Por Manuel Domingos Neto*
10.03.2021
Foto: Nelson Almeida_AFP |
Todos ligados na incompetência do militar na pandemia. E quanto à defesa
armada do Brasil?
O país precisa, pode e deve dispor de instituições militares com missões
definidas, apropriadamente equipadas e obedientes ao princípio de que todo o
poder emana do povo e só em seu nome pode ser exercido.
Nunca dispusemos de corporações assim. A disjunção entre o Estado e a
sociedade não permitiu. O Estado nasceu obediente a um príncipe português e não
superou sua índole vassala. Foi capturado por oligarquias e estamentos que
promoveram o desenvolvimento socialmente excludente.
Descolado dos anseios da maioria, o Estado se expôs aos instrumentos de
força que criou para se proteger. O militar empenhou-se em ditar-lhe os rumos.
O Exército, deslumbrado com a própria força, imaginou-se até fundador da nação,
também chamada de pátria, que deriva de “terra dos pais”.
O militar não entendeu que pátria é elaboração simbólica coletiva.
Emerge de confrontações e negociações entre variados atores. Não resulta de
deliberações corporativas. Outorgando-se a paternidade da pátria, o militar
menospreza a sociedade e avilta o Estado. Da janela do quartel, só vê qualidade
no “paisano” que o corteje.
O militar precisa contribuir para a defesa do Brasil. Não pode, usando
artificiosos expedientes, pretender papel que não lhe cabe. Sem perder a mania
de mandar em tudo e de policiar brasileiros não faz sua parte.
Para o Brasil se defender, é fundamental distinguir os “assuntos da
defesa” e os “assuntos militares”. Os primeiros compreendem vasto e intrincado
rol de políticas públicas; os segundos dizem respeito a estruturação,
funcionamento e manejo das corporações armadas. O militar deve subordinar-se
aos ditames do Estado, não pretender conduzi-lo.
Apenas o Estado, entendido como um pacto entre interesses conflitantes,
tem autoridade e capacidade para conceber e conduzir assuntos de defesa.
Percepções e vontades corporativas não traduzem os interesses do Estado e da
sociedade. Ao poder político cumpre definir as forças armadas necessárias ao Brasil.
Dispomos de ministério específico para tratar dos assuntos da defesa.
Ministérios são braços executivos do poder político. Do contrário, prevaricam.
Expressando dilemas existenciais e gana de mando, o militar, por ignorância ou
má fé, pretende que esse ministério lhe “represente”.
Foto: outraspalavras.net |
Comandante prepara a tropa para atender ao mando político. Arrebatando o
lugar do político, subverte a ordem democrática e deixa o país vulnerável.
Para dispormos de defesa nacional, a primeira condição é promover a coesão
entre os brasileiros. Quanto mais fragmentados por iniquidades, mais
vulneráveis seremos. Divididos por preconceitos e discriminações, não teremos a
defesa de que precisamos.
Potências estrangeiras procuram sabotar nossa coesão estimulando a
percepção de “inimigos internos”. Assim fizeram os franceses que modernizaram o
Exército na primeira metade do século XX e os estadunidenses ao longo da guerra
fria. Assim ocorre hoje quando defensores da inclusão social são tratados como
inimigos.
Quem rejeita mudanças sociais de premência indiscutível trai a pátria.
Apresenta-se como defensor de “tradições” sabendo que há tradições e valores
que são cadáveres insepultos.
O militar que só tem olhos para a ordem interna parou no tempo colonial.
É um anacrônico. Não percebe a pátria como uma sociedade em mudança permanente,
unificada pelo sonho de uma vida melhor para todos. A pátria é antes de tudo
uma poderosa e imaginária comunhão de destino. Sacrossanta, não aceita registro
de nascimento em cartório, mas na alma comunitária. Como disse Ernest Renan há
mais de um século, é uma opção cotidiana. Castrense vive apartado, não capta
suas pulsações. Quando ávido de butins, atravessa o Rubicão fantasiado de
patriota.
Caçador de “inimigos internos”, o militar desrespeita a sociedade e
subverte o Estado. O patriotismo castrense é mesquinho, nega solidariedade aos
mais sofridos. Alimenta guerra sem fim contra quem lhe garante o soldo.
A segunda condição para a defesa do Brasil é o cultivo da amizade com os
vizinhos. Sólida coesão da América do Sul e laços estreitos com a África
Ocidental constituem barreiras contra as pretensões de agressores poderosos. Os
potenciais inimigos do Brasil sabem disso, daí alimentarem falsas rivalidades
entre nações condenadas à irmandade.
Para justificar sua existência e obter recursos públicos, o militar vê
nossos vizinhos como inimigos perigosos. Assim, sabota uma das condições
essenciais à defesa do Brasil.
Exemplo pouco conhecido de sabotagem da integração sul-americana foi o
trabalho do general Maurice Gamelin, um francês que o Brasil contratou a peso
de ouro, em 1919, para modernizar o Exército. Habilidoso vendedor de armas
(adorava nos empurrar sucatas), esse general preparou o militar brasileiro para
guerrear contra nossos vizinhos, em particular contra a Argentina, que recebia
armamento alemão.
Essa rivalidade fabricada começou a ser desfeita no final do século
passado, quando as ditaduras militares foram derrotadas. Iniciando a construção
da vizinhança fraterna, o político cuidou da defesa. Hoje, ocupando o governo,
o militar destroça num piscar de olhos o trabalho realizado.
A terceira condição para nossa defesa é o estabelecimento de sólidas
parcerias estratégicas que nos ofereçam o máximo de soberania. Estas parcerias
são aquelas que não se desfazem ao sabor de circunstâncias fortuitas. Parceiros
estratégicos firmam colaboração favorecedora de seus respectivos interesses.
Os Estados Unidos sempre obstaram tais parcerias. A lista de casos é
infindável, mas caberia lembrar o boicote ao domínio da tecnologia nuclear, da
exploração do petróleo e do programa espacial.
Quando a perspectiva de multipolaridade surgiu no horizonte, o militar
se empenhou em favorecer um governo vassalo de Washington. Agiu contra a defesa
do Brasil.
Outra condição irrecorrível para a nossa defesa é a mobilização e a
articulação eficiente das capacidades nacionais.
Instituições dedicadas à pesquisa científica e à inovação tecnológica
são indispensáveis à defesa. A comunidade acadêmica é componente de máxima valia.
O sequestro de cérebros alemães no pós-guerra mostra bem isso. Sem cientistas,
permaneceremos na eterna dependência dos produtores de armas e equipamentos.
Hoje, não podemos agir militarmente sem o aval do fornecedor de armas e
equipamentos. Quem elege o mundo acadêmico como inimigo trai o Brasil.
Empresas públicas e privadas competentes para desenvolver projetos de
alta complexidade e grande porte constituem elementos fundamentais do aparato
de defesa nacional. O estrangeiro cobiçoso alegrou-se com o desmonte
injustificável de empresas brasileiras indispensáveis à estratégia de defesa.
Foto: Diário do Centro do Mundo (DCM) |
A destruição de nossa diplomacia é outro crime inominável. O mesmo se
pode dizer das instituições responsáveis por políticas públicas de proteção do
meio ambiente e da sociedade. A pandemia que destrói vidas brasileiras revela o
quanto estas instituições são indispensáveis para nossa comunidade.
Militar que desmonta instituições públicas desserve a pátria. Não cabe
apenas deter Bolsonaro. Para a defesa do Brasil, é preciso um basta no ativismo
deletério do político castrense.
* Doutor em História pela Universidade de Paris. Ex-presidente da
Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Foi vice-presidente do CNPq.
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