Até que ponto a Comissão da Verdade será capaz de nos colocar de frente com o que a História tem para nos ensinar?
No dia 18 de novembro, em solenidade no Palácio do Planalto, a Presidenta Dilma Roussef sancionou a Lei que criou a Comissão da Verdade, mecanismo pelo qual o Estado brasileiro buscará investigar e identificar os vários casos de violação dos direitos humanos no Brasil, no período de 1946 a 1988.
Fui convidado para o evento pela contribuição que tenho dado na busca pela localização dos corpos dos guerrilheiros, como observador do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), sob a coordenação do Ministério da Justiça, Ministério da Defesa e Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.
Participei por entender que a criação da Comissão da Verdade cumpre um papel importante na identificação dos graves crimes que se cometeu em nosso país, no período em que vigorou a ditadura militar. E impõe ao Estado a obrigação e responsabilidade de garantir as condições para que todas as informações que se encontram sob sigilo em diversos órgãos, sejam abertas e expostas para que se descubram as violações que ocorreram, em quais circunstâncias, bem como a identificação dos responsáveis.
Esse tipo de comissão também já foi criada em outros países, mas sob situações e expectativas diferentes, principalmente no Chile e na Argentina, dentre outros. O elemento diferencial no caso do Brasil é uma polêmica Lei da Anistia, auto-concedida pelos militares ainda enquanto vigorava o regime militar. Essa lei garantiu aos militantes de esquerda a condição para retorno ao país dos exilados, e dos que estavam presos e/ou processados pela famigerada Lei de Segurança Nacional, em esmagadora maioria por cometerem “crimes” de opiniões, ou por insistirem em se opor à ditadura, portanto nitidamente políticos.
Ocorre que a condição para isso foi assegurar que os agentes do Estado, envolvidos com crimes de torturas e assassinatos, também fossem cobertos por essa lei, impedindo que eventuais processos os condenassem, evitando assim que como conseqüência os bastidores de toda a sujeira dos porões da ditadura fosse exposto. Diferente do que aconteceu, e acontece, nos países citados, onde até mesmo generais envolvidos com crimes estão sendo condenados.
No Brasil, como historicamente acontece, as transições políticas se completam mediante arranjos entre as elites, ou entre essas e eventuais novos grupos que ascendem ao poder. Com o pretexto de garantir estabilidade política procura-se amenizar os eventuais abusos cometidos em períodos anteriores. Assim, deixam para a história as análises sobre possíveis violações de direitos humanos, abusos, assassinatos e crimes de torturas. Mas é essa mesma história que nos dá o testemunho de que esses arranjos, que em certos casos até premiam os responsáveis por alguns delitos tornando-os personagens de destaques nos panteões da política, reforçam a impunidade, não pune tais crimes e possibilitam que em poucas décadas à frente tudo possa se repetir.
Como a suprema corte, o mais alto órgão da justiça em nosso país é indicado pelo chefe do poder executivo, perde-se, assim, parte da isenção que se esperaria dessa instituição republicana. O que se vê, talvez por isso, é uma clara opção do judiciário por esse rearranjo, tomando decisões nitidamente políticas, numa afronta aos preceitos constitucionais que apontam para punições aos crimes de tortura, internacionalmente considerados como imprescritíveis e de caráter hediondo.
Ora, porque insistir em repetir em todos os discursos que a criação da Comissão da Verdade não tem o caráter de revanchismo. O que se pode dizer da ação de um procurador público? Que, em nome do estado, tem o papel de condenar todos aqueles que agem contra os interesses públicos? Ou do promotor? Que nos julgamentos de ações criminosas age também para punir, de acordo com a lei e em nome do Estado, quem porventura tenha cometido crime, e impondo de acordo com a lei as punições devidas? E os crimes de torturas se encontram entre aqueles cujas penas são as mais duras e têm que ser cumpridas em regimes fechados. Porque diferenciar esses casos dos absurdos cometidos, como no exemplo que cito no artigo “História e Verdade” (http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2011/08/historia-e-verdade-para-nao-esquecer.html), extraído do depoimento de um torturador e citado no livro “Sem Vestígio”, de Taís Moraes? Como falar em revanchismo, quando se trata de punir crimes hediondos e monstruosos, que incluem abusos sexuais, decapitação e esquartejamento?
Ora, a busca pela verdade não pode se limitar a investigar os crimes, como eles foram produzidos e os seus graus de brutalidades. Deve também procurar identificar os responsáveis e apontar punições. Só assim a verdadeira democracia estará resguardada, já que cortará a até aqui quase eterna certeza da impunidade pelos crimes políticos, amenizados pelos conchavos e cordialidade de antigos adversários, em alguns casos tornados aliados nos rearranjos sempre possíveis num jogo político que se baseia mais no pragmatismo do que é mais importante para assegurar a manutenção do poder.
Embora defensor da Lei, entendo que esse comportamento pusilânime a tornará inócua. A tarefa que ela irá desempenhar poderia – e até que assim já ocorre – ser cumprida por historiadores, jornalistas e cientistas sociais. São inúmeras as pesquisas feitas e livros publicados que comprovam com bases empíricas e análises documentais, todos os abusos que foram cometidos, com indicação, inclusive, dos responsáveis. Até porque, alguns deles têm - sabe-se lá porque, provavelmente por desencargo de consciência, em função de envelhecimento e de proximidade da morte - assumidos seus crimes, mas sempre procurando proteger-se com o argumento de que cumpriam ordens. Ora, ninguém é obrigado a torturar e matar, se o faz, assume a responsabilidade e tem que ser punido com o rigor da lei. Esta não pode ser abrandada, nem para o executor, nem para quem ordenou o crime.
De outro modo o Estado brasileiro deverá, independentemente desta Lei, prestar contas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), como já foi condenado no caso da Guerrilha do Araguaia. A impunidade, e a negação em prestar informações sobre os crimes cometidos, de tortura, execução e ocultação de cadáver, levaram a essa condenação. Embora a Corte tenha reconhecido os avanços, principalmente a partir da criação do Grupo de Trabalho como decorrência de decisão judicial (ver o artigo citado acima), a maneira como o estado brasileiro vem se submetendo a uma lei de anistia considerada inadequada e ilegítima, levará certamente a uma nova condenação do país na OEA.
O mais estranho, na análise da Lei que cria a Comissão da Verdade, é a absurda distensão temporal, ampliando as investigações a épocas anteriores ao golpe militar. Absolutamente desnecessária, que só dificulta os trabalhos de uma comissão que terá um prazo limitado a dois anos para apresentar resultados sobre investigações de milhares de fatos de violações de direitos humanos ocorridos entre 1964 e 1984. O período anterior merece tanto ser investigado quanto os abusos que continuam sendo cometidos desde 1984 até os dias atuais, com vários casos de torturas ocorrendo em quartéis, cadeias, penitenciárias e até mesmo em favelas e bairros periféricos nas grandes cidades. Mas não deveriam ser objetos da criação de uma comissão específica, que deve se concentrar num período recente, quando vigorou uma ditadura militar em nosso país. Deve ser parte das ações das estruturas existentes de um estado cujo governo eleito democraticamente, não tomou até então as medidas necessárias para fazer uma transformação radical na estrutura policial do Estado Brasileiro, que ainda se mantém formada por uma mentalidade que vê no cidadão um suspeito em potencial, principalmente os pobres, jovens, estudantes e negros.
Caberá então à sociedade, de forma organizada dar o apoio necessário aos trabalhos da Comissão da Verdade, mas exigir mais, principalmente que não abdique de punir criminosos. É imperativo uma mobilização para que se revise a Lei da Anistia, e que sejam eliminadas as restrições para as devidas condenações a torturadores e aos que praticaram crimes de mortes em nome de um Estado totalitário e de poder absoluto e discricionário. Tal como está ocorrendo em diversas partes do mundo.
Charge - Santiago |
Não falamos aqui de revanchismo, vingança, ou qualquer termo que sirva de justificativa para evitar impunidades. O que se quer, verdadeiramente - além da Memória e da Verdade - é Justiça!
olá professor
ResponderExcluirmuito bom o texto!
Abraço
Tereza Sobreira