“O historiador deixa a futurologia para os outros.
Mas tem uma vantagem sobre o futurólogo.
A história o ajuda, se não a predizer o futuro,
ao menos a reconhecer o que há de historicamente novo
no presente – e com isso, talvez, lançar luz sobre o
futuro”.
(ERIC HOBSBAWM)[1]
Estátua de Churchill sofre ataque no Reino Unido - O Dia |
Em meio a essa
explosão de fúria justificada, como reação à violência absolutamente
desnecessária e injustificada de uma estrutura policial racista e vinculada às ideias
e comportamento típicas dos supremacistas brancos, uma onda que se espalhou por
outras partes do mundo, tornaram-se alvos da multidão estátuas que glorificam
colonizadores responsáveis por impor esse viés de uma permissividade que
justifica no imaginário da sociedade a distinção entre heróis e bandidos pela
cor de suas peles, pela condição social ou pelo local de moradia. Como se vê
muito também aqui no Brasil, as periferias das cidades, as comunidades pobres
são alvos permanentemente de ações violentas das polícias, quase sempre
terminando em assassinatos de jovens inocentes. E inverte-se a ordem no sentir
medo de quem.
Em sequência a
essa reação, que levou a destruição ou a ameaça de retirada de estátuas de
praças e locais públicos, uma série de questionamentos e reportagens circularam
pelos meios de comunicação, tentando compreender esses atos tidos como extremos
e de vandalismos, ou debatendo quais as importâncias desses símbolos que se espalham
por praticamente todas as grandes cidades do mundo. Em muitos casos tornados
atrativos turísticos pela grandiosidade das artes que os erigiram a essa
condição, mas sem que a história possa expor a nu a plena realidade do que está
por trás desses personagens.
Estátua de soldado confederado, nos EUA derrubado pela multidão - O Estadão |
O que nos falta
fazer é a iconologia, para que possamos entender a história e/ou o tema que
está por trás de cada um desses personagens, representados por estátuas, nomes
de logradouros e construções públicas, e saber o verdadeiro significado de seus
atos. Evidentemente com todo o cuidado para não cometermos o erro do
anacronismo. Mas é essencial que a cada tempo possamos fazer uma revisão
historiográfica ampla, de forma que a sociedade possa saber o que representa ou
representou essas figuras. É claro que suas exposições dessa forma não é um
mero sinal de agradecimento. Elas representam, por meio desse simbolismo,
valores que estão ligados às classes sociais dominantes, em cada época. E, por
prosseguirem dominando enquanto classes pelos tempos que advieram, significam a
manutenção desses valores, e objetivamente visam prosseguir no intento de persistir
no controle do poder político.
Estátua de Buda destruída pelo Talibã no Afeganistão - BBC |
O que já foi
chamado de “estatuamania” atingiu o auge entre 1870 e 1914, quando 150 estátuas
foram erigidas em Paris, contra apenas 26 de 1815 a 1870 – e estas basicamente
figuras militares, quase todas removidas depois de 1870. (...) Mas depois da
Grande Guerra, com exceção dos novos memoriais de guerra universais, estátuas
de bronze e mármore saíram claramente de moda”.[2]
Não devemos olhar
para essas representações somente pelo aspecto artístico, que atrai a atenção muitas
vezes pela beleza da plasticidade com que foi produzida. Porque ela carrega,
sempre, um forte simbolismo. Qualquer que seja a obra de arte ela reflete uma
concepção ideológica, muitas vezes marcada por um movimento que rompe com
modelos anteriores, e se impõe com novos traçados, e que se adequa ao tempo em
que foi construída. Independente de analisarmos sob o viés político à esquerda
ou à direita. Ela é representativa de algum tipo de expressão que reflete
aquele momento, ou para se contrapor ao poder estabelecido, e confrontá-lo, ou
para reproduzir a ideologia dominante.
Mural de Guernica - Wikipedia |
Por isso que não
somente a iconografia é importante quando se trata de analisar uma obra de
arte. Mas também é preciso fazer um estudo iconológico, que possa interpretar
de maneira mais aprofundada todo o contexto que levou à produção daquela peça,
os condicionantes históricos. Ou seja, que vá além da análise estética e compreenda
a contextualização do tempo em que ela se deu e as concepções ideológicas que
ela carrega.
Em sendo assim,
podemos sim, e devemos questionar as razões de determinadas representações
artísticas prevalecerem sobre um tempo que está além da sua existência enquanto
objeto artístico a que ela se destinava. Sua permanência obedece a interesses
que estão ligados aos poderes, às ideologias dominantes e à manutenção de
status quo, com as consequentes determinações que estão por trás de todo o seu
simbolismo: controle ideológico, conformação social e aceitação de uma história
oficial, para além da realidade imanente.
Para prosseguir
mais um pouco na análise feita por HOBSBAWM:
Há três demandas
básicas que o poder costuma fazer à arte, e que o poder absoluto faz em escala
bem maior do que autoridades mais limitadas. A primeira delas é demonstrar a
glória e o triunfo do próprio poder (...); A segunda grande função da arte
nesse contexto era organizar o poder como drama público. Rituais e cerimônias
eram essenciais para o processo político (...); Um terceiro serviço que a arte
poderia prestar ao poder era educacional ou propagandístico: ela poderia
ensinar, informar e inculcar o sistema de valores do Estado.[3]
Estátua de Lênim derrubada por grupos de extrema-direita na Ucrânia - FSP |
Pois bem, estamos
vivendo um momento de intensas, embora não bruscas, transformações sociais. É
aquele período identificado quando analisamos os declínios de formações
econômicas e sociais, de transição histórica. Momento em que um modo de
produção gradativamente vai sendo substituído por outro. Um tempo lento, que
pode durar mais de um século. Esse processo tende a ser de intensos embates,
revoltas sociais, crises econômicas de caráter estrutural e políticas, que são
acompanhadas de aumento da criminalidade e desobediência civil. Nesse momento
costuma ascender ao poder personagens populistas, com discursos fáceis, mas de
comportamentos autoritários e antidemocráticos. Quando não há no horizonte uma
formação social que possa substituir a decadente, essa transição pode ser ainda
mais demorada e angustiante.
Estátua de padre investigado por pedofilia na Polônia - Notícias ao minuto |
Em Bristol, Reino Unido, multidão derruba estátua de comerciante de escravos - GGN |
Como já expressei
em outras publicações, e como historiador, abomino a presença de uma estátua em
pleno centro de Goiânia, na confluência de duas de suas mais importantes
avenidas. Não devemos negar a importância e necessidade de estudar os feitos e
fatos que estão por trás desse personagem, denominado por um apelido cuja
versão, provavelmente fantasiosa, teria sido originada do espanto dos indígenas
que ele tinha por prática aprisiona-los para escravizá-los e vende-los em São
Paulo, de onde era originário. Embora vivesse boa parte de sua vida pelos
sertões e morrido em Vila Boa de Goiás, atual Cidade de Goiás, Bartolomeu Bueno
da Silva, Anhanguera, “Diabo Velho”, como ficou chamado, assim como os demais
bandeirantes, e por meio das expedições denominadas “Entradas”, além de
delimitar territórios se ocupavam em perseguir negros escravizados fugitivos e aprisionar
índios.
Bartolomeu Bueno, filho - o Anhanguera ou "Diabo Velho" - Goiânia, Centro |
Anhanguera não é
herói, nem merece o pedestal em que se encontra, representado por sua estátua,
com um bacamarte na mão, símbolo da conquista e opressão. Os que reforçam esse
falso mito perpetuam uma lógica de dominação colonial, de submissão e de um
provincianismo que termina por reduzir o tamanho da importância e da valoração
daqueles que construíram por seus esforços, trabalho e dedicação uma outra
história, que representa muito mais os valores e cultura do povo goiano. Quem
sabe outro símbolo melhor representasse a ocupação dessa região, de fixação no
lugar, diferente dos preadores de índios e saqueadores de ouro, cujos resultados
iam enriquecer outros lugares.
Mais recentemente Borba Gato foi o alvo de grupos ensandecidos, e ávidos por revisarem uma historiografia paisagística que enfeitam, ou enfeiam, as cidades, quase que como num movimento iconoclasta moderno. Tal qual outros bandeirantes, seu feitos "heroicos" vem repletos de perversidades contra povos originários. Acusado de ser preador de índios, saqueador de ouro, escravizador de negros e estuprador de mulheres indígenas, sua aura de "santo" só serve ao interesses da elite paulista, que se beneficiou desses atos de violência e tem sido usado culturalmente para formular o "mito do herói fundador". Representa perfidamente todo o processo sangrento de ocupação do sertão e o genocídio cometido contra indígenas e contra os negros. A despeito do "progresso" que se atribuiu a esses aventureiros, não se pode omitir seus atos homicidas, e, se seus feitos ao mesmo tempo não podem ser vistos anacronicamente, também não se pode negar o papel destruidor de grupos étnicos e extorsão de riquezas de um interior que se manteve pobre como decorrência de seus "feitos gloriosos" que regozijam as camadas dominantes.
Assim, no
questionamento e na revisão historiográfica, torna-se necessário rever muitos
mitos criados ao sabor dos interesses políticos das classes dominantes, no
objetivo de manter submisso o povo, a idolatrar personagens que outrora
oprimiam seus antepassados. Na radicalidade da luta, e nas transformações
sociais, no advento de multidões que questionam tudo isso, essas revisões se
dão na prática, no enfrentamento e na derrubada daqueles simbolismos que
afrontam as lutas contra as desigualdades sociais, o racismo, a misoginia e
todos os tipos de preconceitos.
[1] HOBSBAWM, Eric. Um século de
simbolismo cultural. In: Tempos Fraturados, cultura e sociedade no século
XX. São Paulo: Cia das Letras, 2013. P. 39
[2] HOBSBAWM, Eric. Arte e Poder. In:
Tempos Fraturados, cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Cia das Letras,
2013. P. 271
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