terça-feira, 1 de agosto de 2017

BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA: A LUTA DE CLASSES REDIVIVA – PARTE I

O que deu errado? Imaginávamos no começo do século XXI estarmos entrando em uma nova era, um novo tempo onde a esquerda poderia botar em prática toda a teoria com a qual esgrimia as palavras de ordem nas lutas políticas e sociais desde o final da ditadura militar.
Vamos por parte. Desde a identificação de nossos sonhos até a realidade objetiva, de como se constitui a estrutura política e burocrática do estado brasileiro. Refaçamos o percurso, resgatemos a história. E, creio, entenderemos o enredo do que está acontecendo e do que virá.
Voltemos no tempo.
Seguramente nossos sonhos foram ameaçados na derrota das eleições diretas, em 1984. E comparando aquele momento, com o que estamos vivendo agora, podemos compreender a capacidade como os setores reacionários e oportunistas fisiológicos se adaptam às circunstâncias, com o intuito de estarem sempre próximos ao Poder. Game of Thrones!
Lembro-me bem de todo o envolvimento dos setores organizados da sociedade brasileira, eu participei desse processo nos últimos anos da ditadura. Acuado, desmoralizado e enfraquecido, o regime militar perdia apoio à medida em que a luta democrática tomava impulso e se fortalecia. As mobilizações foram espetaculares, e a multidão se multiplicava nas ruas a cada comício pró-diretas. Naquele momento houve uma aglutinação dos setores progressistas de todos os partidos, à exceção do PDS, que dava sustentação ao governo militar. Seus membros eram em sua grande maioria oriundos da antiga Arena, partido fundado pelos militares e que lhe dava apoio.
As circunstâncias eram outras, opostas em todos os sentidos à situação que vivenciamos nos dias de hoje. Contudo, há uma similaridade, o que se conta, no final, são os votos. A força das ruas é importante, mas no jogo político o que define é a articulação política. Naquele momento, de grande pressão popular, praticamente funcionando contra o governo militar, a maioria dos parlamentares votaram a favor da emenda das diretas: 298 a 65. Mas, faltaram 22 votos para consagrar, naquele momento, o fim do regime militar.
A derrota da Emenda Dante de Oliveira não botou fim à esperança de derrotá-lo, mas dividiu a esquerda. A partir daquele momento todos os esforços concentraram-se no Plano B: o Colégio Eleitoral. Era por esse instrumento que os presidentes eram eleitos. Ou melhor, tinham suas escolhas formalizadas, já que eram definidos pelos militares. Contudo, o resultado da votação pelas diretas apontava uma possibilidade concreta de escolher o próximo presidente por esse mecanismo. Para dar uma conotação mais democrática constituiu-se toda uma estrutura, aproveitando-se das campanhas das diretas, com a realização de mais atos e comícios por todo o Brasil, agora em torno da candidatura de Tancredo Neves, político tradicional de Minas Gerais, que naquele momento se aliara às forças que desejavam as mudanças.
Por ironia, que o futuro iria contradizer, o Partido dos Trabalhadores recusou-se a apoiar esse caminho. Isso foi levado a tal extremo que alguns parlamentares que se recusaram a seguir essa orientação, ou melhor, decisão partidária, foram expulsos do partido, num momento em que o sectarismo raso era uma marca registrada no PT, naquele momento dominado por tendências esquerdistas, que décadas adiante foram se afastando e fazendo surgir outras organizações, que mantiveram essa característica, de primar por um tipo de política isolacionista focada em princípios que os mantiveram sempre reduzidos. Mas o PT foi na direção oposta, e, à medida em que ganhava novos parlamentares e crescia com vitórias em prefeituras e governos, passou a adotar uma política mais pragmática e conciliatória. Veremos o resultado disso mais adiante.
O movimento Diretas Já! Transformou-se em Tancredo Já!. Como era previsível, devido ao quadro político de isolamento do partido do governo, o PDS, que naquele momento tinha como candidato Paulo Maluf, a eleição de Tancredo Neves, do PMDB, sagrou-se vitoriosa. José Sarney, que havia liderado uma dissidência no PDS e criado a Frente Liberal (PFL), tornou-se o vice mais bem-sucedido da história política brasileira. Uma tragédia demonstrou que nada é fácil na democracia brasileira. Depois de tudo que se fez, e por mais de um ano de mobilizações de milhões de pessoas nas ruas, o presidente eleito, Tancredo Neves, faleceu antes de tomar posse. A tensão que se seguiu à sua morte era natural, imaginava-se poder haver alguma reação dos militares e a imposição de seu candidato. Se a decisão a seguir foi jurídica ou política, pouco importa, mas foi garantida a posse do vice que se tornou presidente. O Brasil se via então rumando para uma nova realidade política, sem o regime militar, mas com um governo conservador, de coalizão ampla, formado para tentar reconstruir o país politicamente.
Pelas circunstâncias, o governo Sarney foi importante para a democracia, principalmente pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Contudo, durante o embate travado pela nova Constituição, em que a luta de classes se elevou a níveis pré-revolucionários, principalmente em decorrência da discussão em torno da reforma agrária, os setores reacionários conseguiram se organizar, e, com a complacência, conivência e cumplicidade do estado brasileiro e suas instituições, principalmente polícia e judiciário, agiram criminosamente contra os setores populares e assassinaram centenas de lideranças sindicais e políticas, especialmente devido à discussão e luta pela reforma agrária.
O desgaste do governo Sarney, incapaz de tirar o país da imobilidade (a década de 1980 foi considerada “a década perdida”, embora não somente em relação ao Brasil) e fazer baixar uma inflação estratosférica, aliado a toda uma campanha feita pela mídia que procurava desgastar a política e o serviço público, servindo-se da velha cantilena de corrupção e ineficiência, projetou um jovem governador de Alagoas. Aliado da poderosa Globo, rede que se formou à sombra dos militares, Fernando Collor se projetou na mídia nacional como o “caçador de marajá”, em alusão ao fato distorcido pela mídia de que os servidores públicos ganhavam muito e eram ineficientes. Isso já fazia parte da estratégia do capitalismo globalizado, em curso a partir da Europa e EUA, que, via políticas neoliberais visavam reduzir o tamanho do Estado, privatizar em larga escala e abrir as fronteiras para o capital financeiro internacional.
Com Collor o país se abria a essas políticas. Sua eleição só foi possível com a ajuda da Globo, que montou desavergonhada farsa em torno do último debate televisionado em cadeia nacional. Seu oponente, naquele momento com maiores chances de vitória era Luiz Inácio Lula da Silva. A montagem feita pela Globo foi decisiva para o resultado, haja vista que as eleições aconteceram três dias depois, tempo insuficiente para reparar os estragos causados. Um golpe midiático. Mais um, que, naturalmente, não seria o último. Mas isso não foi suficiente para alertar o Partido dos Trabalhadores.
Desastrados assessores, em seus contumazes atos de corrupção, principalmente por meio de esquemas mantidos por Caixa 2, e envolto em intrigas familiares, o presidente Collor caiu em desgraça. Depois de vários meses em que a juventude se levantou no movimento que ficou conhecido como “Fora Collor” e a luta dos “caras-pintadas”, e uma CPI que desgastava e minava as bases de seu governo, Collor viu sua cabeça ser entregue numa bandeja. Diante de mobilizações massivas, era preciso aos setores conservadores daquela época e às elites dirigentes empresariais e financeiras, mantê-lo afastado, e mais uma vez tentar uma transição sem receio de embarcar em um governo de esquerda. A saída, foi, mais uma vez, um acordão em torno do PMDB. Collor foi abandonado e uma aliança, envolvendo PMDB, PSDB e PFL (DEM), foi feito para consolidar toda a política neoliberal que já vinha sendo implementada por Collor.
Na sequência, após dois anos do governo do vice Itamar Franco, impulsionado pelo plano econômico que mudou a moeda e estabilizou a economia brasileira, as eleições seguintes elegeu Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Com um governo marcado pela vergonhosa submissão aos interesses dos Estados Unidos o país se viu completamente envolvido pela política neoliberal. Medidas privatizantes foram tomadas, afetando empresas estatais de importância estratégica, em setores imprescindíveis para a economia brasileira, como os de energia e de telecomunicação. Com essas medidas, o país perdia divisas, aumentava sua dívida externa e via se ampliando o desemprego.
Em meio a uma crise ainda escondida, e através de compras de parlamentares, o governo FHC aprovou o casuístico instrumento da reeleição, possibilitando que ele concorresse mais uma vez. Seu adversário, novamente, foi Luiz Inácio Lula da Silva. A reeleição de FHC serviu para aprofundar a crise econômica, levando o país a recorrer ao Fundo Monetário Internacional que garantia os empréstimos mediante imposições. Como contrapartida o FMI exigia medidas de redução do Estado e mais privatizações. A Petrobrás era cobiçada por interesses internacionais, seu potencial e seu objetivo, naturalmente, atraía a cobiça de grandes corporações. Setores importantes e um volume grande de ações foram repassadas ao setor privado, e navios petroleiros eram produzidos em outros países, afetando perversamente a cadeia produtiva do petróleo. O entreguismo se intensificou, e, claro, piorou a economia, elevando a inflação e o desemprego.
Nesse ambiente, de desgaste de um governo que entregou boa parte da riqueza nacional, e o caso mais emblemático foi a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, as eleições seguintes trariam uma surpresa. Tendo como candidato oficial o senador José Serra e concorrendo pela quarta vez, desta feita sagrou-se vitorioso o ex-metalúrgico e líder operário e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. O ano era 2002 e surpreendia assim todo o mundo, pelo inusitado de, pela primeira vez, um operário e nordestino, além de representar a esquerda, ser eleito presidente da República. Iniciava-se um novo ciclo da política brasileira e pelos anos seguintes diversas medidas e programas de inclusão social renovariam as expectativas em torno das transformações que afetariam o país. Todo o mundo tinha os olhos voltados para o Brasil, enquanto do outro lado as atenções se dariam sobre as guerras comandadas pelos EUA no Oriente Médio, como retaliação ao atentado que assombrou o mundo em setembro de 2001. Esquecido pelo grande Império, o Brasil e os demais países da América Latina inauguraram uma nova era, marcada pela ascensão de diversos governos de esquerda.
Bem ao contrário de se constituir em um presidente com posições esquerdistas, Lula e o seu governo se pautou por aplicar uma política pragmática, principalmente em relação à economia, que em certos aspectos manteve alguns elementos do neoliberalismo. O seu Ministro da Fazenda, eleito deputado federal pelo PSDB, Henrique Meireles, um ex-executivo de um dos maiores bancos do mundo, servia para “acalmar o mercado”. Esse personagem retornará mais adiante.
A composição com o PMDB e as demais alianças com partidos de centro, se deu como condição de garantir governabilidade em um Congresso dominado por políticos de direita, centro, centro-direita e centro-esquerda. A esquerda sempre esteve em minoria, e seus votos insuficientes para aprovar medidas que fossem necessárias aos programas sociais. As concessões, portanto, se deram em forma de propostas neoliberais, e de investimentos em setores produtivos para agradar a burguesia nacional, os latifundiários e os banqueiros.
No plano internacional o comportamento foi mais à esquerda, contrariando interesses dos setores de centro e direita. A aliança com Chavez e Cristina Kischner foram fundamentais para implodir a ALCA e impulsionar o Mercosul e depois a Unasul. Os interesses dos EUA foram claramente contrariados, e, mais ainda quando da criação dos BRICS e de seu consequente fortalecimento, até chegar a proposta da criação do Banco dos BRICS (Bloco reunindo o Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente incorporando a África do Sul) e o que viria a seguir, uma nova moeda. Creio ter sido esse o ponto central, momento em que seguramente acendeu a luz vermelha da vigilância imperial, e acelerou o processo de derrotar os governos desses três países, principalmente, na América Latina e abrir outra frente contra a China e a Rússia. Mas essa é uma outra história.
Apesar de todos os percalços, principalmente como consequência do escândalo denominado “mensalão”, pelo qual se descobriu o repasse para parlamentares da base governista, via mecanismo de caixas paralelos para quitação de campanhas, seja passadas ou futuras, Lula conseguiu se reeleger, às vésperas de uma crise de proporções mundiais, por ele definida como “marolinha”. O país passou a navegar em um mar sereno e internamente a economia explodia em índices inéditos e inundava-se em créditos garantidos pelas políticas econômicas num estilo de desenvolvimentismo mesclado com medidas neoliberais na forma de organização do Estado brasileiro. O forte investimento no setor de produção nacional, e o incentivo para que em determinados setores da economia grandes empresas estatais e/ou privada se destacassem fez surgir fortes corporações brasileiras que passaram a se expandir fortemente, interna e externamente. Por outro lado, medidas sociais focada na necessidade de retirar milhões de brasileiros da pobreza, via um mecanismo importado de antigas políticas estadunidenses, fez surgir um dos mais bem sucedidos planos de combate à miséria do mundo, reconhecido pela eficácia pela Organização das Nações Unidas (ONU).
O Brasil se projetava no cenário mundial, não somente na América Latina, mas em todo o mundo. O protagonismo da nossa política externa e a liderança e carisma de Lula da Silva seriam determinantes para levantar preocupações geopolíticas por quem sempre julgara ser essa parte do continente americano, o quintal de seus negócios. Os EUA discretamente, e por meio de intensa espionagem, preparava o bote necessário para desestabilizar a política brasileira. Mas internamente, a “marolinha” se transformava em “tsunami” e a crise que rondava o Brasil e a América Latina como um todo penetrou com força. As medidas a serem adotadas ficariam a cargo da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, que manteve Guido Mantega como ministro, desta vez na Fazenda, mas com um direcionamento da economia em outro patamar, visando reforçar setores produtivos fortes e com alto grau de empregabilidade. Traduzindo, isentou de impostos uma burguesia absolutamente beneficiada nos anos anteriores, na perspectiva de que haveria uma contrapartida para a manutenção desses empregos e estabilidade da economia. O que se viu foi uma sucessão de equívocos e de traições, que era de se esperar, de setores que só pensam em acumular cada vez mais riquezas, pouco se preocupando com as condições de pobreza da população.

A reeleição de Dilma Roussef se deu em meio a uma forte polarização, com a radicalização da luta política por um lado, reflexo de intensas manifestações de rua em 2013, conhecidas como “Jornadas de Junho”, que movimentou multidões insatisfeitas com medidas políticas locais e estaduais, mas que foram direcionadas pela mídia para atingir o governo federal e desgastar Rouseff. O resultado das eleições refletiu essa polarização, com um pequeno percentual de diferença o candidato da oposição, Aécio Neves, do PSDB foi derrotado, mas não aceitou o resultado. Na sequencia do embate político pelo resultado da eleição, os números da economia passaram a ser divulgados demonstrando um descompasso em relação aos que tinham sido apresentados durante o processo eleitoral. Isso serviu de munição para a oposição e foi potencializado por uma série de denúncias de malversações de dinheiro público que se transformou na maior operação de combate à corrupção da história do país.
A “Lavajato” se constituiu no mecanismo pelo qual o Brasil passaria a conviver, mais uma vez, com traições políticas, oportunismos e chicanas jurídicas. O que era tradicional, e jamais combatido como um crime, o caixa 2, comum nos processos eleitorais, se transformou no mecanismo de perseguição e prisão a dezenas de políticos e empresários. A facilidade com que esse processo se iniciou é facilmente explicável, bastando ligar as denúncias de espionagens sobre o governo e suas principais empresas de interesses estratégicos, principalmente a Petrobrás, feitas por Edward Snowden e que demonstrava as ações subreptícias dos EUA para desestabilizar o nosso país, da forma como acontecera em inúmeros outros na África, Ásia, Oriente Médio e na América Latina.
O Brasil entrou assim numa espiral de crise com sucessivas ondas de desestabilização, até atingir o ápice no golpe de estado sofisticado, que levou junto a política e a democracia para o fundo do poço. Difícil imaginar uma situação com tantas reviravoltas, mas impressiona a capacidade das camadas dirigentes, e algumas instituições, em agir cinicamente, demagogicamente e à revelia dos interesses nacionais e da maioria da população, numa mesquinha disputa de poder sem limites éticos, morais e com absoluta ausência de sensibilidade social. Venderam o país, destruíram-se as conquistas sociais, pisotearam os direitos trabalhistas e disseminaram o ódio e a intolerância a níveis pouco vistos em nossa história.
Como foi possível chegar a esse ponto? Tentaremos detalhar segundo uma visão geopolítica, mas, seguramente, procurando clarear o porquê desse furacão que  transformou a realidade política brasileira. O que se imaginava esquecido em antigos manuais da esquerda, se manifesta na sociedade e nos conflitos que tomaram enorme vulto nesses três últimos anos: a luta de classes.
Prosseguiremos na análise no próximo artigo, nos aprofundando na essência dessas transformações e na crise estrutural que afeta o mundo capitalista. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário