sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

OS ÚLTIMOS MOMENTOS DA PEQUENA CAROL (DEZEMBRO DE 2007)*

Última foto da Carol -
Novembro de 2007
Quando minha filha começou a tossir e a ter sua respiração alterada (ela sempre sentia isso quando adoecia) logo me preocupou. A mim, a Celma, também sua Vó Maura (a Vó Maria José mora em Araguaína, e também ficava de lá preocupada), a Domícia. Todos nós ficávamos muito apreensivos quando esses sintomas apareciam. Principalmente depois dos dez dias que ela ficara internada, no mês de julho
Levamo-la em sua pediatra, Dra. Mônica, que a acompanhava desde o seu nascimento. Ela também foi a pediatra do Iago. Um exame dos pulmões, que ela solicitou, diagnosticou uma bronco-pneumonia. A dra. não sentiu isso auscultando sua respiração. Mas na mesma hora ela ligou para a pneumologista que tinha acompanhada Carol durante a internação. Trocaram idéias sobre o remédio a ser medicado e, se a suspeita era pneumonia, mesmo incipiente, o indicado seria usar um antibiótico. Também ficou acertado um horário para que a pneumologista pudesse avaliar o quadro da Carol pessoalmente.
Diferente do vírus, a bactéria – no caso a causadora da pneumonia – deve sempre ser combatida por antibiótico. Na primeira internação da Carol, ela também tomara antibiótico, mas por não se ter um diagnóstico definitivo das razões de sua doença. Em sendo vírus, somente a reação dos anticorpos em seu organismo é capaz de derrotá-lo, o que exige muito repouso, hidratação e transfusão de sangue se o quadro requerer, para que o organismo se fortaleça o suficiente para reagir ao vírus.
Apesar desses encaminhamentos, e do tratamento que foi passado para Carol, com base na existência de um início de pneumonia, era visível o enfraquecimento da minha pequena. E tornava-se mais evidente o seu quadro de enfraquecimento, palidez e cansaço. Os sintomas eram básicamente os mesmos que fizeram com que ela fosse internada em julho.
Preocupados, já estava marcada uma consulta com uma médica nutróloga – tentávamos fazer com que Carol se alimentasse melhor do que rotineiramente fazia -, solicitei a ela que fizesse um pedido para realização de um exame de sangue, também porque eu já tomara a iniciativa de buscar informações sobre um bom infectologista, para marcar uma consulta. Todo o receio nosso era que o quadro de julho se repetisse.
Fizemos um exame, hemograma completo, e diante de tamanha preocupação, mesmo sendo leigo tive a curiosidade de observar os resultados. É possível ter uma dimensão do problema, de maneira superficial, na medida em que os índices de referências acompanham os resultados do exame. O que vi me preocupou mais ainda. Tinha quase certeza de que estava se repetindo o quadro da internação anterior e isso era tudo o que não gostaríamos de ver acontecendo. Até mesmo porque, naquele momento houvera uma suspeita de leucemia.
Devemos ressaltar que, embora tendo recebido alta do hospital, quando de sua internação em junho, ela não teve alta médica, porque o seu quadro era ainda de debilidades, e até porque o médico queria confirmar o diagnóstico a partir de um acompanhamento permanente. Com isso, continuamos a realizar, a pedido do médico, os exames de sangue completos, mês a mês. Até outubro, quando os índices sanguíneos atingiram a normalidade e só assim ela teve alta médica. Ela estava ansiosa por duas razões, primeira poder continuar jogando seu esporte preferido, o Badminton; segundo, porque ela teria que fazer uma apresentação de ginástica rítmica em sua escola, na semana do aniversário de Goiânia.
Juntei todos os exames de sangue (hemograma) que ela fizera, desde o período anterior à sua internação em julho, organizei por ordem de data em uma tabela, item a item, até o último realizado antes da consulta de dezembro (07/12/2007) e enviei-os por e-mail a alguns amigos médicos, solicitando que eles pudessem dar uma opinião sobre o que poderia estar acontecendo com minha filha. Mais uma vez começava tragicamente uma alteração em seu quadro sanguíneo, com uma queda brusca das plaquetas e uma elevação dos leucócitos. A palidez dela se acentuava, a falta de ânimo, dificuldade de se alimentar e uma fraqueza que nos angustiava e nos deixava desesperados.
Mas minha filha impressionava por seu comportamento. Ela se mantinha com uma expressão de conformidade, sem reclamar da doença. Às vezes ficava impaciente, mas a cada vez que perguntávamos como ela estava se sentindo, sua voz frágil respondia: “bem”! Apesar disso, nós sabíamos que havia algo errado e que nos parecia ser bem grave. Tínhamos dificuldade em acreditar que pudesse ser leucemia, mas essa já era uma hipótese levantada mesmo que de forma cuidadosa pelos médicos, tantos os colegas quanto os profissionais que a acompanhava.
Começamos a acreditar nessa possibilidade quando, após a levarmos ao laboratório para uma nova bateria de exame de sangue, desta vez solicitado pelo infectologista na penúltima consulta (07/12), fomos alertados, pelo médico responsável pelo laboratório, da gravidade da situação da Carol. Estávamos em casa quando recebemos uma ligação do laboratório. Pediam-nos que levássemos novamente Carolina para repetir os exames. Ela tinha feito os exames na sexta-feira pela manhã, e esse contato se deu à tarde do mesmo dia. Preocupados levamos ela imediatamente ao laboratório, ainda na sexta-feira, ao cair da tarde.  Já começávamos a ficar abatidos, e repetia-se também a triste rotina dos exames de sangue em dois bracinhos cujas veias eram quase imperceptíveis (quando ela esteve internada em julho contou mais de 40 picadas de agulha para fazer os exames necessários).  Quando chegamos ao laboratório fomos conversar com o médico que, atenciosamente, explicou a necessidade da contraprova. Eles consideravam grave o quadro apresentado nos exames e disse que se fosse mantido aquele diagnóstico nós deveríamos trabalhar com a hipótese de realizar exames na medula. Apresentando informações científicas o que ele queria em verdade dizer era que o resultado do exame apontava para um quadro de leucemia. O mundo começou a girar em nossas cabeças. Dentro de nós, pai e mãe, sentíamos plenamente a gravidade do quadro de nossa querida filha, e iniciava naquele momento horas e dias de angústias e desespero.
Em um momento de descontração, necessário naquela circunstâncias, até mesmo para que ela não se entregasse à passividade, lembro-me de um fato que jamais vou esquecer, pelo inusitado e pela situação em que nos encontrávamos. Herança dos hábitos de meu pai, sempre carrego comigo um pente de bolso. Nesse dia, ao pegar a carteira deixei-o cair na entrada do laboratório. Ao chegar em casa fui procurar o pente e não o achei, foi quando a Carol disse tê-lo visto no chão. Eu disse: “minha filha, porque você não me avisou?”. E ela respondeu: “Ah, pai não acredito que você ia pegar aquele pente do chão”. Foi um dos poucos momentos de descontração dela, em meio ao cansaço e à fraqueza que aumentava a cada dia. Quando retornamos à tarde para o exame da contra-prova lá estava o pente, abaixei-me e peguei-o sob o olhar repreensivo dela. Fiz aquilo para acentuar a descontração e foi bom ter feito, ela passou uns dois dias rindo disso. Tenho o pente guardado até hoje, e espero jamais perdê-lo. Será sempre um objeto a despertar a lembrança dos últimos momentos de minha filha.
O fim de semana foi angustiante, depois até nos perguntávamos se não teria sido melhor que ela já tivesse sido internada desde aquele momento. Em casa, víamos sua fragilidade aumentar, e o cansaço tornava sua respiração difícil fazendo com que constantemente tivéssemos que aplicar aerosol para amenizar a situação.
No sábado fomos realizar outro exame. Uma ultrasonografia, solicitada pelo infectologista para verificar a situação do fígado, rins e baço. Como da vez anterior, da crise provocada pelos vírus, esses órgãos já estavam ficando bastante inchados. Retornamos para casa e aguardamos para o segundo exame com o infectologista. Isso aconteceu ás 13 horas da segunda-feira. Logo após olhar atentamente os exames ele nos disse que era necessário a internação imediata da Carol e acreditava não ser um problema afeito à sua especialidade. Segundo ele tratava-se um problema originado no sangue e que, portanto, ela devia estar sob os cuidados de um hematologista.
No mesmo momento fizemos um contato com o hematologista que a estava acompanhando desde sua última internação, acertamos a internação no Instituto Ortopédico de Goiânia (IOG), onde havia uma unidade do INGOH (Instituto Goiano de Oncologia e Hematologia). Mesmo não sendo aquele hospital e unidade hematológica do seu hematologista, ele não impôs dificuldade, concordando com o local e dizendo que daria o acompanhamento necessário. Como lá já existia uma hematologista da confiança do médico infectologista, a Carol passou então a ser acompanhada pelos dois, o que consideramos positivo apesar do hospital não ser adequado ao tratamento de criança. Mas ela ficou internada em uma unidade do INGOH e recebeu o tratamento necessário.
A internação dela se deu na segunda-feira mesmo, portanto, ao final da tarde. Ficamos preocupados porque nosso plano de saúde só garantia o atendimento em enfermaria e ela foi encaminhada para uma que tinha como companhia duas senhoras, o que dificultava minha presença tornando necessário um sobre-esforço da Celma, visto que eu não poderia passar a noite com ela. Fiz alguns contatos, inclusive junto à direção do plano de saúde, alertando para a gravidade do quadro dela e tentando encontrar uma forma de transferi-la para um apartamento. A resposta do Plano de Saúde foi imediata e positiva. Contudo nos esbarramos em outra dificuldade: não havia apartamento disponível. Mas no dia seguinte, até mesmo em função do seu estado, ela foi transferida para uma sala especial do INGOH, adequada para o tratamento oncológico.
Quando cheguei em casa, após deixar Celma e Carol no Hospital fui dar a notícia para minha mãe, que estava morando conosco e era super-apegada à Carolina e à Domícia, nossa secretária do lar e que trabalha conosco desde o nascimento de nosso primeiro filho, Iago. Portanto cuidava também da Carolina desde que ela nasceu e as duas se gostavam muito. Eu tentava me  segurar, para não dar a impressão que não estava acreditando em sua recuperação. De fato eu acreditava que teria minha filha de volta, mesmo que com dificuldades para um tratamento de uma doença terrível como a leucemia, que eu já passava a considerar uma hipótese provável. Mas lutava também contra pensamentos furtivos que insistiam em me levar para o desespero de quem vê a filha à beira da morte. Consegui transmitir a notícia com tranqüilidade. Minha mãe recebeu aparentemente bem, ela fervorosamente católica, sempre se apega à sua crença para acreditar no melhor, mesmo que esse melhor seja em última instância definido por Deus. Isso de certa forma a confortava naquele momento. O pior ela viria a sentir posteriormente, no retorno à uma rotina que já não mais contaria com a presença daquela figurinha que estava sempre presente ao lado dela. Da mesma forma reagiu a Domícia, com um grau maior de apreensão, agravando a sua situação emotiva quando viria saber da ida da Carol para a UTI.
Já era terça-feira e os novos exames de sangue feitos ali mesmo comprovaram a gravidade da situação da Carol. Imediatamente ela passou a receber transfusão de sangue, sua imunidade caía assustadoramente, o cansaço aumentava e os médicos passavam a demonstrar temor com possíveis sangramentos. Ainda nesse mesmo dia eles consideraram a necessidade dela ir para um hospital que tivesse uma Unidade de Terapia Intensiva adequada para uma criança de sua idade.
Lembro-me bem quando recebi um telefonema da Celma dizendo que os médicos consideravam a hipótese dela precisar ir para uma UTI. Eu estava em meu serviço, na Universidade, e imediatamente senti um forte aperto no coração, não pude conter minhas emoções e após desligar o telefone desabei em um choro convulsivo. Passou rapidamente por minha mente um filme me lembrando de dois casos recentes envolvendo um amigo de longa data, Gilson Bueno, que ficou quase trinta dias na UTI e não sobreviveu a um AVC, e a uma grande amiga e colega da Universidade, Verbena Lisita, que contraiu uma bactéria e teve que ser internada às pressas em uma UTI. Também não sobreviveu, vindo a falecer pouco mais de 24 horas depois de ser internada. Lembrei-me também de meu pai, que após uma luta desesperada contra o câncer, e no final dessa luta ter passado 28 dias internado, também não sobreviveu após ser transferido para uma UTI. Acompanhava-me, portanto, péssimas lembranças sobre Unidades de Terapias Intensivas, embora sendo essa uma unidade de tratamento para melhor acompanhar o paciente em estado grave. Não foi o que aconteceu em três situações que envolviam pessoas queridas, sendo uma delas o meu pai. Era natural que a minha reação fosse de desespero, temor e medo do que estava por vir.
Mesmo considerando não ser urgente a transferência para a UTI, os médicos julgaram necessário buscar um hospital onde existisse esse tipo de unidade voltada para o atendimento de crianças. Iniciou-se, então, um contato com o Hospital da Criança visando uma mudança imediata de hospital. Contudo, mais um problema nos deixaria angustiado. Não havia leito disponível no Hospital da Criança, nem enfermaria, nem apartamento. Embora ainda não fosse necessário a UTI percebia-se o agravamento da situação da Carol primeiro porque a transfusão não estava recompondo as taxas sanguíneas a sua normalidade, mas já fazia-se necessário o uso constante do oxigênio em função da falta de ar que ela estava sentindo.
A partir da terça-feira o quadro agravou-se mais aceleradamente, a falta de ar fez-se acompanhar por uma dor permanente que ela reclamava em seu braço direito, na altura do ombro. Provavelmente já era um dos sintomas apresentados pela doença, ainda não diagnosticada. Na quarta-feira pela manhã o médico nos comunicou que havia conseguido uma vaga em enfermaria no Hospital da Criança. Isso nos deixou mais tranqüilos, embora apreensivos com a possibilidade dela ter que ir para UTI.
Tentávamos anima-la, mas ela estava sentindo muito incômodo com a máscara de oxigênio, e nos preocupava o aumento da ânsia de vômito, o receio ela que viesse acompanhado de sangramentos. A máscara prejudicava também seu cabelo, já alguns dias sem poder lavá-lo. E isso também a incomodava. Fui ao supermercado comprar shampoo para que ela pudesse lavar o cabelo, algumas presilhas para mantê-lo preso e água mineral. Equivocadamente, pela pressa comprei água com gás. Como era típico da Carolina, ela não perdoou e reclamou da minha distração. Lamentavelmente ela não faria mais uso desses objetos, por isso, jamais esquecerei o que comprei naquele dia para ela.
Providenciamos através do plano de saúde uma ambulância para transferi-la de hospital. Mas ela precisava ainda realizar mais alguns exames, desta feita na medula óssea, para identificar se a causa mesma da sua doença era a leucemia. Essa transferência ficou para o período da tarde e isso permitiu que eu pudesse levar o Iago, seu irmão, para visitá-la. Ele ainda não tinha ido ao hospital desta vez. Ao mesmo tempo, acertamos com a médica um exame de sangue no Iago, para testar a compatibilidade da medula óssea, já tentando prevenir para a necessidade de transplante, caso desse positivo o exame de Leucemia. Nesse dia, além da visita do Iago, ela recebeu também outras visitas, dentre elas a do seu tio Bosco. Para ele, ao contrário do que dizia para nós, ela disse que não estava se sentindo bem. Mas, mesmo assim, conseguiu dar aquela que seria a sua última risada, quando o Iago imitou os personagens do programa humorístico “Bofe de Elite” e brincou com o fato de ter tantas coisas no quarto para ela comer e como ela não comia, ele iria pegar. Ficamos felizes por vê-la sorrir, mas seria seu último sorriso.
Enquanto ela era transferida para o Hospital da Criança eu levei o Iago para realizar o exame de compatibilidade. Depois a Celma me disse que já na ambulância Carolina virara-se para ela e fez um comentário sobre mim, dizendo que agora eu ficaria satisfeito porque lá havia uma máquina de café. Ela sempre se lembrava de quando estivera internada no mês de junho e do meu vício de tomar café. Quando era meus momentos de ficar com ela eu sempre me afastava por alguns minutos, e ela já sabia: eu me dirigia à entrada do hospital para pegar um cafezinho numa máquina automática de café expresso. Lembro-me também que, antes de sair com Iago virei-me para ela e lhe disse: “força minha guerreira, você vai sair dessa”. Ela balançou a cabeça e deu um sorriso triste, cansado. “Quem você gostaria de ser nesse momento, a Mulan ou Pocahontas?”, insisti, tentando levantar seu ânimo. Ela respondeu: “Mulan”. Fiquei satisfeito com a escolha, dei-lhe um beijo e saí apressado, para que ela não percebesse meu estado emotivo.
Depois do exame feito fui para casa deixar o Iago para em seguida ir ao Hospital da Criança, deixar algumas coisas que era preciso transferir, objetos pessoais da Carolina. Quando estava me dirigindo para lá recebi uma ligação da Celma. Havia ficado no outro hospital sua sandália. Deixei os objetos lá e fui imediatamente buscar porque era uma sandália que havia sido presenteada pela avó e ela sentiria bastante sua perda. Não tive dificuldade em achá-la. Mas quando retornei já não encontrei mais minha filha no leito da enfermaria. A mãe me aguardava, sem muita ação, e com o olhar abatido me avisou que ela teve que ser transferida para a UTI, porque se agravara o quadro respiratório. Não tínhamos o que fazer, mas no peito comprimia uma dor que relutava em despontar. Brigávamos internamente entre o otimismo necessário, de quem não quer acreditar que a morte vá vitimar uma criança e o pessimismo de quem vive traumatizado por experiências negativas de UTIs., e, claro, por ver uma filha nossa submetido a um tratamento médico que é visto como a última tentativa de se escapar de um quadro de intensa gravidade.
É doloroso lembrar em detalhes de cada momento de angústia que passamos, mas desde a sua entrada na UTI até o momento em que a morte a levou de nós, vivemos as horas, minutos e segundos mais desesperadores e doloridos de nossas vidas. Porque, diferente de antes, não podíamos mais acompanhar nossa filha, o horário em UTI para visita é bastante rigoroso e não é permitido acompanhamento. Foram 24 horas de medo, angústia, tensão e desespero. Quando saíamos recebemos visitas de alguns amigos. Um deles médico, colega de UFG e professor no Hospital das Clínicas, outra era jornalista da ADUFG, mas tinha um irmão médico que trabalhava também naquele hospital, e em seguida chegou também uma médica e colega da UFG, também professora do Hospital das Clínicas, que já havia sido contactada por amigos da Associação dos Docentes da UFG, da qual eu já havia sido presidente. Foi dito a ela da gravidade da doença de minha filha e ela gentilmente se dispôs a vê-la na UTI. Quando ela se encontrou conosco, juntamente com esses outros amigos, mostrei a tabela com todos os exames que havia organizado. Ela foi bastante direta, embora cuidadosa ao falar. Mas foi clara ao dizer da gravidade da doença da Carol, e quando dissemos saber da possibilidade de ser leucemia ela nos disse que era 99% as chances disso ser confirmado. Mas ela ficou admirada com o quadro apresentado pelos exames e reconheceu que eles indicavam, de fato, que a situação dela em junho apresentava todos os indicativos de virose. E se espantou com a maneira como se deu a recuperação, diferente da leucemia.
Fomos para casa naquele dia sentindo o chão abrir-se aos nossos pés. Não adiantava ficarmos no Hospital, pois não poderíamos estar ao seu lado. Foi uma longa noite em que temíamos pelo toque do telefone. Por mais que lutássemos internamente para pensarmos sempre numa superação daquela situação por parte de nossa filha, era inevitável que também pensássemos no pior.
Na manhã seguinte nos dirigimos para o hospital. Em casa ficaram apreensivos, minha mãe, Iago e Domícia. Quando chegamos ao hospital tentamos entrar para vê-la, mas não nos foi permitido, devido à rigidez do horário de visita em UTI. A responsável pelo setor disse que somente no horário estabelecido poderíamos visita-la: às 12:30, e somente por meia-hora. Perguntei se a Avó e o padrinho também poderiam vê-la, ela respondeu que somente em caso de extrema gravidade.
Não nos conformamos. Embora o boletim da noite anterior indicasse um quadro estável, precisávamos ver nossa filha. Tentamos por vários caminhos antecipar a visita. Àquela altura já tínhamos ao nosso lado uma grande quantidade de amigos, além dos tios dela, meus irmãos. O irmão da Celma estava viajando. Tivemos também como apoio importante, em vários sentidos, o pessoal da ADUFG, inclusive tentando nos ajudar a encontrar uma maneira de entrarmos na UTI, através do contacto com a direção da Unimed e por meio dela a direção do Hospital. Depois de vários contatos, por diversos meios, conseguimos autorização para ver nossa pequena Carol, mas o quadro que observamos não gostaria de descrever. Falamos com ela, mas, sedada e com tubos de oxigênio, sua capacidade de nos compreender era muito pouco. Mas sentimos que ela reagia a nossa presença, tanto que nos foi solicitado para evitar que ela não se emocionasse, pois isso faria com que ela ficasse muito inquieta e a prejudicasse. Quando saíamos, a responsável pelo setor virou-se para mim e me disse: “agora, se o sr. quiser pode trazer a avó e o padrinho”.
Essa frase foi suficiente para que o mundo desmoronasse sobre minha cabeça. Descemos da UTI em prantos, o quadro que vimos e a frase dita nos indicava que nossa filha teria poucas chances de sobrevivência. Decidi não mais subir, não queria aquela imagem permanentemente em minha cabeça. Aquele foi um dos dias mais longos de minha vida. A Celma ainda subiu outras vezes, junto com o padrinho, além de outros colegas médicos e enfermeiras. A expressão de cada um que voltava da visita confirmava a gravidade da situação. Quando um amigo médico, com o qual eu sempre trocava opinião sobre o quadro dela, voltou da UTI após vê-la e ao invés de conversar comigo encostou-se em uma coluna e ficou em silêncio fui conversar com ele. Perguntei o que ele achava da situação e a única coisa que me lembro dele ter respondido foi que precisávamos torcer para que ela não tivesse sangramento pelo pulmão, pois ela correria o risco de afogar-se em seu próprio sangue.
Decidi, naquele momento, que deveria vê-la. Fiz isso, juntamente com a Celma ao cair da noite. Passava das 19 horas quando subimos à UTI para aquele que seria o último contato com nossa filha em vida. Já sabíamos, então, que sua doença era mesmo a Leucemia, de um tipo raro. O diagnóstico chegara até nós no meio da tarde, pela confirmação do laboratório. Na mesma tarde ficamos sabendo que o exame de compatibilidade do sangue do Iago deu negativo. Nesses casos, embora o irmão seja o que tem maior probabilidade, o percentual é de em torno de 25% de que isso ocorra. Os médicos já haviam nos explicados quais seriam os procedimentos: primeiro, a Carol teria que sair da UTI, em seguida seria necessário uma recomposição de seus níveis sanguíneos, para depois iniciar um tratamento quimioterápico e nos dedicarmos à busca de um doador compatível de medula para proceder a um transplante. Após essa fase, havendo o transplante, o acompanhamento necessário para verificar se haveria ou não rejeição. E o acompanhamento para o resto da vida.
Vimos nossa filha viva pela última vez às 19:30 do dia 13 de dezembro. Descemos abatidos e fomos convencidos pelos colegas de que nada adiantaria ficarmos ali, que deveríamos ir para casa descansarmos. Concordamos e chegamos em casa ainda com a imagem de sofrimento da Carol na UTI. Procuramos disfarçar a emoção para deixarmos minha mãe, Iago e Domícia mais tranqüilos. Mais tarde, por volta das 23 horas, imediatamente após eu haver terminado de jantar – a Celma estava na Igreja participando de uma novena dedicada à Carol, a pedido da nossa vizinha Eunice – chegaram dois amigos, a Cláudia, uma grande amiga e também médica que sempre nos ajudava a entender os exames, e o Orlando, um companheiro de longas datas e que havia pouco tempo perdera sua esposa e nossa amiga, Verbena. Eles se encarregaram de nos transmitir uma notícia que nenhum amigo gostaria de dar a outro. Nossa filha não resistira e se foi, tendo como causa de óbito insuficiência respiratória. Não sei dizer como me senti. Não sei dizer como me sinto. Não sei o que aconteceu à minha volta. Só sei que um pedaço de meu corpo foi dilacerado. Um vazio tomou conta de mim, as lágrimas demoraram a sair, e a única coisa que eu conseguia dizer era que eles estavam de brincadeira comigo. Mas infelizmente era verdade, uma brutal, cruel e estúpida verdade. Um filho se foi diante da impotência de seus pais. Não tínhamos como salvá-la, mas eu daria minha vida para isso. Assim é que deve ser, os pais darem a vida pelos filhos, afinal, é isso que fazemos desde o momento em que nasce nosso primeiro filho, passamos a viver em função deles. Deixa de ser a MINHA vida e passa a ser a NOSSA VIDA.

No dia 13 de dezembro de 2007 perdemos um pedaço de nós mesmos. Carolina se fora em vida, e nossas vidas jamais serão como antes.

(*) Esse texto fez parte do livro que publiquei em dezembro de 2008, um ano depois da morte de minha filha. Originalmente o título dessa crônica foi “Última internação da Carol”. O título do livro, já esgotado, é: “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”.

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