Por
David Harvey(*)
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É imperativo reacender
as paixões políticas presentes no Manifesto. Eis um documento extraordinário,
cheio de insights, rico em sentidos e explodindo em possibilidades políticas.
Embora não tenhamos o direito de o alterar, temos a obrigação de interpretá-lo
à luz das condições contemporâneas. Marx e Engels escreveram, no prefácio à
edição alemã de 1872, que a aplicação dos princípios do Manifesto dependeria,
“em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes”
(p.71).
Sem expansão geográfica,
reorganização espacial e desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo
teria parado de funcionar há muito tempo. A procura contínua de um “ajustamento espacial” para as contradições internas do capitalismo, junto com a inserção
desigual dos diferentes territórios e formações sociais no mercado mundial
capitalista, tem criado uma geografia histórica mundial da acumulação
capitalista, cuja natureza precisa ser bem compreendida. Vale a pena examinar
como Marx e Engels conceituaram o problema no Manifesto Comunista.
*
A abordagem que fazem é
profundamente ambivalente. Por um lado, as questões da urbanização, da
transformação geográfica e da “globalização” ocupam um lugar importante na
exposição. Mas, por outro, as ramificações potenciais das restruturações
globais tendem a se perder em uma retórica que privilegiam o tempo e a historia
em detrimento do espaço e da geografia.
O Manifesto é, sem dúvida,
eurocêntrico. Mas a importância do contexto global não é ignorada. O surgimento
da burguesia é intimamente ligado a suas atividades e estratégias:
“A grande indústria criou o mercado
mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou
enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de
comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da
indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas
se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando
num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.” (p.41)
A burguesia ultrapassou os poderes
feudais e transformou o Estado (com os seus poderes militares, organizacionais
e financeiros) no executivo das suas próprias ambições. Uma vez instalada no
poder, continuou sua missão revolucionária em boa parte através de
transformações geográficas. Internamente, a rápida urbanização levou à
dominação da cidade sobre o campo, simultaneamente salvando-o da “estupidez” da
vida rural e reduzindo o campesinato a uma classe subordinada. A urbanização
concentrou espacialmente tanto as forças produtivas quanto a força de trabalho,
transformando populações espalhadas e sistemas descentralizados de direitos à
propriedade em concentrações maciças de poder político e econômico. E depois:
“Impelida pela necessidade de
mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita
estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda
parte.
Pela exploração do mercado mundial,
a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os
países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base
nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser
destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução
se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas — indústrias que já
não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das
regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio
país mas em todas as partes do mundo. Ao invés das antigas necessidades,
satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para
sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais
diversos.
No lugar do antigo isolamento de
regiões e nações auto-suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma
universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção
material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação
tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais
tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e
locais nasce uma literatura universal.” (p.43)
Aliás, a burguesia:
“Sob pena de ruína total [...]
obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a
abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra,
cria um mundo à sua imagem e semelhança.” (p.44)
A temática da globalização e da
“missão civilizadora” da burguesia é explicada, embora com um toque irônico.
Mas, se a missão geográfica da burguesia é a reprodução das relações de classe
e de produção numa escala geográfica de progressiva expansão, então as bases
para as contradições internas do capitalismo e a revolução socialista também se
expandem geograficamente. A conquista de mercados abre o caminho para “crises
mais extensivas e mais destrutivas,” enquanto simultaneamente “diminuem os
meios de prevenir as crises”. A luta de classes começa a ser global;
trabalhadores de todos os países tem que se unir numa luta revolucionária
anticapitalista e pró-socialista.
Existem vários problemas nesta
explicação. Eles precisam ser resolvidos se quisermos desenvolver uma
compreensão politicamente útil de como a geografia da acumulação do capital
ajuda a perpetuar o poder da burguesia e suprimir os direitos e aspirações dos
trabalhadores.
1.
A divisão do mundo em nações
“civilizadas” e “bárbaras” é anacrônica, senão positivamente ofensiva, ainda
que possa ser perdoada como típica da época. O modelo centro-periferia de
acumulação que a acompanha é, na melhor hipótese, uma simplificação excessiva
e, na pior, enganoso. Ele faz parecer que o capital se origina em um lugar (a
Inglaterra ou a Europa) e depois se difunde para fora, atingindo o restante do
mundo. Embora, às vezes tenha sido o caso, tal explicação é contrária ao que
aconteceu no Japão depois da restauração Meiji ou o que está acontecendo hoje
em dia em países como Coréia do Sul e a China, que internalizam a acumulação
primitiva e inserem as suas forças de trabalho e produtos nos mercados globais.
A geografia da acumulação de capital merece um tratamento muito mais elaborado
do que o esboço rápido provido pelo Manifesto. A falta de uma teoria geográfica
do desenvolvimento desigual (com frequência envolvendo acumulação primitiva
desigual) impede a compreensão da dinâmica da formação da classe operária e da
luta de classes no espaço global.
O mundo não se apresenta como um
tabuleiro sobre o qual a acumulação do capital jogou o seu destino. É uma
superfície muito variada, diferenciada ecológica, política, social e
culturalmente. Os fluxos do capital encontram alguns terrenos mais fáceis de
ocupar do que outros, em diferentes fases de desenvolvimento. O contato com o
mercado global capitalista levou algumas formações sociais a se inserirem
agressivamente, enquanto outras não o conseguiram, com efeitos extremamente
importantes. A acumulação primitiva ou “original” pode acontecer e tem
acontecido em lugares e tempos diferenciados. Como e onde acontece depende das
condições locais, ainda que os efeitos sejam globais. Hoje é crença generalizada
no Japão, por exemplo, que o sucesso comercial do país após 1960 deveu-se, em
grande parte, à posição isolada e não competitiva da China depois da revolução
e que a inserção contemporânea do poder chinês no mundo capitalista significa o
fim para o Japão como um país produtor, ao contrário de uma economia rentista.
Uma contingência geográfica deste tipo tem um papel importante na história do
mundo capitalista. Aliás, o caráter global da acumulação do capital cria o
problema de um poder burguês disperso que pode ser muito mais difícil de
controlar geopoliticamente precisamente por causa de sua multiplicidade
geográfica. O próprio Marx se preocupava com esta possibilidade. Em 1858,
escreveu:
“Para nós a pergunta difícil é a
seguinte: a revolução no continente é iminente e o seu caráter será socialista;
não será necessariamente esmagada neste pequeno canto do mundo, sendo que em um
terreno muito maior o desenvolvimento da sociedade burguesa é ainda
ascendente”. [Correspondência com Engels, 8 de outubro de 1858]
É instrutivo refletir sobre o
número de revoluções socialistas que foram cercadas e esmagadas pelas
estratégias geopolíticas de um poder burguês em ascendência.
2.
O Manifesto corretamente destaca a
importância de reduzir as barreiras espaciais através de inovações e
investimentos em transporte e comunicação. Neste sentido, o Manifesto é de uma
extraordinária presciência. “A aniquilação do espaço através do tempo”, como
Marx o chamou posteriormente [Grundrisse], enfatiza a relatividade das relações
espaciais e vantagens geográficas, fazendo da vantagem comparativa no comércio
um assunto muito dinâmico, em vez de estável.
3.
Uma das maiores lacunas do
Manifesto é a sua falta de atenção para a organização territorial. Se, por
exemplo, o Estado é “o braço executivo da burguesia”, então ele tem que ser
definido, organizado e administrado territorialmente. O século dezenove foi um
grande período de definições territoriais (com o estabelecimento da maioria das
fronteiras do mundo entre 1870 e 1925 pelos poderes coloniais). Mas a formação
e a consolidação do Estado envolve mais do que a definição territorial e tem se
mostrado uma tarefa longa e muitas vezes instável (em particular, por exemplo,
na África). Foi só depois de 1945 que a descolonização tornou a formação
mundial do Estado um pouco mais próxima do modelo altamente simplificado do
Manifesto.
4.
O Estado é só uma das muitas
instituições mediadoras que influi na dinâmica da luta mundial de classes. O
dinheiro e as finanças também têm que ser consideradas. Mas o Manifesto não se
pronuncia a este respeito. Temos duas maneiras de aprofundar a questão. O
dinheiro mundial (world money) pode ser visto como uma representação universal
com a qual os territórios se relacionam (através das suas próprias moedas) e os
capitalistas se conformam. Este é um ponto de vista muito funcionalista (é a
concepção dominante na ideologia neoclássica contemporânea da globalização). Ou
o dinheiro pode ser visto como uma representação do valor que surge de uma
relação dialética entre trabalhos concretos feitos em lugares e tempos
específicos e a universalidade de valores (trabalho abstrato) conseguida na
medida que a troca de mercadorias se efetua como um ato social corriqueiro no
mercado mundial. Bancos centrais e outras instituições financeiras mediam esta
relação. Muitas vezes são instáveis (e baseadas territorialmente), sugerindo
uma relação problemática entre condições locais e os valores universais. Mas
estas instituições também afetam trabalhos concretos e relações de classe
formam padrões de desenvolvimento geográfico desigual através de seu comando
sobre a formação e os fluxos de capital.
5.
O argumento de que a revolução
burguesa plantou a semente de uma maior unidade política da classe operária
através da urbanização e a concentração da indústria é importante. Diz que a
produção da organização espacial não é neutra com respeito à luta de classes.
Este é um princípio vital, não importa quanto sejamos críticos com respeito ao
modelo de três etapas desenhado no Manifesto. Estas etapas são
1 a luta individual
que começa a se coletivizar ao redor de fábricas, profissões e lugares
específicos;
2 a unificação de
muitas destas lutas através da concentração de atividades e a formação de
sindicatos que começam a se comunicar um com o outro;
3 a emergência da luta
de classes ao nível nacional.
Durante a maior parte do século
dezenove, este modelo descreve um caminho bastante comum do desenvolvimento da
luta de classes. E trajetórias parecidas podem ser percebidas no século vinte
(por exemplo, Coréia do Sul). Mas uma coisa é retratar isto como um modelo
descritivo útil e outra é argumentar que estas são etapas necessárias através
das quais a luta tem que evoluir rumo à construção do socialismo. Aliás, a
burguesia pode desenvolver estratégias espaciais próprias de oposição de
classe.
O ataque atual contra o poder
sindical através da dispersão e fragmentação espacial de processos de produção
(muitos deles, está claro, indo para os assim chamados países em
desenvolvimento, onde a classe operária é mais fraca) tem se mostrado uma arma
poderosa para a burguesia. O estímulo ativo à concorrência entre os
trabalhadores através do espaço também tem ajudado aos capitalistas, sem falar
do problema do regionalismo e do nacionalismo nos movimentos operários.
Em geral, os movimentos operários
têm tido mais sucesso controlando poder em lugares e territórios do que
controlando espacialidades. A classe capitalista tem usado os seus poderes de
manobra para derrotar as revoluções proletárias/socialistas, que sempre
estiveram ligadas a um lugar (conforme a preocupação de Marx em 1858, citada
acima). Nada disso é incompatível com o argumento básico do Manifesto. Mas
também é claro que se trata de algo muito diferente do retrato que ele constrói
sobre a dinâmica da luta de classes.
6.
Embora a unidade global da classe
operária ainda fique como a única resposta apropriada às estratégias
globalizantes de acumulação de capital, a maneira de conceituar esta resposta
merece um estudo crítico. No núcleo do argumento do Manifesto está a crença que
a indústria moderna e o trabalho assalariado têm tirado dos trabalhadores “todo
traço de caráter nacional”, com o resultado de que “os trabalhadores não têm
pátria”.
“Os isolamentos e os antagonismos
nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da
burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado mundial, com a
uniformidade da produção industrial e com as condições de existência a ela
correspondentes. A supremacia do proletariado fará com que desapareçam ainda
mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos nos países civilizados,
é uma das primeiras condições para sua emancipação. À medida que for suprimida
a exploração do homem pelo homem será suprimida a exploração de uma nação por
outra.”
A visão condutora é bastante nobre,
mas existe muito de pensamento desejo aqui. No melhor dos casos, o Manifesto
concede que a estratégia socialista vai “ser diferente em países diferentes” e
que problemas podem surgir na tradução de ideais políticos de um contexto a
outro — os alemães adaptaram ideias socialistas francesas às suas próprias
circunstâncias, criando um tipo de socialismo alemão que Marx criticou de forma
contundente.
Existe uma sensibilidade limitada
com respeito às condições materiais desiguais e às circunstâncias locais. Mas a
tarefa dos comunistas é conferir unidade a estas lutas, definir os pontos
comuns dentro das diferenças e criar um movimento onde os trabalhadores do
mundo possam se unir.
O Manifesto insiste, com toda
razão, que a única maneira de resistir ao capitalismo e construir o socialismo
é através da formação global da classe operária, o que talvez possa ser
alcançado por meio de uma progressão que passa de uma etapa local a uma
nacional e global. Os comunistas têm de encontrar maneiras de incorporar os
movimentos locais e particulares, direcionando-os para algum tipo de objetivo
comum. Mas também existe uma leitura mais mecanicista que vê a eliminação
automática de diferenças nacionais através do avanço burguês, da des-localização
e des-nacionalização de populações operárias e portanto das suas aspirações e
movimentos. Os comunistas, em seguida, têm que se preparar para apressar o
final desta revolução burguesa. Têm que educar os trabalhadores acerca da
verdadeira natureza da sua situação e organizar seu potencial revolucionário.
Tal leitura mecanicista é, do meu ponto de vista, errada, embora o Manifesto
tenha um argumento bastante forte a favor dela.
A dificuldade central aqui se
encontra na presunção que a indústria capitalista e a mercantilização vão levar
à homogeneização da população trabalhadora. Em certo sentido isto é verdade,
mas não consideram como o capitalismo simultaneamente se diferencia, às vezes
se alimentando de antigas diferenças culturais, relações de gênero, predileções
étnicas e crenças religiosas. O capitalismo faz isto em parte através de
estratégias burguesas de divisão e controle, mas também converte a escolha de
mercado num mecanismo para a diferenciação de grupos. O resultado é a
implantação de divisões de gênero e classe, juntamente com muitas outras
divisões sociais, na paisagem geográfica do capitalismo. Divisões como as que
existem entre cidades e subúrbios, entre regiões e entre nações não podem ser
compreendidas como resíduos de alguma ordem cultural antiga.
Não são automaticamente
descartáveis. São produzidas ativamente por meio dos poderes diferenciadores da
acumulação de capital e das estruturas de mercado. Lealdades ligadas a lugares
proliferam e, em alguns aspectos, se fortalecem, em vez de se desintegrarem
através dos mecanismos da luta de classes e através da atuação tanto do capital
quanto do trabalho, cada um atuando a favor de si mesmo. A luta de classes
facilmente se dissolve em uma série de interesses comunitários geograficamente
fragmentados, facilmente cooptados ou explorados pelos mecanismos da penetração
neoliberal do mercado.
Existe no Manifesto uma
subestimação potencialmente perigosa da capacidade do capital para fragmentar,
dividir e diferenciar, absorver, transformar e até exacerbar divisões culturais
antigas, produzir diferenciações espaciais e mobilizar geopoliticamente. Do
mesmo modo, há uma subestimação de como o movimento operário mobiliza através
de formas territoriais de organização, construindo, no caminho, lealdades
ligadas a lugares. A dialética da comunidade e da diferença não está
desenvolvida do modo implicado no esboço fornecido pelo Manifesto, embora sua
lógica subjacente e sua tendência à articulação estejam corretas.
As condições para que os
trabalhadores se unam globalmente através da luta de classes não tem diminuído.
O Banco Mundial avalia que a força de trabalho global dobrou em tamanho entre
1966 e 1995. Hoje ela é estimada em 2,5 bilhões de homens e mulheres e mais de
um bilhão de indivíduos vivem de um dólar ou menos por dia. Em muitos países,
“os trabalhadores não têm representação e trabalham em condições insalubres,
perigosas ou humilhantes. Ao mesmo tempo, 120 milhões ou mais estão
desempregados e mais alguns milhões já desistiram de procurar emprego”. Isto
existe em uma época de crescimento acelerado dos níveis médios de produtividade
(que também parecem ter dobrado, em escala mundial, desde 1965) e do comércio
mundial, alimentado por reduções nos custos de transporte e uma onda de
liberalização comercial. Como consequência, afirma a OIT:
“o número de trabalhadores
empregados em indústrias que operam com exportações e importações tem crescido
de maneira significativa. Pode-se dizer que os mercados de trabalho no mundo
inteiro estão se tornando mais interligados. Alguns observadores vêem nestes
acontecimentos a emergência de um mercado global de trabalho, onde o mundo tem
se tornado uma enorme feira com nações competindo pela venda de suas forças de
trabalho, oferecendo-as ao menor preço possível. A preocupação central é que a
intensificação da concorrência global vai gerar pressões para baixar salários e
padrões de trabalho no mundo inteiro”.
Movimentos massivos rumo à
constituição de uma força global de trabalho também têm ocorrido (por exemplo
na China, Indonésia e Bangladesh). Cidades como Jakarta, Bangkok e Bombaim têm
se tornado polos de formação duma classe operária transnacionalizada — com
elevada composição feminina — sob condições de pobreza, violência, poluição e
repressão feroz.
Do mesmo modo, a desigualdade está
fora de controle. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas informa que,
“entre 1960 e 1991, a parte da renda global detida pelos 20% mais ricos da
população cresceu de 70% para 85%, enquanto a dos mais pobres diminuiu de 2,3% para
1,4%”.
Até 1991, “mais de 85% da população
do mundo recebia apenas 15% da renda” e “o valor possuído pelas 358 pessoas
mais ricas, os bilionários em dólares, é igual à renda combinada dos 45% mais
pobres da população mundial — 2,3 bilhões de pessoas”. Esta polarização de
riqueza e poder é tão obscena quanto surpreendente:
“A Indonésia, em nome do sistema de
mercado livre, promove as violações mais flagrantes dos direitos humanos e mina
o direito à subsistência de quem a vantagem competitiva do país depende”.
Muitas multinacionais estão
subcontratando aqui: Levi Strauss, Nike, Reebok. Muitas subcontratadoras
pertencem a coreanos. Todas tendem a exercer uma administração brutal e pagar
salários baixos. Nike e Levi estipulam um código de conduta como critério de
investimento, mas, na realidade, sempre procuram obter o menor custo de
produção. Alguns subcontratadores saem de Jakarta para cidades menores, onde os
trabalhadores tem ainda menor capacidade de se articularem para melhorar suas
condições de vida”.
Em O capital, Marx conta a estória
de uma trabalhadora, Mary Anne Walkely, com vinte anos de idade, que muitas
vezes trabalhava 30 horas sem parar (embora ressuscitada de vez em quando por
xerez, porto ou café) até que, depois de um esforço particularmente duro
requerido pela preparação de “vestidos maravilhosos para as senhoras nobres
convidadas ao baile em honra ao novo Príncipe de Gales,” morreu, segundo o
depoimento de um médico, “de longas horas de trabalho numa oficina superlotada
e um quarto pequeno demais e mal ventilado”. Compare-se isso com a descrição
contemporânea das condições de trabalho nas fábricas de Nike, no Vietnã:
“[O Sr. Nguyen] constatou que o
tratamento dos operários pela administração da fábrica no Vietnã [normalmente
cidadãos da Coréia ou Taiwan] é uma ‘fonte constante de humilhação’, que o
abuso verbal e o assédio sexual acontecem com freqüência e que a ‘punição
corporal’ também é freqüente. Ele descobriu que quantidades extremas de
trabalho extraordinário são impostas aos trabalhadores vietnamitas. O Sr.
Nguyen escreveu em seu relatório que ‘é comum’ que vários trabalhadores
desmaiem de esgotamento, calor e má nutrição durante o turno. Fomos informados
de que vários trabalhadores até tossiram sangue antes de desmaiar”.
As condições materiais que
motivaram o ultraje moral no Manifesto não desapareceram. Estão personificadas
em tudo, nos tênis Nike, nos produtos de Disney, nas roupas do GAP, nos
produtos de Liz Claiborne. O contexto básico do Manifesto, portanto, não tem
mudado radicalmente. O proletariado global é maior do que nunca. A necessidade
de os trabalhadores se unirem é maior do que nunca. Mas as barreiras à unidade
são muito mais formidáveis do que eram no já complicado contexto Europeu de
1848. A força de trabalho é hoje muito mais espalhada geograficamente,
culturalmente heterogênea, etnicamente e religiosamente diversificada,
racialmente estratificada e linguisticamente fragmentada. Os modos de
resistência ao capitalismo e a definição de alternativas são muito diferentes.
E, embora seja verdade que os meios
de comunicação e as oportunidades de tradução tenham melhorado muito, isto tem
pouco significado para o bilhão ou mais de trabalhadores que vivem com menos de
um dólar por dia, possuindo histórias culturais, literaturas e compreensões
muito diferenciadas (comparados aos banqueiros internacionais e às
multinacionais, que sempre os usam). Diferenças (tanto geográficas como
sociais) em salários e cláusulas sociais dentro da classe operária global
também são maiores do que nunca. A brecha política e econômica entre os
trabalhadores mais ricos na, por exemplo, Alemanha e Estados Unidos, e os
trabalhadores mais pobres, na Indonésia e Mali, é muito maior do que a brecha
entre a assim chamada aristocracia do trabalho européia e suas contrapartidas
não qualificadas no século dezenove. Isto significa que certo segmento da
classe operária (na maior parte, mas não exclusivamente, dos países
capitalistas avançados e que, muitas vezes, possuem uma voz politicamente mais
forte) tem muito a perder além dos seus grilhões. E, embora as mulheres sempre
tenham sido um componente importante da força de trabalho nos primeiros anos do
desenvolvimento capitalista, sua participação tem se generalizado, ao mesmo
tempo em que se concentra em certas categorias ocupacionais (normalmente
chamadas “não-qualificadas”), de modo a gerar questões agudas sobre a política
operária que com grande freqüência foram varridas, no passado, para baixo do
tapete. Junto a tudo isto as problemáticas da urbanização massiva, os
transtornos ecológicos graves, os movimentos migratórios transnacionais e o
terreno para a construção de uma alternativa socialista aparece tão
diferenciado e desigual como complicado.
O movimento socialista precisa
compreender estas transformações geográficas extraordinárias e desenvolver
táticas para lidar com elas. Isto não dilui a importância da palavra de ordem
final do Manifesto (união dos proletários). As condições que hoje enfrentamos
fazem esse chamado mais imperativo do que nunca. Mas não podemos fazer nem
nossa história nem nossa geografia sob condições histórico-geográficas de nossa
própria escolha.
Uma leitura geográfica do Manifesto
enfatiza a não-neutralidade das estruturas e poderes espaciais na complexa
dinâmica espacial da luta de classes. Revela como a burguesia adquiriu seus
poderes vis-à-vis de todos os modos precedentes de produção, mobilizando o
comando sobre o espaço como uma força produtiva peculiar a ela mesma. Mostra
como a burguesia tem aumentado e protegido continuamente seu poder através
desse mesmo mecanismo. Portanto, até que a classe operária aprenda como
enfrentar esse poder burguês de comandar e produzir espaço, sempre vai jogar em
uma posição de fraqueza não de força. Do mesmo modo, até esse movimento
compreender as condições e diversidades geográficas de sua própria existência,
vai ser incapaz de definir, articular e lutar por uma alternativa socialista
realística à dominação capitalista.
*David Harvey é um dos
marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu
trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É
professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova
York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi
também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu
livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um
dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda
Guerra Mundial. Seus livros mais recentes são O enigma do capital e Para
entender O capital, livro I.
** Publicado originalmente, em português, na revista Lutas Sociais, do Neils-PUC.
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