sexta-feira, 11 de agosto de 2017

BRASIL, DA EUFORIA AO CAOS E À INCERTEZA – PARTE II – NA SOMBRA DA LUA CHEIA.

Na primeira parte procurei fazer um histórico do processo político vivido pelo Brasil desde a redemocratização, após o fim da ditadura militar.[1] Logo depois, em outro artigo que não incluí como sequência, procurei dar uma abrangência maior tentando analisar como nas últimas três décadas o mundo passou por transformações profundas, identificadas por alguns como a terceira revolução industrial. Não entro nesse tipo de denominação, porque considero que houve, sim e de fato, uma crescente aceleração tecnológica, mas tenho plena convicção que são transformações que seguem na mesma direção da lógica de funcionamento do sistema capitalista.[2]
Portanto, não haveria uma “terceira revolução tecnológica”, mas uma nova etapa de uma revolução capitalista que começou no século XIX, que, de tempos em tempos, seguindo o ciclo de crises “naturais” sistêmicas, necessita de reestruturação. Passamos nesses nossos tempos, por uma dessas reestruturações sistêmicas, que afetam não somente a economia, mas pela profundidade e dificuldades trazem outros tipos de mudanças na sociedade. São impactados a política, os valores, a moral, a religião, e se ampliam todas as formas de conflitos, internos e externos a cada país. Potencializado pela disputa hegemônica do controle do poder mundial.
Isso não significa desvio do assunto sobre a crise brasileira. Mas segue a análise dentro de uma abordagem que considera a totalidade. O Brasil não é uma ilha, e as contradições que tem levado a uma crise crônica na economia mundial, também nos afeta. E o próprio processo de reestruturação capitalista, necessário, leva a uma desestabilização política, onde a disputa pelo poder local é parte da necessidade de dar o rumo que se deseja à política e à economia mundial. Não foi à toa que a diplomacia brasileira foi rechaçada pelo poder imperial estadunidense, quando procurou fazer do país um protagonista importante no conflito do Oriente Médio envolvendo o Irã. E, mais ainda, quando se tornou um dos países líderes na construção de uma alternativa a esse poder, com a criação dos BRICS.
É fundamental compreendermos as mudanças que estão acontecendo no mundo, numa direção indefinida, mas dentro da necessidade de se encontrar saídas para os problemas que afetam o sistema capitalista. O que se viu como consequência da crise que estourou em 2008 foi uma desconfiança por parte daqueles que controlam a riqueza do mundo com os rumos que tomariam os países com a democracia capitalista, vista como excessivamente liberal. É evidente, para quem conhece a estrutura do sistema que o que se permite dentro da democracia vai até um limite em que se possa ter ainda o controle do Estado. A aceitação, por exemplo, de um personagem como Lula na presidência do Brasil tornou-se possível até um limite, mesmo com todas as garantias que foram dadas aos donos da riqueza no Brasil, que lhes seriam asseguradas as condições para prosseguirem se enriquecendo. Mas, se não há definição para onde essa crise nos levará, a garantia perde validade. E isso aconteceu. Atingiu-se o limite, e o que importa é a necessidade de se tomar medidas reformistas que assegurem a reestruturação capitalista também aqui no Brasil, por meio de medidas antipopulares e de retomada do controle do Estado para a minoria gananciosa, usurária, mas proprietária dos meios pelos quais se produzem e se concentram essa riqueza.
Em 2014 o país foi despertado do curto sono que nos fez sonhar com o paraíso. De repente, um ano antes havia estourado nas ruas o grito de uma multidão que foi rapidamente capturada, e se descobriu haver ainda forte presença de duas síndromes, nessa multidão, nesse país: de Cinderela e de Peter Pan.
Não vou entrar na discussão psicanalítica sobre essas síndromes ou complexos, deixarei aos leitores a curiosidade de pesquisar. Mas tem a ver com o histórico de um país que convive historicamente entre a cruz e a espada, desde os tempos coloniais. Aliás, desses tempos carregamos uma tradição horrenda, e sempre que se identificava uma perspectiva de transformação social, e que lutas populares tomavam uma dimensão “perigosa” para as classes dominantes, de imediato a repressão brutal sufocava qualquer tentativa de se buscar solucionar graves problemas sociais gerados pelas desigualdades entre os poucos ricos que dominavam o poder político e econômico, e uma pobreza que demograficamente crescia vertiginosamente em cidades cada vez mais apartadas.
Por um lado nosso país, por meio de uma elite absolutamente submissa aos fortes poderes dominantes externos, das metrópoles coloniais ou imperiais, julgava-se sempre incapaz de seguir seus passos a depender sempre da proteção imperialista, não só contra inimigos externos, mas principalmente contra os inimigos internos. Por outro lado, essa mesma elite, afundava o país com a entrega de nossas riquezas, seja na incapacidade de fazê-lo crescer com modelos econômicos sempre escorados em exportação de commodities e na fragilidade do desenvolvimento industrial, como também pela evasão de divisas por meio de depósitos em contas bancárias no exterior.
Mas o maior dos complexos e o que mais nos fez mal enquanto nação tem sido o de “vira-latas”. E isso estimulado culturalmente principalmente pela classe média, seja pela constante desvalorização da capacidade de nosso povo, o que se torna até folclore, acentuado em tempos de crise e repetido ad nausean. Um elemento a nos desvalorizar e a abrir caminho para discursos liberais que enfraquecem nossa estima e facilita as políticas de abertura do nosso mercado às corporações estrangeiras. Tudo isso começou a mudar no século XXI. A partir da primeira eleição de Lula da Silva o país passou por um processo de transformação e de crescimento, em todos os aspectos, jamais visto, superando toda a intensidade dos anos JK.
O Brasil na virada do século vinha de uma mudança estrutural importante, com medidas tomadas durante o governo FHC que reforçaram as políticas neoliberais iniciadas no governo Collor. O custo foi muito elevado, fazendo o país recorrer por diversas vezes ao Fundo Monetário Internacional, e a pagar o preço da submissão aos desígnios de uma política econômica definida pelas governanças globais, tanto o FMI quanto o Banco Mundial. O custo pela estabilização da economia, via uma nova moeda, foi muito elevado.
A ascensão de um governo de esquerda, apesar da manutenção de uma linha herdada do governo tucano, a presidência do Banco Central entregue a um representante do sistema financeiro mundial, representou uma importante alteração de rumo na política brasileira, principalmente com a adoção de diversos programas de cunho social que impactou consideravelmente no mercado interno e se espalhou por todo o país, modificando a paisagem em grandes, pequenas e médias cidades.
Apesar da crise econômica que ameaçava o sistema financeiro mundial, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA em 2008, aqui pelo Brasil e se disseminando por outros países da América Latina, a realidade econômica e política passava a conviver com outros ares. Chegamos a praticamente atingir o pleno emprego, devido a queda vertiginosa do desemprego. Pari passu, o aumento do salário mínimo e programas sociais, como o Bolsa Família, e a disseminação de fartas linhas de créditos, aqueceu fortemente o consumo interno potencializando economias locais e regionais. O Brasil parecia entrar nos trilhos rumo ao clube dos países ricos, chegando a suplantar o Reino Unido. As relações internacionais, tanto econômicas, quanto no protagonismo político entre as nações do mundo, por todos os continentes, adquiriram um solene ar de liderança regional, com respeito ressaltado publicamente por chefes de Estado e de governos dos principais países do mundo. Luís Inácio Lula da Silva, era “o Cara!” Assim dito pelo dirigente da principal potência econômica e militar do mundo, à época Barack Obama.
Mas esses aspectos do desempenho do país por esses anos de governos Lula, adentrando pelo primeiro governo Dilma, já foram objetos de vários artigos escritos aqui neste Blog.[3] Por todos os meses que antecederam ao impeachment/golpe da presidenta Dilma produzi diversos textos analisando toda aquela conjuntura.
O que pretendo a partir daqui, com essa análise, é identificar aspectos de todo esse processo político em que vivemos, que foram geradores de uma crise que se estenderá por um tempo imprevisível, mas que desde já está deixando marcas profundas na sociedade brasileira.
Quero me ater ao que considero aqueles erros cruciais nos três governos populares, até culminar com a eleição de 2014. Dali para adiante minhas análises estão postas e podem ser lidas nos links que insiro ao final deste artigo. Certamente haverá contestações, mas as críticas serão contundentes, porque a meu ver representaram erros cruciais na condução do Estado brasileiro. E tenho certeza, que as discordâncias virão à esquerda e à direita. Mas isso não significa que minhas avaliações estarão situadas numa posição de centro. Ao contrário. Bem ao contrário.
Não tenho dúvidas do que representou em termos positivos para a história política brasileira a eleição de Lula da Silva. Para a esquerda brasileira, principalmente, mas também para a latino-americana. Além de também representar um elemento novo na geopolítica mundial, não só por ser esquerda o Partido dos Trabalhadores, mas pela origem de classe de quem veio a se constituir na maior liderança política de nosso continente neste século.
Quebrou-se uma linha genealógica na política brasileira, sempre acostumada a ter na linha de frente do Poder elementos oriundos de castas tradicionais, da elite dominante, principalmente da região Sul. Embora tendo feito sua trajetória política em São Paulo, a origem nordestina, pernambucana, jamais foi renegada. Ao contrário, sempre demonstrada como um elemento enriquecedor na história desse personagem.
O Brasil entrava numa nova era da política. Era o que se acreditava, e tudo indicava que, de fato, era isso que estava acontecendo. Mas o que deu errado para que dois governos depois o veículo degringolasse ladeira abaixo, sem freio, e tendo na condução outro personagem, pérfido, guindado à condição de vice dentro de um ambiente político que se imaginava progressista?
É difícil analisar passo a passo tudo que aconteceu. Erros se cometem, naturalmente, principalmente na política, e tendo um governo progressista que lidar com um congresso repleto de oportunistas, de parlamentares eleitos via compra de votos e de financiamento empresarial de campanha, com data marcada para a cobrança ser feita por uma “elite” patrimonialista torpe que há séculos avacalha a política a sua benquerença.
Representação parlamentar no
Congresso brasileiro em 2013
(http://jornalggn.com.br/noticia/uma-
analise-da-representacao-atual-do-congresso)
Ora, não se pode imaginar poder governar à vontade o país, que possui um regime presidencialista, mas depende de um parlamento para a consecução de seus projetos políticos. Tudo bem é a democracia, dirão os cautos. Mas é a democracia que constrói essa aberração, onde um presidente de esquerda é eleito para governar o país, e o mesmo povo elege um congresso repleto de parlamentares que rezam numa cartilha política oposta, e que a maior parte deles não possui o mínimo pudor e vendem-se descaradamente, independente de quem está a conduzir o Estado. Desde que possam ser beneficiados por medidas que os sustentem por longo tempo em seus mandatos, e/ou que sirvam a projetos maiores de conquistar governos em seus estados. E a política, tradicionalmente se faz assim no sistema capitalista. Ou mesmo em outros sistemas, não importa. Estou analisando o Brasil.
Podemos concluir que seria impossível governar sem estabelecer uma ampla aliança com setores de centro, ou eventualmente com alguns liberais mais conservadores, embora politicamente maleáveis. Dada às circunstâncias, era isso que precisava ser feito, e foi feito. Mas à custa de comportamentos condenáveis, e condenados pela esquerda por décadas antes de assumir o poder. Construiu-se dessa forma, uma plataforma (base) frágil, tendo abaixo areia movediça. Ao não adotar uma atitude de apresentar propostas que mudassem a estrutura partidária e eleitoral, juntamente com outras reformas necessárias para fazer do ato político parlamentar algo mais decente, a esquerda terminou por escolher um rumo perigoso, que poderia levá-la para aquele solo arenoso e pantanoso que traria o risco de engoli-la.
Mas no princípio era o verbo. Tudo transcorreu tranquilamente a partir de medidas adotadas que garantiram à classe dominante, principalmente ao setor financeiro, que não haveria mudanças bruscas na economia. Assim, o governo por certo tempo conseguiu se equilibrar numa corda bamba, tendo que agradar a esse setor, por um lado, e por outro adotar medidas de caráter social que contemplasse todo o discurso de investimento nas camadas mais pobres e apresentasse propostas progressistas para setores que por muito tempo foram marginalizados em nossa história.
Só que não se pode confiar na política, e em políticos que agem como escorpiões. Os métodos adotados para garantir uma maioria parlamentar, foram os mesmos usados por aqueles que estavam na oposição, mas que fizeram usufruto deles quando estiveram à frente do governo. Naturalmente, à medida em que o governo se fortalecia, os que lhes davam apoio pediam mais, e os que lhes faziam oposição preparavam o bote, para por meio de estruturas do próprio estado, onde ainda haviam influências ou tinham compatibilidades de ideias, denunciar os mesmos métodos corruptos pelos quais governaram por muito tempo. O resultado disso foi o aparecimento de denúncias de compras de votos para garantir votações importantes no Congresso. O mecanismo era tradicional, feito na política historicamente desde séculos e, sempre criticado pela esquerda.
Useiro e vezeiro de um método espúrio, o poder político, desta feita comandado por setores de esquerda, mergulhou num lamaçal putrefato. A luta política saiu do parlamento e foi deslocada para a justiça, onde alguns personagens narcisistas se sobressaíram, e transpôs-se no tempo o lugarejo e as bruxas de Salém[4] para o planalto central. Iniciava-se um período de delações, perseguições, prisões, em alguns aspectos derivados de malversações, de fato, realizadas, em outros por mecanismos de vinganças sobre alguns personagens que se destacavam na condução do Poder e do partido majoritário, por trás do governo de Lula da Silva.[5]
O governo se enfraqueceu. Perdeu seus principais personagens auxiliares do presidente. O chamado “mensalão”, expressão chula comprada pela mídia de um dos principais delatores, aquele personagem que na multidão pego roubando sai gritando: “pega-ladrão”. Por trás de tudo, embora no vocabulário boa parte deva ser caracterizada como corrupção, estava o financiamento de campanhas, o “maledeto” Caixa 2, nunca antes tipificado como crime e sendo sempre negligenciado pela Justiça Eleitoral. Ou cobrava-se para quitar dívidas de eleições passadas, ou para garantir sucesso na eleição seguinte. Mas, inegavelmente, há quem se beneficie pessoalmente desse processo, se enriquecendo às custas de dinheiro ilícito.
Embora enfraquecido Lula da Silva contava com um trunfo maior. A economia brasileira surfava em ondas bravias e conseguia chegar à praia sem dificuldades, diante de uma crise financeira que ameaçava quebrar as principais potências econômicas do planeta, e de quebra (com perdão da redundância) levar o sistema financeiro junto. Mas o Brasil, por meio das medidas que aqueceram o mercado interno, principalmente os programas sociais e o aumento real do salário mínimo, parecia passar incólume diante de tamanha crise. Uma marolinha, diante do tsunami que se aproximava.
Veremos a seguir como, e porque, descarrilou essa locomotiva que seguia a todo vapor.

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