Última foto da Carol - Novembro de 2007 |
Quando minha filha começou a tossir e a ter sua
respiração alterada (ela sempre sentia isso quando adoecia) logo me preocupou.
A mim, a Celma, também sua Vó Maura (a Vó Maria José mora em Araguaína, e
também ficava de lá preocupada), a Domícia. Todos nós ficávamos muito
apreensivos quando esses sintomas apareciam. Principalmente depois dos dez dias
que ela ficara internada, no mês de julho
Levamo-la em sua pediatra, Dra. Mônica, que a acompanhava
desde o seu nascimento. Ela também foi a pediatra do Iago. Um exame dos
pulmões, que ela solicitou, diagnosticou uma bronco-pneumonia. A dra. não
sentiu isso auscultando sua respiração. Mas na mesma hora ela ligou para a
pneumologista que tinha acompanhada Carol durante a internação. Trocaram idéias
sobre o remédio a ser medicado e, se a suspeita era pneumonia, mesmo
incipiente, o indicado seria usar um antibiótico. Também ficou acertado um
horário para que a pneumologista pudesse avaliar o quadro da Carol pessoalmente.
Diferente do vírus, a bactéria – no caso a causadora da
pneumonia – deve sempre ser combatida por antibiótico. Na primeira internação
da Carol, ela também tomara antibiótico, mas por não se ter um diagnóstico
definitivo das razões de sua doença. Em sendo vírus, somente a reação dos
anticorpos em seu organismo é capaz de derrotá-lo, o que exige muito repouso,
hidratação e transfusão de sangue se o quadro requerer, para que o organismo se
fortaleça o suficiente para reagir ao vírus.
Apesar desses encaminhamentos, e do tratamento que foi
passado para Carol, com base na existência de um início de pneumonia, era
visível o enfraquecimento da minha pequena. E tornava-se mais evidente o seu
quadro de enfraquecimento, palidez e cansaço. Os sintomas eram básicamente os
mesmos que fizeram com que ela fosse internada em julho.
Preocupados, já estava marcada uma consulta com uma
médica nutróloga – tentávamos fazer com que Carol se alimentasse melhor do que
rotineiramente fazia -, solicitei a ela que fizesse um pedido para realização
de um exame de sangue, também porque eu já tomara a iniciativa de buscar
informações sobre um bom infectologista, para marcar uma consulta. Todo o
receio nosso era que o quadro de julho se repetisse.
Fizemos um exame, hemograma completo, e diante de tamanha
preocupação, mesmo sendo leigo tive a curiosidade de observar os resultados. É
possível ter uma dimensão do problema, de maneira superficial, na medida em que
os índices de referências acompanham os resultados do exame. O que vi me preocupou
mais ainda. Tinha quase certeza de que estava se repetindo o quadro da
internação anterior e isso era tudo o que não gostaríamos de ver acontecendo.
Até mesmo porque, naquele momento houvera uma suspeita de leucemia.
Devemos ressaltar que,
embora tendo recebido alta do hospital, quando de sua internação em junho, ela
não teve alta médica, porque o seu quadro era ainda de debilidades, e até
porque o médico queria confirmar o diagnóstico a partir de um acompanhamento
permanente. Com isso, continuamos a realizar, a pedido do médico, os exames de
sangue completos, mês a mês. Até outubro, quando os índices sanguíneos
atingiram a normalidade e só assim ela teve alta médica. Ela estava ansiosa por
duas razões, primeira poder continuar jogando seu esporte preferido, o
Badminton; segundo, porque ela teria que fazer uma apresentação de ginástica rítmica
em sua escola, na semana do aniversário de Goiânia.
Juntei todos os exames de sangue (hemograma) que ela
fizera, desde o período anterior à sua internação em julho, organizei por ordem
de data em uma tabela, item a item, até o último realizado antes da consulta de
dezembro (07/12/2007) e enviei-os por e-mail a alguns amigos médicos,
solicitando que eles pudessem dar uma opinião sobre o que poderia estar
acontecendo com minha filha. Mais uma vez começava tragicamente uma alteração
em seu quadro sanguíneo, com uma queda brusca das plaquetas e uma elevação dos
leucócitos. A palidez dela se acentuava, a falta de ânimo, dificuldade de se
alimentar e uma fraqueza que nos angustiava e nos deixava desesperados.
Mas minha filha impressionava por seu comportamento. Ela
se mantinha com uma expressão de conformidade, sem reclamar da doença. Às vezes
ficava impaciente, mas a cada vez que perguntávamos como ela estava se sentindo,
sua voz frágil respondia: “bem”! Apesar disso, nós sabíamos que havia algo
errado e que nos parecia ser bem grave. Tínhamos dificuldade em acreditar que
pudesse ser leucemia, mas essa já era uma hipótese levantada mesmo que de forma
cuidadosa pelos médicos, tantos os colegas quanto os profissionais que a
acompanhava.
Começamos a acreditar nessa possibilidade quando, após a
levarmos ao laboratório para uma nova bateria de exame de sangue, desta vez
solicitado pelo infectologista na penúltima consulta (07/12), fomos alertados,
pelo médico responsável pelo laboratório, da gravidade da situação da Carol.
Estávamos em casa quando recebemos uma ligação do laboratório. Pediam-nos que
levássemos novamente Carolina para repetir os exames. Ela tinha feito os exames
na sexta-feira pela manhã, e esse contato se deu à tarde do mesmo dia.
Preocupados levamos ela imediatamente ao laboratório, ainda na sexta-feira, ao
cair da tarde. Já começávamos a ficar
abatidos, e repetia-se também a triste rotina dos exames de sangue em dois
bracinhos cujas veias eram quase imperceptíveis (quando ela esteve internada em
julho contou mais de 40 picadas de agulha para fazer os exames
necessários). Quando chegamos ao
laboratório fomos conversar com o médico que, atenciosamente, explicou a
necessidade da contraprova. Eles consideravam grave o quadro apresentado nos
exames e disse que se fosse mantido aquele diagnóstico nós deveríamos trabalhar
com a hipótese de realizar exames na medula. Apresentando informações
científicas o que ele queria em verdade dizer era que o resultado do exame
apontava para um quadro de leucemia. O mundo começou a girar em nossas cabeças.
Dentro de nós, pai e mãe, sentíamos plenamente a gravidade do quadro de nossa
querida filha, e iniciava naquele momento horas e dias de angústias e
desespero.
Em um momento de descontração, necessário naquela
circunstâncias, até mesmo para que ela não se entregasse à passividade,
lembro-me de um fato que jamais vou esquecer, pelo inusitado e pela situação em
que nos encontrávamos. Herança dos hábitos de meu pai, sempre carrego comigo um
pente de bolso. Nesse dia, ao pegar a carteira deixei-o cair na entrada do
laboratório. Ao chegar em casa fui procurar o pente e não o achei, foi quando a
Carol disse tê-lo visto no chão. Eu disse: “minha filha, porque você não me
avisou?”. E ela respondeu: “Ah, pai não acredito que você ia pegar aquele pente
do chão”. Foi um dos poucos momentos de descontração dela, em meio ao cansaço e
à fraqueza que aumentava a cada dia. Quando retornamos à tarde para o exame da
contra-prova lá estava o pente, abaixei-me e peguei-o sob o olhar repreensivo
dela. Fiz aquilo para acentuar a descontração e foi bom ter feito, ela passou
uns dois dias rindo disso. Tenho o pente guardado até hoje, e espero jamais perdê-lo.
Será sempre um objeto a despertar a lembrança dos últimos momentos de minha
filha.
O fim de semana foi
angustiante, depois até nos perguntávamos se não teria sido melhor que ela já
tivesse sido internada desde aquele momento. Em casa, víamos sua fragilidade
aumentar, e o cansaço tornava sua respiração difícil fazendo com que
constantemente tivéssemos que aplicar aerosol para amenizar a situação.
No sábado fomos realizar outro
exame. Uma ultrasonografia, solicitada pelo infectologista para verificar a situação
do fígado, rins e baço. Como da vez anterior, da crise provocada pelos vírus,
esses órgãos já estavam ficando bastante inchados. Retornamos para casa e
aguardamos para o segundo exame com o infectologista. Isso aconteceu ás 13
horas da segunda-feira. Logo após olhar atentamente os exames ele nos disse que
era necessário a internação imediata da Carol e acreditava não ser um problema
afeito à sua especialidade. Segundo ele tratava-se um problema originado no
sangue e que, portanto, ela devia estar sob os cuidados de um hematologista.
No mesmo momento fizemos
um contato com o hematologista que a estava acompanhando desde sua última
internação, acertamos a internação no Instituto Ortopédico de Goiânia (IOG),
onde havia uma unidade do INGOH (Instituto Goiano de Oncologia e Hematologia).
Mesmo não sendo aquele hospital e unidade hematológica do seu hematologista,
ele não impôs dificuldade, concordando com o local e dizendo que daria o
acompanhamento necessário. Como lá já existia uma hematologista da confiança do
médico infectologista, a Carol passou então a ser acompanhada pelos dois, o que
consideramos positivo apesar do hospital não ser adequado ao tratamento de
criança. Mas ela ficou internada em uma unidade do INGOH e recebeu o tratamento
necessário.
A internação dela se deu
na segunda-feira mesmo, portanto, ao final da tarde. Ficamos preocupados porque
nosso plano de saúde só garantia o atendimento em enfermaria e ela foi
encaminhada para uma que tinha como companhia duas senhoras, o que dificultava minha
presença tornando necessário um sobre-esforço da Celma, visto que eu não
poderia passar a noite com ela. Fiz alguns contatos, inclusive junto à direção
do plano de saúde, alertando para a gravidade do quadro dela e tentando
encontrar uma forma de transferi-la para um apartamento. A resposta do Plano de
Saúde foi imediata e positiva. Contudo nos esbarramos em outra dificuldade: não
havia apartamento disponível. Mas no dia seguinte, até mesmo em função do seu
estado, ela foi transferida para uma sala especial do INGOH, adequada para o
tratamento oncológico.
Quando cheguei em casa,
após deixar Celma e Carol no Hospital fui dar a notícia para minha mãe, que
estava morando conosco e era super-apegada à Carolina e à Domícia, nossa
secretária do lar e que trabalha conosco desde o nascimento de nosso primeiro
filho, Iago. Portanto cuidava também da Carolina desde que ela nasceu e as duas
se gostavam muito. Eu tentava me
segurar, para não dar a impressão que não estava acreditando em sua
recuperação. De fato eu acreditava que teria minha filha de volta, mesmo que
com dificuldades para um tratamento de uma doença terrível como a leucemia, que
eu já passava a considerar uma hipótese provável. Mas lutava também contra
pensamentos furtivos que insistiam em me levar para o desespero de quem vê a
filha à beira da morte. Consegui transmitir a notícia com tranqüilidade. Minha
mãe recebeu aparentemente bem, ela fervorosamente católica, sempre se apega à
sua crença para acreditar no melhor, mesmo que esse melhor seja em última
instância definido por Deus. Isso de certa forma a confortava naquele momento.
O pior ela viria a sentir posteriormente, no retorno à uma rotina que já não
mais contaria com a presença daquela figurinha que estava sempre presente ao
lado dela. Da mesma forma reagiu a Domícia, com um grau maior de apreensão,
agravando a sua situação emotiva quando viria saber da ida da Carol para a UTI.
Já era terça-feira e os
novos exames de sangue feitos ali mesmo comprovaram a gravidade da situação da
Carol. Imediatamente ela passou a receber transfusão de sangue, sua imunidade
caía assustadoramente, o cansaço aumentava e os médicos passavam a demonstrar
temor com possíveis sangramentos. Ainda nesse mesmo dia eles consideraram a
necessidade dela ir para um hospital que tivesse uma Unidade de Terapia
Intensiva adequada para uma criança de sua idade.
Lembro-me bem quando recebi um telefonema da Celma
dizendo que os médicos consideravam a hipótese dela precisar ir para uma UTI.
Eu estava em meu serviço, na Universidade, e imediatamente senti um forte
aperto no coração, não pude conter minhas emoções e após desligar o telefone
desabei em um choro convulsivo. Passou rapidamente por minha mente um filme me
lembrando de dois casos recentes envolvendo um amigo de longa data, Gilson
Bueno, que ficou quase trinta dias na UTI e não sobreviveu a um AVC, e a uma
grande amiga e colega da Universidade, Verbena Lisita, que contraiu uma
bactéria e teve que ser internada às pressas em uma UTI. Também não sobreviveu,
vindo a falecer pouco mais de 24 horas depois de ser internada. Lembrei-me
também de meu pai, que após uma luta desesperada contra o câncer, e no final
dessa luta ter passado 28 dias internado, também não sobreviveu após ser
transferido para uma UTI. Acompanhava-me, portanto, péssimas lembranças sobre
Unidades de Terapias Intensivas, embora sendo essa uma unidade de tratamento
para melhor acompanhar o paciente em estado grave. Não foi o que aconteceu em
três situações que envolviam pessoas queridas, sendo uma delas o meu pai. Era
natural que a minha reação fosse de desespero, temor e medo do que estava por
vir.
Mesmo considerando não ser urgente a transferência para a
UTI, os médicos julgaram necessário buscar um hospital onde existisse esse tipo
de unidade voltada para o atendimento de crianças. Iniciou-se, então, um
contato com o Hospital da Criança visando uma mudança imediata de hospital.
Contudo, mais um problema nos deixaria angustiado. Não havia leito disponível
no Hospital da Criança, nem enfermaria, nem apartamento. Embora ainda não fosse
necessário a UTI percebia-se o agravamento da situação da Carol primeiro porque
a transfusão não estava recompondo as taxas sanguíneas a sua normalidade, mas
já fazia-se necessário o uso constante do oxigênio em função da falta de ar que
ela estava sentindo.
A partir da terça-feira o quadro agravou-se mais
aceleradamente, a falta de ar fez-se acompanhar por uma dor permanente que ela
reclamava em seu braço direito, na altura do ombro. Provavelmente já era um dos
sintomas apresentados pela doença, ainda não diagnosticada. Na quarta-feira
pela manhã o médico nos comunicou que havia conseguido uma vaga em enfermaria
no Hospital da Criança. Isso nos deixou mais tranqüilos, embora apreensivos com
a possibilidade dela ter que ir para UTI.
Tentávamos anima-la, mas ela estava sentindo muito
incômodo com a máscara de oxigênio, e nos preocupava o aumento da ânsia de
vômito, o receio ela que viesse acompanhado de sangramentos. A máscara
prejudicava também seu cabelo, já alguns dias sem poder lavá-lo. E isso também
a incomodava. Fui ao supermercado comprar shampoo para que ela pudesse lavar o
cabelo, algumas presilhas para mantê-lo preso e água mineral. Equivocadamente,
pela pressa comprei água com gás. Como era típico da Carolina, ela não perdoou
e reclamou da minha distração. Lamentavelmente ela não faria mais uso desses
objetos, por isso, jamais esquecerei o que comprei naquele dia para ela.
Providenciamos através do
plano de saúde uma ambulância para transferi-la de hospital. Mas ela precisava
ainda realizar mais alguns exames, desta feita na medula óssea, para
identificar se a causa mesma da sua doença era a leucemia. Essa transferência
ficou para o período da tarde e isso permitiu que eu pudesse levar o Iago, seu
irmão, para visitá-la. Ele ainda não tinha ido ao hospital desta vez. Ao mesmo
tempo, acertamos com a médica um exame de sangue no Iago, para testar a
compatibilidade da medula óssea, já tentando prevenir para a necessidade de
transplante, caso desse positivo o exame de Leucemia. Nesse dia, além da visita
do Iago, ela recebeu também outras visitas, dentre elas a do seu tio Bosco.
Para ele, ao contrário do que dizia para nós, ela disse que não estava se
sentindo bem. Mas, mesmo assim, conseguiu dar aquela que seria a sua última
risada, quando o Iago imitou os personagens do programa humorístico “Bofe de
Elite” e brincou com o fato de ter tantas coisas no quarto para ela comer e
como ela não comia, ele iria pegar. Ficamos felizes por vê-la sorrir, mas seria
seu último sorriso.
Enquanto ela era
transferida para o Hospital da Criança eu levei o Iago para realizar o exame de
compatibilidade. Depois a Celma me disse que já na ambulância Carolina
virara-se para ela e fez um comentário sobre mim, dizendo que agora eu ficaria
satisfeito porque lá havia uma máquina de café. Ela sempre se lembrava de
quando estivera internada no mês de junho e do meu vício de tomar café. Quando
era meus momentos de ficar com ela eu sempre me afastava por alguns minutos, e
ela já sabia: eu me dirigia à entrada do hospital para pegar um cafezinho numa
máquina automática de café expresso. Lembro-me também que, antes de sair com
Iago virei-me para ela e lhe disse: “força minha guerreira, você vai sair
dessa”. Ela balançou a cabeça e deu um sorriso triste, cansado. “Quem você gostaria
de ser nesse momento, a Mulan ou Pocahontas?”, insisti, tentando levantar seu
ânimo. Ela respondeu: “Mulan”. Fiquei satisfeito com a escolha, dei-lhe um
beijo e saí apressado, para que ela não percebesse meu estado emotivo.
Depois do exame feito fui
para casa deixar o Iago para em seguida ir ao Hospital da Criança, deixar
algumas coisas que era preciso transferir, objetos pessoais da Carolina. Quando
estava me dirigindo para lá recebi uma ligação da Celma. Havia ficado no outro
hospital sua sandália. Deixei os objetos lá e fui imediatamente buscar porque
era uma sandália que havia sido presenteada pela avó e ela sentiria bastante
sua perda. Não tive dificuldade em achá-la. Mas quando retornei já não encontrei
mais minha filha no leito da enfermaria. A mãe me aguardava, sem muita ação, e
com o olhar abatido me avisou que ela teve que ser transferida para a UTI,
porque se agravara o quadro respiratório. Não tínhamos o que fazer, mas no
peito comprimia uma dor que relutava em despontar. Brigávamos
internamente entre o otimismo necessário, de quem não quer acreditar que a
morte vá vitimar uma criança e o pessimismo de quem vive traumatizado por
experiências negativas de UTIs., e, claro, por ver uma filha nossa submetido a
um tratamento médico que é visto como a última tentativa de se escapar de um
quadro de intensa gravidade.
É doloroso lembrar em
detalhes de cada momento de angústia que passamos, mas desde a sua entrada na
UTI até o momento em que a morte a levou de nós, vivemos as horas, minutos e
segundos mais desesperadores e doloridos de nossas vidas. Porque, diferente de
antes, não podíamos mais acompanhar nossa filha, o horário em UTI para visita é
bastante rigoroso e não é permitido acompanhamento. Foram 24 horas de medo,
angústia, tensão e desespero. Quando saíamos recebemos visitas de alguns
amigos. Um deles médico, colega de UFG e professor no Hospital das Clínicas,
outra era jornalista da ADUFG, mas tinha um irmão médico que trabalhava também
naquele hospital, e em seguida chegou também uma médica e colega da UFG, também
professora do Hospital das Clínicas, que já havia sido contactada por amigos da
Associação dos Docentes da UFG, da qual eu já havia sido presidente. Foi dito a
ela da gravidade da doença de minha filha e ela gentilmente se dispôs a vê-la
na UTI. Quando ela se encontrou conosco, juntamente com esses outros amigos,
mostrei a tabela com todos os exames que havia organizado. Ela foi bastante
direta, embora cuidadosa ao falar. Mas foi clara ao dizer da gravidade da
doença da Carol, e quando dissemos saber da possibilidade de ser leucemia ela
nos disse que era 99% as chances disso ser confirmado. Mas ela ficou admirada
com o quadro apresentado pelos exames e reconheceu que eles indicavam, de fato,
que a situação dela em junho apresentava todos os indicativos de virose. E se
espantou com a maneira como se deu a recuperação, diferente da leucemia.
Fomos para casa naquele
dia sentindo o chão abrir-se aos nossos pés. Não adiantava ficarmos no
Hospital, pois não poderíamos estar ao seu lado. Foi uma longa noite em que
temíamos pelo toque do telefone. Por mais que lutássemos internamente para
pensarmos sempre numa superação daquela situação por parte de nossa filha, era
inevitável que também pensássemos no pior.
Na manhã seguinte nos
dirigimos para o hospital. Em casa ficaram apreensivos, minha mãe, Iago e
Domícia. Quando chegamos ao hospital tentamos entrar para vê-la, mas não nos
foi permitido, devido à rigidez do horário de visita em UTI. A responsável pelo
setor disse que somente no horário estabelecido poderíamos visita-la: às 12:30,
e somente por meia-hora. Perguntei se a Avó e o padrinho também poderiam vê-la,
ela respondeu que somente em caso de extrema gravidade.
Não nos conformamos.
Embora o boletim da noite anterior indicasse um quadro estável, precisávamos
ver nossa filha. Tentamos por vários caminhos antecipar a visita. Àquela altura
já tínhamos ao nosso lado uma grande quantidade de amigos, além dos tios dela,
meus irmãos. O irmão da Celma estava viajando. Tivemos também como apoio importante,
em vários sentidos, o pessoal da ADUFG, inclusive tentando nos ajudar a
encontrar uma maneira de entrarmos na UTI, através do contacto com a direção da
Unimed e por meio dela a direção do Hospital. Depois de vários contatos, por
diversos meios, conseguimos autorização para ver nossa pequena Carol, mas o
quadro que observamos não gostaria de descrever. Falamos com ela, mas, sedada e
com tubos de oxigênio, sua capacidade de nos compreender era muito pouco. Mas
sentimos que ela reagia a nossa presença, tanto que nos foi solicitado para
evitar que ela não se emocionasse, pois isso faria com que ela ficasse muito
inquieta e a prejudicasse. Quando saíamos, a responsável pelo setor virou-se
para mim e me disse: “agora, se o sr. quiser pode trazer a avó e o padrinho”.
Essa frase foi suficiente
para que o mundo desmoronasse sobre minha cabeça. Descemos da UTI em prantos, o
quadro que vimos e a frase dita nos indicava que nossa filha teria poucas
chances de sobrevivência. Decidi não mais subir, não queria aquela imagem
permanentemente em minha cabeça. Aquele foi um dos dias mais longos de minha
vida. A Celma ainda subiu outras vezes, junto com o padrinho, além de outros
colegas médicos e enfermeiras. A expressão de cada um que voltava da visita confirmava
a gravidade da situação. Quando um amigo médico, com o qual eu sempre trocava
opinião sobre o quadro dela, voltou da UTI após vê-la e ao invés de conversar
comigo encostou-se em uma coluna e ficou em silêncio fui conversar com ele.
Perguntei o que ele achava da situação e a única coisa que me lembro dele ter
respondido foi que precisávamos torcer para que ela não tivesse sangramento
pelo pulmão, pois ela correria o risco de afogar-se em seu próprio sangue.
Decidi, naquele momento,
que deveria vê-la. Fiz isso, juntamente com a Celma ao cair da noite. Passava
das 19 horas quando subimos à UTI para aquele que seria o último contato com
nossa filha em vida. Já
sabíamos, então, que sua doença era mesmo a Leucemia, de um tipo raro. O
diagnóstico chegara até nós no meio da tarde, pela confirmação do laboratório.
Na mesma tarde ficamos sabendo que o exame de compatibilidade do sangue do Iago
deu negativo. Nesses casos, embora o irmão seja o que tem maior probabilidade,
o percentual é de em torno de 25% de que isso ocorra. Os médicos já haviam nos
explicados quais seriam os procedimentos: primeiro, a Carol teria que sair da
UTI, em seguida seria necessário uma recomposição de seus níveis sanguíneos,
para depois iniciar um tratamento quimioterápico e nos dedicarmos à busca de um
doador compatível de medula para proceder a um transplante. Após essa fase,
havendo o transplante, o acompanhamento necessário para verificar se haveria ou
não rejeição. E o acompanhamento para o resto da vida.
Vimos nossa filha viva
pela última vez às 19:30 do dia 13 de dezembro. Descemos abatidos e fomos
convencidos pelos colegas de que nada adiantaria ficarmos ali, que deveríamos
ir para casa descansarmos. Concordamos e chegamos em casa ainda com a imagem de
sofrimento da Carol na UTI. Procuramos disfarçar a emoção para deixarmos minha
mãe, Iago e Domícia mais tranqüilos. Mais tarde, por volta das 23 horas,
imediatamente após eu haver terminado de jantar – a Celma estava na Igreja
participando de uma novena dedicada à Carol, a pedido da nossa vizinha Eunice –
chegaram dois amigos, a Cláudia, uma grande amiga e também médica que sempre
nos ajudava a entender os exames, e o Orlando, um companheiro de longas datas e
que havia pouco tempo perdera sua esposa e nossa amiga, Verbena. Eles se
encarregaram de nos transmitir uma notícia que nenhum amigo gostaria de dar a
outro. Nossa filha não resistira e se foi, tendo como causa de óbito
insuficiência respiratória. Não sei dizer como me senti. Não sei dizer como me
sinto. Não sei o que aconteceu à minha volta. Só sei que um pedaço de meu corpo
foi dilacerado. Um vazio tomou conta de mim, as lágrimas demoraram a sair, e a
única coisa que eu conseguia dizer era que eles estavam de brincadeira comigo.
Mas infelizmente era verdade, uma brutal, cruel e estúpida verdade. Um filho se
foi diante da impotência de seus pais. Não tínhamos como salvá-la, mas eu daria
minha vida para isso. Assim é que deve ser, os pais darem a vida pelos filhos,
afinal, é isso que fazemos desde o momento em que nasce nosso primeiro filho, passamos
a viver em função deles. Deixa de ser a MINHA vida e passa a ser a NOSSA VIDA.
No dia 13 de dezembro de
2007 perdemos um pedaço de nós mesmos. Carolina se fora em vida, e nossas vidas
jamais serão como antes.
(*) Esse texto fez parte do livro que publiquei em
dezembro de 2008, um ano depois da morte de minha filha. Originalmente o título
dessa crônica foi “Última internação da Carol”. O título do livro, já esgotado, é: “DEPOIS QUE VOCÊ PARTIU”.
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