O que deu errado? Imaginávamos no
começo do século XXI estarmos entrando em uma nova era, um novo tempo onde a
esquerda poderia botar em prática toda a teoria com a qual esgrimia as palavras
de ordem nas lutas políticas e sociais desde o final da ditadura militar.
Vamos por parte. Desde a
identificação de nossos sonhos até a realidade objetiva, de como se constitui a
estrutura política e burocrática do estado brasileiro. Refaçamos o percurso,
resgatemos a história. E, creio, entenderemos o enredo do que está acontecendo e do que virá.
Voltemos no tempo.
Seguramente nossos sonhos foram
ameaçados na derrota das eleições diretas, em 1984. E comparando aquele
momento, com o que estamos vivendo agora, podemos compreender a capacidade como
os setores reacionários e oportunistas fisiológicos se adaptam às
circunstâncias, com o intuito de estarem sempre próximos ao Poder. Game of
Thrones!
Lembro-me bem de todo o
envolvimento dos setores organizados da sociedade brasileira, eu participei
desse processo nos últimos anos da ditadura. Acuado, desmoralizado e
enfraquecido, o regime militar perdia apoio à medida em que a luta democrática
tomava impulso e se fortalecia. As mobilizações foram espetaculares, e a
multidão se multiplicava nas ruas a cada comício pró-diretas. Naquele momento
houve uma aglutinação dos setores progressistas de todos os partidos, à exceção
do PDS, que dava sustentação ao governo militar. Seus membros eram em sua
grande maioria oriundos da antiga Arena, partido fundado pelos militares e que
lhe dava apoio.
As circunstâncias eram outras,
opostas em todos os sentidos à situação que vivenciamos nos dias de hoje. Contudo,
há uma similaridade, o que se conta, no final, são os votos. A força das ruas é
importante, mas no jogo político o que define é a articulação política. Naquele
momento, de grande pressão popular, praticamente funcionando contra o governo
militar, a maioria dos parlamentares votaram a favor da emenda das diretas: 298
a 65. Mas, faltaram 22 votos para consagrar, naquele momento, o fim do regime
militar.
A derrota da Emenda Dante de
Oliveira não botou fim à esperança de derrotá-lo, mas dividiu a esquerda. A
partir daquele momento todos os esforços concentraram-se no Plano B: o Colégio
Eleitoral. Era por esse instrumento que os presidentes eram eleitos. Ou melhor,
tinham suas escolhas formalizadas, já que eram definidos pelos militares.
Contudo, o resultado da votação pelas diretas apontava uma possibilidade
concreta de escolher o próximo presidente por esse mecanismo. Para dar uma
conotação mais democrática constituiu-se toda uma estrutura, aproveitando-se
das campanhas das diretas, com a realização de mais atos e comícios por todo o
Brasil, agora em torno da candidatura de Tancredo Neves, político tradicional
de Minas Gerais, que naquele momento se aliara às forças que desejavam as
mudanças.
Por ironia, que o futuro iria contradizer,
o Partido dos Trabalhadores recusou-se a apoiar esse caminho. Isso foi levado a
tal extremo que alguns parlamentares que se recusaram a seguir essa orientação,
ou melhor, decisão partidária, foram expulsos do partido, num momento em que o
sectarismo raso era uma marca registrada no PT, naquele momento dominado por
tendências esquerdistas, que décadas adiante foram se afastando e fazendo
surgir outras organizações, que mantiveram essa característica, de primar por
um tipo de política isolacionista focada em princípios que os mantiveram sempre
reduzidos. Mas o PT foi na direção oposta, e, à medida em que ganhava novos
parlamentares e crescia com vitórias em prefeituras e governos, passou a adotar
uma política mais pragmática e conciliatória. Veremos o resultado disso mais
adiante.
O movimento Diretas Já! Transformou-se em Tancredo
Já!. Como era previsível, devido ao quadro político de isolamento do
partido do governo, o PDS, que naquele momento tinha como candidato Paulo
Maluf, a eleição de Tancredo Neves, do PMDB, sagrou-se vitoriosa. José Sarney,
que havia liderado uma dissidência no PDS e criado a Frente Liberal (PFL),
tornou-se o vice mais bem-sucedido da história política brasileira. Uma
tragédia demonstrou que nada é fácil na democracia brasileira. Depois de tudo
que se fez, e por mais de um ano de mobilizações de milhões de pessoas nas
ruas, o presidente eleito, Tancredo Neves, faleceu antes de tomar posse. A
tensão que se seguiu à sua morte era natural, imaginava-se poder haver alguma
reação dos militares e a imposição de seu candidato. Se a decisão a seguir foi
jurídica ou política, pouco importa, mas foi garantida a posse do vice que se
tornou presidente. O Brasil se via então rumando para uma nova realidade
política, sem o regime militar, mas com um governo conservador, de coalizão
ampla, formado para tentar reconstruir o país politicamente.
Pelas circunstâncias, o governo
Sarney foi importante para a democracia, principalmente pela convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte. Contudo, durante o embate travado pela nova
Constituição, em que a luta de classes se elevou a níveis pré-revolucionários,
principalmente em decorrência da discussão em torno da reforma agrária, os setores
reacionários conseguiram se organizar, e, com a complacência, conivência e
cumplicidade do estado brasileiro e suas instituições, principalmente polícia e
judiciário, agiram criminosamente contra os setores populares e assassinaram
centenas de lideranças sindicais e políticas, especialmente devido à discussão
e luta pela reforma agrária.
O desgaste do governo Sarney,
incapaz de tirar o país da imobilidade (a década de 1980 foi considerada “a
década perdida”, embora não somente em relação ao Brasil) e fazer baixar uma
inflação estratosférica, aliado a toda uma campanha feita pela mídia que
procurava desgastar a política e o serviço público, servindo-se da velha
cantilena de corrupção e ineficiência, projetou um jovem governador de Alagoas.
Aliado da poderosa Globo, rede que se formou à sombra dos militares, Fernando
Collor se projetou na mídia nacional como o “caçador de marajá”, em alusão ao
fato distorcido pela mídia de que os servidores públicos ganhavam muito e eram
ineficientes. Isso já fazia parte da estratégia do capitalismo globalizado, em
curso a partir da Europa e EUA, que, via políticas neoliberais visavam reduzir
o tamanho do Estado, privatizar em larga escala e abrir as fronteiras para o
capital financeiro internacional.
Com Collor o país se abria a essas
políticas. Sua eleição só foi possível com a ajuda da Globo, que montou
desavergonhada farsa em torno do último debate televisionado em cadeia
nacional. Seu oponente, naquele momento com maiores chances de vitória era Luiz
Inácio Lula da Silva. A montagem feita pela Globo foi decisiva para o resultado,
haja vista que as eleições aconteceram três dias depois, tempo insuficiente
para reparar os estragos causados. Um golpe midiático. Mais um, que,
naturalmente, não seria o último. Mas isso não foi suficiente para alertar o
Partido dos Trabalhadores.
Desastrados assessores, em seus
contumazes atos de corrupção, principalmente por meio de esquemas mantidos por
Caixa 2, e envolto em intrigas familiares, o presidente Collor caiu em
desgraça. Depois de vários meses em que a juventude se levantou no movimento
que ficou conhecido como “Fora Collor” e a luta dos “caras-pintadas”, e uma CPI
que desgastava e minava as bases de seu governo, Collor viu sua cabeça ser
entregue numa bandeja. Diante de mobilizações massivas, era preciso aos setores
conservadores daquela época e às elites dirigentes empresariais e financeiras,
mantê-lo afastado, e mais uma vez tentar uma transição sem receio de embarcar
em um governo de esquerda. A saída, foi, mais uma vez, um acordão em torno do
PMDB. Collor foi abandonado e uma aliança, envolvendo PMDB, PSDB e PFL (DEM), foi
feito para consolidar toda a política neoliberal que já vinha sendo
implementada por Collor.
Na sequência, após dois anos do
governo do vice Itamar Franco, impulsionado pelo plano econômico que mudou a
moeda e estabilizou a economia brasileira, as eleições seguintes elegeu
Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Com um governo marcado pela vergonhosa
submissão aos interesses dos Estados Unidos o país se viu completamente
envolvido pela política neoliberal. Medidas privatizantes foram tomadas,
afetando empresas estatais de importância estratégica, em setores
imprescindíveis para a economia brasileira, como os de energia e de
telecomunicação. Com essas medidas, o país perdia divisas, aumentava sua dívida
externa e via se ampliando o desemprego.
Em meio a uma crise ainda
escondida, e através de compras de parlamentares, o governo FHC aprovou o
casuístico instrumento da reeleição, possibilitando que ele concorresse mais
uma vez. Seu adversário, novamente, foi Luiz Inácio Lula da Silva. A reeleição
de FHC serviu para aprofundar a crise econômica, levando o país a recorrer ao
Fundo Monetário Internacional que garantia os empréstimos mediante imposições.
Como contrapartida o FMI exigia medidas de redução do Estado e mais
privatizações. A Petrobrás era cobiçada por interesses internacionais, seu
potencial e seu objetivo, naturalmente, atraía a cobiça de grandes corporações.
Setores importantes e um volume grande de ações foram repassadas ao setor
privado, e navios petroleiros eram produzidos em outros países, afetando
perversamente a cadeia produtiva do petróleo. O entreguismo se intensificou, e,
claro, piorou a economia, elevando a inflação e o desemprego.
Nesse ambiente, de desgaste de um
governo que entregou boa parte da riqueza nacional, e o caso mais emblemático
foi a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, as eleições seguintes trariam
uma surpresa. Tendo como candidato oficial o senador José Serra e concorrendo
pela quarta vez, desta feita sagrou-se vitorioso o ex-metalúrgico e líder
operário e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. O ano era 2002 e surpreendia
assim todo o mundo, pelo inusitado de, pela primeira vez, um operário e
nordestino, além de representar a esquerda, ser eleito presidente da República.
Iniciava-se um novo ciclo da política brasileira e pelos anos seguintes
diversas medidas e programas de inclusão social renovariam as expectativas em
torno das transformações que afetariam o país. Todo o mundo tinha os olhos
voltados para o Brasil, enquanto do outro lado as atenções se dariam sobre as
guerras comandadas pelos EUA no Oriente Médio, como retaliação ao atentado que assombrou o mundo em setembro de 2001. Esquecido pelo grande Império, o
Brasil e os demais países da América Latina inauguraram uma nova era, marcada
pela ascensão de diversos governos de esquerda.
Bem ao contrário de se constituir
em um presidente com posições esquerdistas, Lula e o seu governo se pautou por
aplicar uma política pragmática, principalmente em relação à economia, que em
certos aspectos manteve alguns elementos do neoliberalismo. O seu Ministro da Fazenda,
eleito deputado federal pelo PSDB, Henrique Meireles, um ex-executivo de um dos
maiores bancos do mundo, servia para “acalmar o mercado”. Esse personagem
retornará mais adiante.
A composição com o PMDB e as demais
alianças com partidos de centro, se deu como condição de garantir
governabilidade em um Congresso dominado por políticos de direita, centro,
centro-direita e centro-esquerda. A esquerda sempre esteve em minoria, e seus
votos insuficientes para aprovar medidas que fossem necessárias aos programas
sociais. As concessões, portanto, se deram em forma de propostas neoliberais, e
de investimentos em setores produtivos para agradar a burguesia nacional, os
latifundiários e os banqueiros.
No plano internacional o comportamento
foi mais à esquerda, contrariando interesses dos setores de centro e direita. A
aliança com Chavez e Cristina Kischner foram fundamentais para implodir a ALCA
e impulsionar o Mercosul e depois a Unasul. Os interesses dos EUA foram
claramente contrariados, e, mais ainda quando da criação dos BRICS e de seu
consequente fortalecimento, até chegar a proposta da criação do Banco dos BRICS
(Bloco reunindo o Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente incorporando a
África do Sul) e o que viria a seguir, uma nova moeda. Creio ter sido esse o
ponto central, momento em que seguramente acendeu a luz vermelha da vigilância
imperial, e acelerou o processo de derrotar os governos desses três países,
principalmente, na América Latina e abrir outra frente contra a China e a
Rússia. Mas essa é uma outra história.
Apesar de todos os percalços,
principalmente como consequência do escândalo denominado “mensalão”, pelo qual
se descobriu o repasse para parlamentares da base governista, via mecanismo de
caixas paralelos para quitação de campanhas, seja passadas ou futuras, Lula
conseguiu se reeleger, às vésperas de uma crise de proporções mundiais, por ele
definida como “marolinha”. O país passou a navegar em um mar sereno e
internamente a economia explodia em índices inéditos e inundava-se em créditos
garantidos pelas políticas econômicas num estilo de desenvolvimentismo mesclado
com medidas neoliberais na forma de organização do Estado brasileiro. O forte
investimento no setor de produção nacional, e o incentivo para que em
determinados setores da economia grandes empresas estatais e/ou privada se
destacassem fez surgir fortes corporações brasileiras que passaram a se
expandir fortemente, interna e externamente. Por outro lado, medidas sociais
focada na necessidade de retirar milhões de brasileiros da pobreza, via um
mecanismo importado de antigas políticas estadunidenses, fez surgir um dos mais
bem sucedidos planos de combate à miséria do mundo, reconhecido pela eficácia
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
O Brasil se projetava no cenário
mundial, não somente na América Latina, mas em todo o mundo. O protagonismo da
nossa política externa e a liderança e carisma de Lula da Silva seriam
determinantes para levantar preocupações geopolíticas por quem sempre julgara
ser essa parte do continente americano, o quintal de seus negócios. Os EUA
discretamente, e por meio de intensa espionagem, preparava o bote necessário
para desestabilizar a política brasileira. Mas internamente, a “marolinha” se
transformava em “tsunami” e a crise que rondava o Brasil e a América Latina
como um todo penetrou com força. As medidas a serem adotadas ficariam a cargo
da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, que manteve Guido Mantega como ministro,
desta vez na Fazenda, mas com um direcionamento da economia em outro patamar,
visando reforçar setores produtivos fortes e com alto grau de empregabilidade.
Traduzindo, isentou de impostos uma burguesia absolutamente beneficiada nos
anos anteriores, na perspectiva de que haveria uma contrapartida para a
manutenção desses empregos e estabilidade da economia. O que se viu foi uma
sucessão de equívocos e de traições, que era de se esperar, de setores que só
pensam em acumular cada vez mais riquezas, pouco se preocupando com as
condições de pobreza da população.
A reeleição de Dilma Roussef se deu
em meio a uma forte polarização, com a radicalização da luta política por um
lado, reflexo de intensas manifestações de rua em 2013, conhecidas como “Jornadas
de Junho”, que movimentou multidões insatisfeitas com medidas políticas locais
e estaduais, mas que foram direcionadas pela mídia para atingir o governo
federal e desgastar Rouseff. O resultado das eleições refletiu essa
polarização, com um pequeno percentual de diferença o candidato da oposição,
Aécio Neves, do PSDB foi derrotado, mas não aceitou o resultado. Na sequencia
do embate político pelo resultado da eleição, os números da economia passaram a
ser divulgados demonstrando um descompasso em relação aos que tinham sido
apresentados durante o processo eleitoral. Isso serviu de munição para a
oposição e foi potencializado por uma série de denúncias de malversações de
dinheiro público que se transformou na maior operação de combate à corrupção da
história do país.
A “Lavajato” se constituiu no
mecanismo pelo qual o Brasil passaria a conviver, mais uma vez, com traições
políticas, oportunismos e chicanas jurídicas. O que era tradicional, e jamais
combatido como um crime, o caixa 2, comum nos processos eleitorais, se
transformou no mecanismo de perseguição e prisão a dezenas de políticos e
empresários. A facilidade com que esse processo se iniciou é facilmente
explicável, bastando ligar as denúncias de espionagens sobre o governo e suas principais
empresas de interesses estratégicos, principalmente a Petrobrás, feitas por
Edward Snowden e que demonstrava as ações subreptícias dos EUA para
desestabilizar o nosso país, da forma como acontecera em inúmeros outros na
África, Ásia, Oriente Médio e na América Latina.
O Brasil entrou assim numa espiral
de crise com sucessivas ondas de desestabilização, até atingir o ápice no golpe
de estado sofisticado, que levou junto a política e a democracia para o fundo
do poço. Difícil imaginar uma situação com tantas reviravoltas, mas impressiona
a capacidade das camadas dirigentes, e algumas instituições, em agir
cinicamente, demagogicamente e à revelia dos interesses nacionais e da maioria
da população, numa mesquinha disputa de poder sem limites éticos, morais e com
absoluta ausência de sensibilidade social. Venderam o país, destruíram-se as
conquistas sociais, pisotearam os direitos trabalhistas e disseminaram o ódio e
a intolerância a níveis pouco vistos em nossa história.
Como foi possível chegar a esse
ponto? Tentaremos detalhar segundo uma visão geopolítica, mas, seguramente,
procurando clarear o porquê desse furacão que
transformou a realidade política brasileira. O que se imaginava
esquecido em antigos manuais da esquerda, se manifesta na sociedade e nos conflitos
que tomaram enorme vulto nesses três últimos anos: a luta de classes.
Prosseguiremos na análise no
próximo artigo, nos aprofundando na essência dessas transformações e na crise estrutural
que afeta o mundo capitalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário