Na primeira parte procurei fazer um
histórico do processo político vivido pelo Brasil desde a redemocratização,
após o fim da ditadura militar.[1]
Logo depois, em outro artigo que não incluí como sequência, procurei dar uma
abrangência maior tentando analisar como nas últimas três décadas o mundo
passou por transformações profundas, identificadas por alguns como a terceira revolução industrial. Não entro nesse tipo
de denominação, porque considero que houve, sim e de fato, uma crescente
aceleração tecnológica, mas tenho plena convicção que são transformações que
seguem na mesma direção da lógica de funcionamento do sistema capitalista.[2]
Portanto, não haveria uma “terceira
revolução tecnológica”, mas uma nova etapa de uma revolução capitalista que
começou no século XIX, que, de tempos em tempos, seguindo o ciclo de crises
“naturais” sistêmicas, necessita de reestruturação. Passamos nesses nossos
tempos, por uma dessas reestruturações sistêmicas, que afetam não somente a
economia, mas pela profundidade e dificuldades trazem outros tipos de mudanças
na sociedade. São impactados a política, os valores, a moral, a religião, e se
ampliam todas as formas de conflitos, internos e externos a cada país.
Potencializado pela disputa hegemônica do controle do poder mundial.
Isso não significa desvio do
assunto sobre a crise brasileira. Mas segue a análise dentro de uma abordagem
que considera a totalidade. O Brasil não é uma ilha, e as contradições que tem
levado a uma crise crônica na economia mundial, também nos afeta. E o próprio
processo de reestruturação capitalista, necessário, leva a uma desestabilização
política, onde a disputa pelo poder local é parte da necessidade de dar o rumo
que se deseja à política e à economia mundial. Não foi à toa que a diplomacia
brasileira foi rechaçada pelo poder imperial estadunidense, quando procurou
fazer do país um protagonista importante no conflito do Oriente Médio
envolvendo o Irã. E, mais ainda, quando se tornou um dos países líderes na
construção de uma alternativa a esse poder, com a criação dos BRICS.
É fundamental compreendermos as
mudanças que estão acontecendo no mundo, numa direção indefinida, mas dentro da
necessidade de se encontrar saídas para os problemas que afetam o sistema
capitalista. O que se viu como consequência da crise que estourou em 2008 foi
uma desconfiança por parte daqueles que controlam a riqueza do mundo com os
rumos que tomariam os países com a democracia capitalista, vista como
excessivamente liberal. É evidente, para quem conhece a estrutura do sistema
que o que se permite dentro da democracia vai até um limite em que se possa ter
ainda o controle do Estado. A aceitação, por exemplo, de um personagem como
Lula na presidência do Brasil tornou-se possível até um limite, mesmo com todas
as garantias que foram dadas aos donos da riqueza no Brasil, que lhes seriam
asseguradas as condições para prosseguirem se enriquecendo. Mas, se não há
definição para onde essa crise nos levará, a garantia perde validade. E isso
aconteceu. Atingiu-se o limite, e o que importa é a necessidade de se tomar
medidas reformistas que assegurem a reestruturação capitalista também aqui no
Brasil, por meio de medidas antipopulares e de retomada do controle do Estado
para a minoria gananciosa, usurária, mas proprietária dos meios pelos quais se
produzem e se concentram essa riqueza.
Em 2014 o país foi despertado do
curto sono que nos fez sonhar com o paraíso. De repente, um ano antes havia estourado nas ruas o
grito de uma multidão que foi rapidamente capturada, e se descobriu haver ainda
forte presença de duas síndromes, nessa multidão, nesse país: de Cinderela e de
Peter Pan.
Não vou entrar na discussão
psicanalítica sobre essas síndromes ou complexos, deixarei aos leitores a
curiosidade de pesquisar. Mas tem a ver com o histórico de um país que convive
historicamente entre a cruz e a espada, desde os tempos coloniais. Aliás,
desses tempos carregamos uma tradição horrenda, e sempre que se identificava
uma perspectiva de transformação social, e que lutas populares tomavam uma
dimensão “perigosa” para as classes dominantes, de imediato a repressão brutal
sufocava qualquer tentativa de se buscar solucionar graves problemas sociais
gerados pelas desigualdades entre os poucos ricos que dominavam o poder
político e econômico, e uma pobreza que demograficamente crescia
vertiginosamente em cidades cada vez mais apartadas.
Por um lado nosso país, por meio de
uma elite absolutamente submissa aos fortes poderes dominantes externos, das
metrópoles coloniais ou imperiais, julgava-se sempre incapaz de seguir seus
passos a depender sempre da proteção imperialista, não só contra inimigos
externos, mas principalmente contra os inimigos internos. Por outro lado, essa
mesma elite, afundava o país com a entrega de nossas riquezas, seja na
incapacidade de fazê-lo crescer com modelos econômicos sempre escorados em
exportação de commodities e na fragilidade do desenvolvimento
industrial, como também pela evasão de divisas por meio de depósitos em contas
bancárias no exterior.
Mas o maior dos complexos e o que
mais nos fez mal enquanto nação tem sido o de “vira-latas”. E isso estimulado
culturalmente principalmente pela classe média, seja pela constante
desvalorização da capacidade de nosso povo, o que se torna até folclore,
acentuado em tempos de crise e repetido ad
nausean. Um elemento a nos desvalorizar e a abrir caminho para discursos
liberais que enfraquecem nossa estima e facilita as políticas de abertura do
nosso mercado às corporações estrangeiras. Tudo isso começou a mudar no século
XXI. A partir da primeira eleição de Lula da Silva o país passou por um
processo de transformação e de crescimento, em todos os aspectos, jamais visto,
superando toda a intensidade dos anos JK.
O Brasil na virada do século vinha
de uma mudança estrutural importante, com medidas tomadas durante o governo FHC
que reforçaram as políticas neoliberais iniciadas no governo Collor. O custo
foi muito elevado, fazendo o país recorrer por diversas vezes ao Fundo
Monetário Internacional, e a pagar o preço da submissão aos desígnios de uma
política econômica definida pelas governanças globais, tanto o FMI quanto o
Banco Mundial. O custo pela estabilização da economia, via uma nova moeda, foi
muito elevado.
A ascensão de um governo de
esquerda, apesar da manutenção de uma linha herdada do governo tucano, a
presidência do Banco Central entregue a um representante do sistema financeiro
mundial, representou uma importante alteração de rumo na política brasileira,
principalmente com a adoção de diversos programas de cunho social que impactou
consideravelmente no mercado interno e se espalhou por todo o país, modificando
a paisagem em grandes, pequenas e médias cidades.
Apesar da crise econômica que
ameaçava o sistema financeiro mundial, com o estouro da bolha imobiliária nos
EUA em 2008, aqui pelo Brasil e se disseminando por outros países da América
Latina, a realidade econômica e política passava a conviver com outros ares.
Chegamos a praticamente atingir o pleno emprego, devido a queda vertiginosa do
desemprego. Pari passu, o aumento do
salário mínimo e programas sociais, como o Bolsa Família, e a disseminação de
fartas linhas de créditos, aqueceu fortemente o consumo interno potencializando
economias locais e regionais. O Brasil parecia entrar nos trilhos rumo ao clube
dos países ricos, chegando a suplantar o Reino Unido. As relações
internacionais, tanto econômicas, quanto no protagonismo político entre as
nações do mundo, por todos os continentes, adquiriram um solene ar de liderança
regional, com respeito ressaltado publicamente por chefes de Estado e de
governos dos principais países do mundo. Luís Inácio Lula da Silva, era “o Cara!”
Assim dito pelo dirigente da principal potência econômica e militar do mundo, à
época Barack Obama.
Mas esses aspectos do desempenho do
país por esses anos de governos Lula, adentrando pelo primeiro governo Dilma,
já foram objetos de vários artigos escritos aqui neste Blog.[3]
Por todos os meses que antecederam ao impeachment/golpe da presidenta Dilma
produzi diversos textos analisando toda aquela conjuntura.
O que pretendo a partir daqui, com
essa análise, é identificar aspectos de todo esse processo político em que
vivemos, que foram geradores de uma crise que se estenderá por um tempo
imprevisível, mas que desde já está deixando marcas profundas na sociedade
brasileira.
Quero me ater ao que considero
aqueles erros cruciais nos três governos populares, até culminar com a eleição
de 2014. Dali para adiante minhas análises estão postas e podem ser lidas nos
links que insiro ao final deste artigo. Certamente haverá contestações, mas as
críticas serão contundentes, porque a meu ver representaram erros cruciais na
condução do Estado brasileiro. E tenho certeza, que as discordâncias virão à
esquerda e à direita. Mas isso não significa que minhas avaliações estarão situadas
numa posição de centro. Ao contrário. Bem ao contrário.
Não tenho dúvidas do que
representou em termos positivos para a história política brasileira a eleição
de Lula da Silva. Para a esquerda brasileira, principalmente, mas também para a
latino-americana. Além de também representar um elemento novo na geopolítica
mundial, não só por ser esquerda o Partido dos Trabalhadores, mas pela origem
de classe de quem veio a se constituir na maior liderança política de nosso
continente neste século.
Quebrou-se uma linha genealógica na
política brasileira, sempre acostumada a ter na linha de frente do Poder
elementos oriundos de castas tradicionais, da elite dominante, principalmente
da região Sul. Embora tendo feito sua trajetória política em São Paulo, a origem
nordestina, pernambucana, jamais foi renegada. Ao contrário, sempre demonstrada
como um elemento enriquecedor na história desse personagem.
O Brasil entrava numa nova era da
política. Era o que se acreditava, e tudo indicava que, de fato, era isso que
estava acontecendo. Mas o que deu errado para que dois governos depois o veículo degringolasse ladeira abaixo, sem freio, e tendo na condução outro personagem,
pérfido, guindado à condição de vice dentro de um ambiente político que se
imaginava progressista?
É difícil analisar passo a passo
tudo que aconteceu. Erros se cometem, naturalmente, principalmente na política,
e tendo um governo progressista que lidar com um congresso repleto de
oportunistas, de parlamentares eleitos via compra de votos e de financiamento
empresarial de campanha, com data marcada para a cobrança ser feita por uma
“elite” patrimonialista torpe que há séculos avacalha a política a sua
benquerença.
Representação parlamentar no Congresso brasileiro em 2013 (http://jornalggn.com.br/noticia/uma- analise-da-representacao-atual-do-congresso) |
Ora, não se pode imaginar poder
governar à vontade o país, que possui um regime presidencialista, mas depende
de um parlamento para a consecução de seus projetos políticos. Tudo bem é a
democracia, dirão os cautos. Mas é a democracia que constrói essa aberração,
onde um presidente de esquerda é eleito para governar o país, e o mesmo povo
elege um congresso repleto de parlamentares que rezam numa cartilha política
oposta, e que a maior parte deles não possui o mínimo pudor e vendem-se
descaradamente, independente de quem está a conduzir o Estado. Desde que possam
ser beneficiados por medidas que os sustentem por longo tempo em seus mandatos,
e/ou que sirvam a projetos maiores de conquistar governos em seus estados. E a
política, tradicionalmente se faz assim no sistema capitalista. Ou mesmo em
outros sistemas, não importa. Estou analisando o Brasil.
Podemos concluir que seria
impossível governar sem estabelecer uma ampla aliança com setores de centro, ou
eventualmente com alguns liberais mais conservadores, embora politicamente
maleáveis. Dada às circunstâncias, era isso que precisava ser feito, e foi feito.
Mas à custa de comportamentos condenáveis, e condenados pela esquerda por
décadas antes de assumir o poder. Construiu-se dessa forma, uma plataforma
(base) frágil, tendo abaixo areia movediça. Ao não adotar uma atitude de
apresentar propostas que mudassem a estrutura partidária e eleitoral,
juntamente com outras reformas necessárias para fazer do ato político
parlamentar algo mais decente, a esquerda terminou por escolher um rumo
perigoso, que poderia levá-la para aquele solo arenoso e pantanoso que traria o
risco de engoli-la.
Mas no princípio era o verbo. Tudo
transcorreu tranquilamente a partir de medidas adotadas que garantiram à classe
dominante, principalmente ao setor financeiro, que não haveria mudanças bruscas
na economia. Assim, o governo por certo tempo conseguiu se equilibrar numa
corda bamba, tendo que agradar a esse setor, por um lado, e por outro adotar
medidas de caráter social que contemplasse todo o discurso de investimento nas
camadas mais pobres e apresentasse propostas progressistas para setores que por
muito tempo foram marginalizados em nossa história.
Só que não se pode confiar na
política, e em políticos que agem como escorpiões. Os métodos adotados para
garantir uma maioria parlamentar, foram os mesmos usados por aqueles que estavam
na oposição, mas que fizeram usufruto deles quando estiveram à frente do
governo. Naturalmente, à medida em que o governo se fortalecia, os que lhes
davam apoio pediam mais, e os que lhes faziam oposição preparavam o bote, para
por meio de estruturas do próprio estado, onde ainda haviam influências ou
tinham compatibilidades de ideias, denunciar os mesmos métodos corruptos pelos
quais governaram por muito tempo. O resultado disso foi o aparecimento de
denúncias de compras de votos para garantir votações importantes no Congresso.
O mecanismo era tradicional, feito na política historicamente desde séculos e,
sempre criticado pela esquerda.
Useiro e vezeiro de um método
espúrio, o poder político, desta feita comandado por setores de esquerda,
mergulhou num lamaçal putrefato. A luta política saiu do parlamento e foi
deslocada para a justiça, onde alguns personagens narcisistas se sobressaíram,
e transpôs-se no tempo o lugarejo e as bruxas de Salém[4]
para o planalto central. Iniciava-se um período de delações, perseguições,
prisões, em alguns aspectos derivados de malversações, de fato, realizadas, em
outros por mecanismos de vinganças sobre alguns personagens que se destacavam
na condução do Poder e do partido majoritário, por trás do governo de Lula da
Silva.[5]
O governo se enfraqueceu. Perdeu
seus principais personagens auxiliares do presidente. O chamado “mensalão”,
expressão chula comprada pela mídia de um dos principais delatores, aquele
personagem que na multidão pego roubando sai gritando: “pega-ladrão”. Por trás
de tudo, embora no vocabulário boa parte deva ser caracterizada como corrupção,
estava o financiamento de campanhas, o “maledeto” Caixa 2, nunca antes
tipificado como crime e sendo sempre negligenciado pela Justiça Eleitoral. Ou
cobrava-se para quitar dívidas de eleições passadas, ou para garantir sucesso na eleição seguinte. Mas, inegavelmente, há quem se beneficie pessoalmente
desse processo, se enriquecendo às custas de dinheiro ilícito.
Embora enfraquecido Lula da Silva
contava com um trunfo maior. A economia brasileira surfava em ondas bravias e
conseguia chegar à praia sem dificuldades, diante de uma crise financeira que
ameaçava quebrar as principais potências econômicas do planeta, e de quebra
(com perdão da redundância) levar o sistema financeiro junto. Mas o Brasil, por
meio das medidas que aqueceram o mercado interno, principalmente os programas
sociais e o aumento real do salário mínimo, parecia passar incólume diante de
tamanha crise. Uma marolinha, diante do tsunami que se aproximava.
Veremos a seguir como, e porque,
descarrilou essa locomotiva que seguia a todo vapor.
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