Imagem, CPT |
Quando nos
debruçamos sobre os estudos a respeito da questão hídrica, sob quaisquer
aspectos, independente de estarmos falando de crise ou não, mesmo que seja para
o simples entendimento de um (quase) mistério que cerca a importância da água
em nossa vida, passa despercebido algo que é crucial para termos o entendimento
necessário sobre esse líquido vital. Sabemos por um deslumbramento natural para
onde vão as águas. Ou para os grandes rios, essa é uma resposta óbvia, mas,
também sabemos que dos grandes rios o destino final das águas são os oceanos.
Mas, de onde vem a
água? Mais do que um mistério, porque se torna evidente ao mínimo estudo sobre
o ciclo da água, isso representa um aspecto da cultura que se criou a respeito
desse líquido essencial para nossas vidas. Talvez por estar correndo
livremente, pelo menos é o que se imagina, e ser considerado um bem comum (ao
menos até então), há uma certa ignorância natural sobre a necessidade e
importância de sabermos qual é o ponto de partida dos mananciais, córregos, rios...
e até mesmo para se ter uma compreensão em sua origem da formação de lagos,
lagoas, açudes, barragens, mares fechados, oceanos. Talvez a questão não seja a
indiferença, e até mesmo é lícito considerar que não há ignorância a respeito
disso. Mas é fato, que se negligencia o quão é crucial sabermos a origem da
água, o conhecimento do ciclo hidrológico, e, naturalmente, a necessidade de
protegermos as nascentes, por onde ela retorna à superfície nesse deslumbrante
e permanente ciclo que não é infinito, como também não é o fogo, o vento, o ar...
a vida.
Óbvio em tudo
isso, também, é que sem água não há vida. O que torna esse líquido vital para o
ser humano e para todos os seres vivos, de todos os gêneros e espécies.
Na verdade, não se
pode falar em um início, de onde se originaria a água, visto que o ciclo, que
por seu próprio significado compreende uma permanente rotatividade e renovação,
nesse caso por sua essência, não nos permite apontar por onde ele começaria.
Naturalmente estamos falando de uma dinâmica que não é meramente repetitiva,
mas que devemos observá-la dialeticamente, pois carrega em si mesmo mais do que
elementos da matemática. Estamos falando de contradições e de situações que
envolvem a natureza como um todo, e, exatamente por isso as condições que são
criadas pelas ações antrópicas, terminam por quebrar essa relação, afetando
todo um processo que deveria ser permanente e completo em toda a sua
complexidade.
É possível, no
entanto, apontar um começo de uma brotação da água, por onde ela passa a circular
pela superfície da terra, para além de toda a sua dinâmica subterrânea, como
parte de seu ciclo. O ponto de partida das águas superficiais é, portanto, uma
nascente, por onde a água irá brotar para seguir o seu curso formador de
mananciais, rios até desembocar no oceano, e depois evaporar para reiniciar o
ciclo. E nesse percurso a vida, em toda a sua essência, se servirá para
sobrevivência. Fauna, flora, seres humanos, constroem seus habitats em
ambientes que possam lhes garantir água para sobreviver. Mesmo que de forma
desequilibrada, com regiões em escassez, ou em estresse hídrico, nenhum ser
vivo pode prescindir desse líquido vital para suas vidas.
Nascente - Córrego Vaca Brava - Goiânia |
Ocorre que a
humanidade, de forma geral, e em nosso caso, o Brasil, com toda a abundância de
água, se veem diante de uma situação alarmante quando se trata de recursos
hídricos. Entender como isso acontece poderia parecer banal, visto que basta
olhar para o ciclo hidrológico para compreender que esse processo precisa ser
completado no tempo definido pela natureza. Mas como é possível faltar água,
quando ela está disponível? Elementar, seu ciclo tornou-se incompleto, porque
foi abortado por ação humana, decorrente das formas de organização, das
escolhas dos lugares que fizemos por séculos e milênios, para habitarmos, e
pela necessidade de produzirmos em alta escala a fim de alimentarmos uma
população que cresceu demasiadamente, e mais ainda a sua capacidade de consumir. Ao exportarmos água, embutida nos produtos (água virtual), quebramos em parte esse círculo.
Contraditoriamente
isso se deu exatamente pela capacidade que adquirimos de produzir alimentos a
partir do desenvolvimento tecnológico, mas essencialmente por termos controlado
esse líquido essencial para vivermos. Na lógica de cada sistema em seu tempo, a
água foi se tornando um “bálsamo”, para utilizarmos uma palavra de origem meio
asiática e meio africana, mas oriental em seu sentido clássico, como algo que
causa conforto, alivia e consola.
Porém dois
aspectos devem ser ressaltados para encontrarmos as razões que nos levam a uma
encruzilhada, decorrente dessas ações predatórias, ou mesmo que se diga
equilibradas quando se faz da tecnologia um mecanismo para ampliar produtividade,
e que se aplica também no uso das águas, principalmente na agricultura e na
indústria.
Um deles é o
crescimento demográfico exponencial, em enormes cidades superpopulosas com
péssimos recortes urbanísticos, onde sobressai a destruição de mananciais que
foram fundamentais em seus inícios para abastecimento de uma população que
cresceu aceleradamente, ao passo em que o recurso hídrico para atender a essa
demanda foi se deteriorando pela absoluta ausência de preocupação em mantê-lo
disponível para uso dessas cidades que se expandiam, tanto em termos
populacionais quanto com o aumento de indústrias.
Nascente: Córrego Beija Flor - Setor Jaó (Gyn) |
Nas cidades,
outrora surgidas sempre próximas a córregos ou rios, o desprezo por esses
mananciais tornou-se uma constante nas políticas desenvolvidas por inúmeros
gestores, e pela própria população, que farta das inoperâncias administrativas
transformaram esses cursos d’águas em esgotos abertos.
O resultado disso,
e suas consequências são visíveis, e óbvias em seus resultados perversos, que
se volta contra a própria população. E, para sermos mais diretos e objetivos,
contra quase todo o tipo de vida, excluindo-se aqueles microrganismos que se
proliferam em função dessas condições de falta de higiene e saneamento básico:
fungos, bactérias e até mesmo vírus (embora exista uma polêmica sobre se esses são seres vivos ou não), mas
que encontram nesses ambientes os hospedeiros para suas reproduções
terrivelmente aceleradas.
Mas não são
somente as águas superficiais, mananciais que cortam as cidades ou seus
entornos, que se tornam condutores de doenças, motivados pela sujeira e
poluição de toda espécie. As fossas, cavadas para dar suporte às necessidades
que não encontram suportes em ações de órgãos públicos, ou a ausência de
saneamento básico, carregam para os lençóis freáticos todo o tipo de microrganismos
que contaminam as águas subterrâneas. Acrescente-se a isso diversos produtos
químicos que fazem parte de nosso estilo de vida, tanto em áreas urbanas quanto
em seus entornos e zonas rurais, com um enorme contingente de agrotóxico que
causa um sem-número de doenças fatais, como diversos tipos de câncer, ou que
deixam sequelas, com crianças nascendo com malformações genéticas.
Nascente: Córrego Botafogo Goiânia |
Outro aspecto
reside na absoluta ausência de capacidade dos órgãos públicos no atendimento a uma
quantidade enorme de bairros periféricos, a partir de um forte crescimento
horizontal, que se espalha pelas grandes cidades, e agora com mais força em função
de uma quantidade enorme de condomínios fechados, acentuando um problema sério:
o esgotamento dos lençóis freáticos.
Se investigarmos
encontraremos facilmente locais onde antes brotavam nascentes, e em alguns
casos logo adiante poderíamos encontrar um pequeno lago. Mas atualmente vamos
nos deparar com um ressecamento dessas nascentes e o gradativo desaparecimento
desses lagos, que só retornam a acumular água quando o período chuvoso
reaparece. Há naturalmente uma razão, dentre outras, para isso. A ampliação
dessa população periférica, e de residências não servidas pelo abastecimento
público, leva a que, seja individualmente ou via administrações de uma enorme
quantidade de condomínios, a alternativa para que se tenha água a servir-lhes se
dê pela utilização da água dos lençóis freáticos, por meio de poços
artesianos. Tanto na dimensão de atender a toda uma comunidade, ou com os minipoços
artesianos sendo construídos individualmente. E podemos ainda colocar nessa
conta, com um consumo ainda maior, as grandes empresas, seja indústrias ou grandes
atacadistas, que buscam as proximidades das rodovias e pontos distantes do
centro urbano, naturalmente não servidos pelo poder público para o
abastecimento hídrico.
As consequências
de todo esse processo nos trás de volta ao começo: as nascentes. Com o nível
dos lençóis freáticos diminuindo gradativamente pelo uso acentuado desses poços
artesianos, e uma distribuição pluviométrica aleatória, a recomposição
obedecendo o ciclo hidrológico se torna mais lenta do que naturalmente deveria
ocorrer. Assim falta força nesses lençóis para trazer a água de volta para a
superfície, por meio das nascentes. Ou, se não quisermos usar essa expressão,
podemos dizer que por uma questão natural, o volume dos lençóis freáticos
deixam de ser suficientes para trazer a água de volta, via nascentes, para a
superfície, ressecando lagos, mananciais (que se tornam intermitentes) e
provocando estresse hídricos, ou levando a situações de escassez permanente,
caminho para o qual parece estarmos indo.
Não nos parece,
diante de todo essa incapacidade pública de lidar com o problema, que as
medidas que estão sendo pensadas venham para resolver os problemas. A recente
aprovação de um projeto de lei que retira do poder público a responsabilidade
com isso, e divide com a ânsia gananciosa das empresas privadas, não nos
permite sermos otimistas quanto ao que acontecerá em um futuro próximo.
Nascente: Córrego Capim Puba - Goiânia |
Incapaz de
compreender a dimensão de uma realidade perversa, criada pela própria inépcia
em lidar com essa questão, o estado abdica de assumir o protagonismo para adotar
medidas urgentes e transfere para empresários sequiosos de lucros as ações tanto
na gestão da água, quanto do saneamento. Não é preciso ser muito inteligente para
perceber que tudo isso resultará em uma maior desigualdade no atendimento à
essas demandas, como já aconteceu em outras partes do mundo, levando a que
alguns governos recuassem nesses processos perversos de privatização desses
serviços.
Se o poder
público, abre mão de suas responsabilidades, e joga isso para o poder usurário,
só restará às comunidades se juntarem, resistir e defender a todo o custo a
manutenção de medidas que preservem as nascentes, que protejam os mananciais e
que se preocupem em recompor uma natureza destruída pelo nosso estilo de vida,
e pela lógica do funcionamento do sistema em que vivemos.
Como está
acontecendo em outros países, está nas mãos dessas comunidades uma reação a
tudo isso, pelo bem de suas sobrevivências. E não será exagero dizermos que
estamos entrando numa era em que as próximas guerras, ou conflitos internos, se
darão pela necessidade de defender os recursos hídricos, isso em meio a todos
os tipos de desequilíbrios que já enfrentamos, como consequência de nossa
incapacidade de lidarmos com o óbvio: a natureza é viva, permeada de contradições,
e destruí-la é meio caminho andado para acabar com a nossa existência. Sem água,
não há vida. E são pelas nascentes que elas devem retornar aos seus caminhos
naturais.
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(*) As fotos, com exceção da primeira, foram feitas por alun@s da disciplina Geopolítica das Águas (2019), em um trabalho de grupo e seminário que visava avaliar as condições das nascentes na cidade de Goiânia e Aparecida de Goiânia.
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