananciais, rios até desembocar no oceano, e depois evaporar para reiniciar o ciclo. E nesse percurso a vida, em toda a sua essência, se servirá para sobrevivência. Fauna, flora, seres humanos, constroem seus habitats em ambientes que possam lhes garantir água para sobreviver. Mesmo que de forma desequilibrada, com regiões em escassez, ou em estresse hídrico, nenhum ser vivo pode prescindir desse líquido vital para suas vidas.
Nascente - Córrego Vaca Brava - Goiânia
Ocorre que a humanidade, de forma geral, e em nosso caso, o Brasil, com toda a abundância de água, se veem diante de uma situação alarmante quando se trata de recursos hídricos. Entender como isso acontece poderia parecer banal, visto que basta olhar para o ciclo hidrológico para compreender que esse processo precisa ser completado no tempo definido pela natureza. Mas como é possível faltar água, quando ela está disponível? Elementar, seu ciclo tornou-se incompleto, porque foi abortado por ação humana, decorrente das formas de organização, das escolhas dos lugares que fizemos por séculos e milênios, para habitarmos, e pela necessidade de produzirmos em alta escala a fim de alimentarmos uma população que cresceu demasiadamente, e mais ainda a sua capacidade de consumir. Ao exportarmos água, embutida nos produtos (água virtual), quebramos em parte esse círculo.
Contraditoriamente isso se deu exatamente pela capacidade que adquirimos de produzir alimentos a partir do desenvolvimento tecnológico, mas essencialmente por termos controlado esse líquido essencial para vivermos. Na lógica de cada sistema em seu tempo, a água foi se tornando um “bálsamo”, para utilizarmos uma palavra de origem meio asiática e meio africana, mas oriental em seu sentido clássico, como algo que causa conforto, alivia e consola.
Porém dois aspectos devem ser ressaltados para encontrarmos as razões que nos levam a uma encruzilhada, decorrente dessas ações predatórias, ou mesmo que se diga equilibradas quando se faz da tecnologia um mecanismo para ampliar produtividade, e que se aplica também no uso das águas, principalmente na agricultura e na indústria.
Um deles é o crescimento demográfico exponencial, em enormes cidades superpopulosas com péssimos recortes urbanísticos, onde sobressai a destruição de mananciais que foram fundamentais em seus inícios para abastecimento de uma população que cresceu aceleradamente, ao passo em que o recurso hídrico para atender a essa demanda foi se deteriorando pela absoluta ausência de preocupação em mantê-lo disponível para uso dessas cidades que se expandiam, tanto em termos populacionais quanto com o aumento de indústrias.
Nascente: Córrego Beija Flor - Setor Jaó (Gyn)
Nas cidades, outrora surgidas sempre próximas a córregos ou rios, o desprezo por esses mananciais tornou-se uma constante nas políticas desenvolvidas por inúmeros gestores, e pela própria população, que farta das inoperâncias administrativas transformaram esses cursos d’águas em esgotos abertos.
O resultado disso, e suas consequências são visíveis, e óbvias em seus resultados perversos, que se volta contra a própria população. E, para sermos mais diretos e objetivos, contra quase todo o tipo de vida, excluindo-se aqueles microrganismos que se proliferam em função dessas condições de falta de higiene e saneamento básico: fungos, bactérias e até mesmo vírus (embora exista uma polêmica sobre se esses são seres vivos ou não), mas que encontram nesses ambientes os hospedeiros para suas reproduções terrivelmente aceleradas.
Mas não são somente as águas superficiais, mananciais que cortam as cidades ou seus entornos, que se tornam condutores de doenças, motivados pela sujeira e poluição de toda espécie. As fossas, cavadas para dar suporte às necessidades que não encontram suportes em ações de órgãos públicos, ou a ausência de saneamento básico, carregam para os lençóis freáticos todo o tipo de microrganismos que contaminam as águas subterrâneas. Acrescente-se a isso diversos produtos químicos que fazem parte de nosso estilo de vida, tanto em áreas urbanas quanto em seus entornos e zonas rurais, com um enorme contingente de agrotóxico que causa um sem-número de doenças fatais, como diversos tipos de câncer, ou que deixam sequelas, com crianças nascendo com malformações genéticas.
Nascente: Córrego Botafogo
Goiânia
Outro aspecto reside na absoluta ausência de capacidade dos órgãos públicos no atendimento a uma quantidade enorme de bairros periféricos, a partir de um forte crescimento horizontal, que se espalha pelas grandes cidades, e agora com mais força em função de uma quantidade enorme de condomínios fechados, acentuando um problema sério: o esgotamento dos lençóis freáticos.
Se investigarmos encontraremos facilmente locais onde antes brotavam nascentes, e em alguns casos logo adiante poderíamos encontrar um pequeno lago. Mas atualmente vamos nos deparar com um ressecamento dessas nascentes e o gradativo desaparecimento desses lagos, que só retornam a acumular água quando o período chuvoso reaparece. Há naturalmente uma razão, dentre outras, para isso. A ampliação dessa população periférica, e de residências não servidas pelo abastecimento público, leva a que, seja individualmente ou via administrações de uma enorme quantidade de condomínios, a alternativa para que se tenha água a servir-lhes se dê pela utilização da água dos lençóis freáticos, por meio de poços artesianos. Tanto na dimensão de atender a toda uma comunidade, ou com os minipoços artesianos sendo construídos individualmente. E podemos ainda colocar nessa conta, com um consumo ainda maior, as grandes empresas, seja indústrias ou grandes atacadistas, que buscam as proximidades das rodovias e pontos distantes do centro urbano, naturalmente não servidos pelo poder público para o abastecimento hídrico.
As consequências de todo esse processo nos trás de volta ao começo: as nascentes. Com o nível dos lençóis freáticos diminuindo gradativamente pelo uso acentuado desses poços artesianos, e uma distribuição pluviométrica aleatória, a recomposição obedecendo o ciclo hidrológico se torna mais lenta do que naturalmente deveria ocorrer. Assim falta força nesses lençóis para trazer a água de volta para a superfície, por meio das nascentes. Ou, se não quisermos usar essa expressão, podemos dizer que por uma questão natural, o volume dos lençóis freáticos deixam de ser suficientes para trazer a água de volta, via nascentes, para a superfície, ressecando lagos, mananciais (que se tornam intermitentes) e provocando estresse hídricos, ou levando a situações de escassez permanente, caminho para o qual parece estarmos indo.
Não nos parece, diante de todo essa incapacidade pública de lidar com o problema, que as medidas que estão sendo pensadas venham para resolver os problemas. A recente aprovação de um projeto de lei que retira do poder público a responsabilidade com isso, e divide com a ânsia gananciosa das empresas privadas, não nos permite sermos otimistas quanto ao que acontecerá em um futuro próximo.
Nascente: Córrego Capim Puba - Goiânia
Incapaz de compreender a dimensão de uma realidade perversa, criada pela própria inépcia em lidar com essa questão, o estado abdica de assumir o protagonismo para adotar medidas urgentes e transfere para empresários sequiosos de lucros as ações tanto na gestão da água, quanto do saneamento. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que tudo isso resultará em uma maior desigualdade no atendimento à essas demandas, como já aconteceu em outras partes do mundo, levando a que alguns governos recuassem nesses processos perversos de privatização desses serviços.
Se o poder público, abre mão de suas responsabilidades, e joga isso para o poder usurário, só restará às comunidades se juntarem, resistir e defender a todo o custo a manutenção de medidas que preservem as nascentes, que protejam os mananciais e que se preocupem em recompor uma natureza destruída pelo nosso estilo de vida, e pela lógica do funcionamento do sistema em que vivemos.
Como está acontecendo em outros países, está nas mãos dessas comunidades uma reação a tudo isso, pelo bem de suas sobrevivências. E não será exagero dizermos que estamos entrando numa era em que as próximas guerras, ou conflitos internos, se darão pela necessidade de defender os recursos hídricos, isso em meio a todos os tipos de desequilíbrios que já enfrentamos, como consequência de nossa incapacidade de lidarmos com o óbvio: a natureza é viva, permeada de contradições, e destruí-la é meio caminho andado para acabar com a nossa existência. Sem água, não há vida. E são pelas nascentes que elas devem retornar aos seus caminhos naturais.
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(*) As fotos, com exceção da primeira, foram feitas por alun@s da disciplina Geopolítica das Águas (2019), em um trabalho de grupo e seminário que visava avaliar as condições das nascentes na cidade de Goiânia e Aparecida de Goiânia.

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