sábado, 24 de novembro de 2012

A CONDIÇÃO HUMANA – UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUNS DE NOSSOS MAIORES MEDOS.


Há certos momentos em nossas vidas que são reservados para fortes emoções quando tentamos compreender a razão da nossa existência. Quando perdemos um ente querido, sentimos isso, e se for uma filha, ou um filho, atingimos o ápice de pessimismo e depressão. Em outros momentos refletimos a respeito de como individualmente vivemos e carregamos nossa individualidade para a convivência em grupo. A família é sempre a nossa preocupação. Passamos por um processo de autorreflexão.
Quando anos atrás assisti ao filme “Carandiru” (produzido em 2003, inspirado no livro de Drauziu Varela, “Estação Carandiru”) eu senti um pouco isso, e ainda não havia perdido a minha filha, que veio a falecer em 2007. Agora, com a dor de uma perda que não cicatriza, e envolto em uma série de artigos para o blog cujo tema é as drogas e a escalada da violência, resolvi reassisti-lo, já que também há pouco mais de um mês, mais precisamente no dia dois de outubro completaram-se vinte anos do massacre que culminou na execução de 111 presos. Um número emblemático, até pela posição de fileira que ele nos faz imaginar ver, como pedras de dominó.
Ao assistir “Carandiru”, nós que vivemos num mundo diferente daquele vivido pelos personagens do filme, nos sentimos como se tivéssemos sido marcados. Como se uma lâmina ferisse a carne, e nos imaginamos naquele inferno chamado Carandiru. Uma sensação estranha nos invade, pelos menos os que não perderam a sensibilidade de se entristecer pela desgraça humana, e somos tocados pela emoção, que certamente nos faz lembrar de algum momento de  infortúnio, senão conosco mesmo, pelo menos bem perto de nós. Mas cada um carrega um desses momentos que é preferível nunca se lembrar, mas do qual as lembranças são permanências. Isso fica mais forte quando ao final a trilha sonora invade nossas angústias ao som de... “Brasil... meu Brasil brasileiro”: Aquarela do Brasil.
As cadeias são depósitos de
criminosos, não ressocializa.
Há duas semanas, uma declaração polêmica do ministro da Justiça reacendeu uma discussão sobre o problema carcerário em nosso país. Sua afirmação, de que preferia morrer a cumprir uma longa pena nos presídios brasileiros, caiu como uma bomba. E nos fez mais uma vez lembrar de Carandiru. Mas o que ele disse é fato, embora estranho, por vir da autoridade sobre cujas costas recai a responsabilidade de cuidar do sistema prisional brasileiro. O que representa dizer que pouca coisa mudou desde o massacre do Carandiru.
A realidade concreta, o real para quem quiser ver e acreditar, até nas telas de cinema, é Carandiru. Os palacetes luxuosos dos “jardins” ou dos caros condomínios fechados é a fantasia, que apenas a alguns poucos é permitido viver.
Cada um dos milhares de personagens presente em “Carandiru” carrega consigo uma história de dor, miséria, sofrimento e desgraça, que não se encerra em si próprio. Seja pela condição que a vida lhe reservou no cotidiano miserável dos guetos e favelas, ou na imposição do vício das drogas pelo qual o impulso inicial é a tentativa de atingir a liberdade, mas cujo caminho é do eterno aprisionamento à química até a prisão física, da escravidão a um tempo que jamais flui.
Algumas passagens no filme nos fazem rir, e nos forçam a uma autopunição: “como rir de tamanha desgraça?” Mas é um riso trágico, daqueles que tem marcado uma silenciosa cumplicidade com o infortúnio alheio. Riso como aqueles que nos fazem chorar nas piadas ideologicamente reproduzidas para tornar natural a miséria e a nos conformarmos com a condição humana.
E naturalmente seguimos a vida, como nenhum outro animal, nos tornando cada vez mais predadores de nós mesmos. E embora olhemos para o passado construindo uma imagem de selvageria, é no presente que isso se realiza, e no futuro ela se apresenta como um pesadelo.
Para amenizar culpas, e esconder-se nos subterfúgios de nossas inertes (in)consciências, a válvula de escape é a religião, pela qual apela-se a um ente superior, onipresente e invisível, que se apiede de nossas “almas”, insensíveis por demais para fazer valer uma materialidade que seja diferente em um mundo marcado de contradições e egoísmos. Busca-se com orações encontrar soluções para um mundo que se imagina consertar-se no além, quando ele se destrói e encerra-se aqui mesmo. Se “ele” existe, não está a ouvir o clamor da maioria.
Carandiru foi implodido, mas o
sistema prisional não mudou
Para se evitar infernos como o que existia em Carandiru, resta o recurso da morte. Mais fácil seria, contudo, cuidar da vida em meio a uma sociedade que tende a reproduzir novas e maiores desgraças, amplificada pela tortura midiática que as reproduz repetidas vezes nos tornando prisioneiros do medo. Mas viver como em Carandiru, no que atesta as próprias palavras do ministro, já é em si uma sentença de morte, ou pelo menos do fim da vida.
O que fazer, portanto? Não encontraremos resposta a essa indagação facilmente, julgando que basta “humanizar” as cadeias. A questão não se resume à defesa dos direitos humanos, melhor seria dizer “direito dos humanos”, pois estamos perdendo essa condição. Humanizar já há muito deixou de significar algum tipo de preocupação com o outro. Já se confunde com bestializar. Até porque a maior parte da população, consumida pelo medo potencializado na espetacularização da violência, e pela própria realidade que a trás para bem próximo, se aproxima do desejo de reivindicar a lei do talião: “olho por olho, dente por dente”.
A “parte boa” da sociedade criou um marketing espetacular para explicar a nossa existência. Vivemos um mundo de fantasia e empurramos nossos problemas para debaixo do tapete, tornando a depressão uma doença da moda. Porque sintetiza a culpa, a ansiedade, o medo, a insegurança, mas ao mesmo tempo internaliza tudo isso. E, quanto mais seguimos investigando a vida, descobrindo segredos de nossa existência, mais tornamos o mundo impiedoso, egoísta, individualista.
Manifestação nos 20 anos do massacre
em Carandiru (Foto: Estadão)
Cada vez mais tememos o outro. E os entes criados para resolver nossos problemas existenciais, mais fazem entorpecer as mentes e os desviam da humanização, do compartilhamento, da solidariedade. Não a solidariedade que “funciona” como mecanismo de escape, de descarrego de consciência, ou da prática cotidiana e oportunista da política eleitoral. Mas daquela que traz na raiz o verdadeiro significado humano, da vida em grupo, do altruísmo, que nos fazia unidos nos tempos em que não criávamos fantasias espetaculares sobre realidades impossíveis de serem atingidas por todos, ou inexistentes.
O problema crucial de Carandiru, que usamos aqui como símbolo do problema carcerário brasileiro, e da ânsia por matar o incorrigível, não é identificar depois de tal carnificina quem é o pior, se carcereiros desapiedados, criminosos irregeneráveis ou policiais insensíveis. Mas encontrar respostas para tentar entender, e corrigir, os erros de uma sociedade que é fruto de um sistema contraditório e tirano, pois quanto mais avança com novos conhecimentos, mas cria novas injustiças e desigualdades sociais.
Criar corredores da morte em prisões cinco estrelas evidentemente que só mascara a realidade. Não conduz, esses corredores, ao fim de um túnel que aponte uma saída para uma roda viva que só aumenta a marginalidade. Buscar justiça pelas próprias mãos parece ser uma alternativa que tende a embrutecer mais ainda as pessoas, mas que parece não ser outro o horizonte da humanidade, quando se volta a considerar bárbaro todo aquele que é diferente do usual, do que está fora da moda, daquele que não segue os padrões estabelecidos pelos valores dominantes. Tenta-se retirar pela força o direito do outro de ser diferente. Muito embora sejam esses mesmos valores os responsáveis, em maior parte, pelas injustiças crescentes em um mundo desconcertado.
“Carandiru”, o filme e a história, representa tudo isso. É a pura reflexão de uma realidade que nos faz ver que o inferno está sendo construído cada vez mais perto de nós, porque ele  também é uma criação humana. Mesmo diante de um mundo maravilhoso, conforme a belíssima música de Louis Armostrong: “What a wonderful world”. Mas para usufruí-lo e preservá-lo devemos resgatar o sentido que nos fez ser humanos, a nossa condição humana. Devemos inverter a lógica insana que nos move diante de um sistema injusto e desigual, transformando o inferno em uma fantasia, irrealizável, e realizando concretamente o paraíso como algo que existirá realmente para as nossas vidas, coletivamente.
A criminalidade e a violência, tem origem social
Creio ser esse um desafio para as novas gerações, mas como no próprio sentido de futuro, para se realizar ele precisa ser construído agora. Isso, contudo não acontecerá enquanto formos conduzidos pelos medos, pela imposição da lógica competitiva e pela manipulação de nossas consciências. Nossa batalha, portanto, enquanto sociedade em conjunto, é tão difícil quanto aquele indivíduo que deseja a todo custo livrar-se do vício das drogas. Não é impossível, mas só será concretizado se conseguir vencer os medos, romper com os vícios, com o olhar de preconceito sobre o outro e suas diferenças, e, principalmente, eliminar o egoísmo.
Enfim, só conseguiremos com muita força de vontade e determinação para buscar uma mudança em nosso jeito de ser, no estilo de vida que nos é imposto pelo sistema. Quantos estarão determinados a isso? Dessa resposta encontraremos a definição do que será o futuro, e de como nele estará a nossa condição humana.
Uma coisa é certa, nada disso será feito pelas redes sociais ou com uma grande mídia conservadora e corporativa, travestida de partido político. O mundo em que vivemos não é uma Matrix, ele é real, e não será transformado através de embates virtuais.

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