Há certos momentos em nossas vidas que
são reservados para fortes emoções quando tentamos compreender a razão da nossa
existência. Quando perdemos um ente querido, sentimos isso, e se for uma filha,
ou um filho, atingimos o ápice de pessimismo e depressão. Em outros momentos
refletimos a respeito de como individualmente vivemos e carregamos nossa
individualidade para a convivência em grupo. A família é sempre a nossa
preocupação. Passamos por um processo de autorreflexão.
Quando anos atrás assisti ao filme “Carandiru”
(produzido em 2003, inspirado no livro de Drauziu Varela, “Estação Carandiru”) eu
senti um pouco isso, e ainda não havia perdido a minha filha, que veio a
falecer em 2007. Agora, com a dor de uma perda que não cicatriza, e envolto em
uma série de artigos para o blog cujo tema é as drogas e a escalada da
violência, resolvi reassisti-lo, já que também há pouco mais de um mês, mais
precisamente no dia dois de outubro completaram-se vinte anos do massacre que
culminou na execução de 111 presos. Um número emblemático, até pela posição de
fileira que ele nos faz imaginar ver, como pedras de dominó.
Ao assistir “Carandiru”, nós que
vivemos num mundo diferente daquele vivido pelos personagens do filme, nos sentimos
como se tivéssemos sido marcados. Como se uma lâmina ferisse a carne, e nos
imaginamos naquele inferno chamado Carandiru. Uma sensação estranha nos invade,
pelos menos os que não perderam a sensibilidade de se entristecer pela desgraça
humana, e somos tocados pela emoção, que certamente nos faz lembrar de algum
momento de infortúnio, senão conosco
mesmo, pelo menos bem perto de nós. Mas cada um carrega um desses momentos que
é preferível nunca se lembrar, mas do qual as lembranças são permanências. Isso
fica mais forte quando ao final a trilha sonora invade nossas angústias ao som
de... “Brasil... meu Brasil brasileiro”: Aquarela do Brasil.
As cadeias são depósitos de criminosos, não ressocializa. |
Há duas semanas, uma declaração
polêmica do ministro da Justiça reacendeu uma discussão sobre o problema
carcerário em nosso país. Sua afirmação, de que preferia morrer a cumprir uma
longa pena nos presídios brasileiros, caiu como uma bomba. E nos fez mais uma
vez lembrar de Carandiru. Mas o que ele disse é fato, embora estranho, por vir
da autoridade sobre cujas costas recai a responsabilidade de cuidar do sistema
prisional brasileiro. O que representa dizer que pouca coisa mudou desde o
massacre do Carandiru.
A realidade concreta, o real para quem
quiser ver e acreditar, até nas telas de cinema, é Carandiru. Os palacetes
luxuosos dos “jardins” ou dos caros condomínios fechados é a fantasia, que
apenas a alguns poucos é permitido viver.
Cada um dos milhares de personagens
presente em “Carandiru” carrega consigo uma história de dor, miséria,
sofrimento e desgraça, que não se encerra em si próprio. Seja pela condição que
a vida lhe reservou no cotidiano miserável dos guetos e favelas, ou na
imposição do vício das drogas pelo qual o impulso inicial é a tentativa de
atingir a liberdade, mas cujo caminho é do eterno aprisionamento à química até
a prisão física, da escravidão a um tempo que jamais flui.
Algumas passagens no filme nos
fazem rir, e nos forçam a uma autopunição: “como rir de tamanha desgraça?” Mas
é um riso trágico, daqueles que tem marcado uma silenciosa cumplicidade com o
infortúnio alheio. Riso como aqueles que nos fazem chorar nas piadas
ideologicamente reproduzidas para tornar natural a miséria e a nos conformarmos
com a condição humana.
E naturalmente seguimos a vida,
como nenhum outro animal, nos tornando cada vez mais predadores de nós mesmos.
E embora olhemos para o passado construindo uma imagem de selvageria, é no
presente que isso se realiza, e no futuro ela se apresenta como um pesadelo.
Para amenizar culpas, e esconder-se
nos subterfúgios de nossas inertes (in)consciências, a válvula de escape é a
religião, pela qual apela-se a um ente superior, onipresente e invisível, que
se apiede de nossas “almas”, insensíveis por demais para fazer valer uma
materialidade que seja diferente em um mundo marcado de contradições e
egoísmos. Busca-se com orações encontrar soluções para um mundo que se imagina
consertar-se no além, quando ele se destrói e encerra-se aqui mesmo. Se “ele”
existe, não está a ouvir o clamor da maioria.
Carandiru foi implodido, mas o sistema prisional não mudou |
Para se evitar infernos como o que
existia em Carandiru, resta o recurso da morte. Mais fácil seria, contudo, cuidar
da vida em meio a uma sociedade que tende a reproduzir novas e maiores
desgraças, amplificada pela tortura midiática que as reproduz repetidas vezes
nos tornando prisioneiros do medo. Mas viver como em Carandiru, no que atesta
as próprias palavras do ministro, já é em si uma sentença de morte, ou pelo
menos do fim da vida.
O que fazer, portanto? Não
encontraremos resposta a essa indagação facilmente, julgando que basta
“humanizar” as cadeias. A questão não se resume à defesa dos direitos humanos,
melhor seria dizer “direito dos humanos”, pois estamos perdendo essa condição.
Humanizar já há muito deixou de significar algum tipo de preocupação com o
outro. Já se confunde com bestializar. Até porque a maior parte da população,
consumida pelo medo potencializado na espetacularização da violência, e pela
própria realidade que a trás para bem próximo, se aproxima do desejo de
reivindicar a lei do talião: “olho por olho, dente por dente”.
A “parte boa” da sociedade criou um
marketing espetacular para explicar a nossa existência. Vivemos um mundo de
fantasia e empurramos nossos problemas para debaixo do tapete, tornando a
depressão uma doença da moda. Porque sintetiza a culpa, a ansiedade, o medo, a
insegurança, mas ao mesmo tempo internaliza tudo isso. E, quanto mais seguimos
investigando a vida, descobrindo segredos de nossa existência, mais tornamos o
mundo impiedoso, egoísta, individualista.
Manifestação nos 20 anos do massacre em Carandiru (Foto: Estadão) |
Cada vez mais tememos o outro. E os entes criados para resolver nossos problemas existenciais,
mais fazem entorpecer as mentes e os desviam da humanização, do
compartilhamento, da solidariedade. Não a solidariedade que “funciona” como
mecanismo de escape, de descarrego de consciência, ou da prática cotidiana e
oportunista da política eleitoral. Mas daquela que traz na raiz o verdadeiro
significado humano, da vida em grupo, do altruísmo, que nos fazia unidos nos
tempos em que não criávamos fantasias espetaculares sobre realidades
impossíveis de serem atingidas por todos, ou inexistentes.
O problema crucial de Carandiru,
que usamos aqui como símbolo do problema carcerário brasileiro, e da ânsia por
matar o incorrigível, não é identificar depois de tal carnificina quem é o
pior, se carcereiros desapiedados, criminosos irregeneráveis ou policiais
insensíveis. Mas encontrar respostas para tentar entender, e corrigir, os erros
de uma sociedade que é fruto de um sistema contraditório e tirano, pois quanto
mais avança com novos conhecimentos, mas cria novas injustiças e desigualdades
sociais.
Criar corredores da morte em prisões
cinco estrelas evidentemente que só mascara a realidade. Não conduz, esses
corredores, ao fim de um túnel que aponte uma saída para uma roda viva que só
aumenta a marginalidade. Buscar justiça pelas próprias mãos parece ser uma
alternativa que tende a embrutecer mais ainda as pessoas, mas que parece não
ser outro o horizonte da humanidade, quando se volta a considerar bárbaro todo
aquele que é diferente do usual, do que está fora da moda, daquele que não
segue os padrões estabelecidos pelos valores dominantes. Tenta-se retirar pela
força o direito do outro de ser diferente. Muito embora sejam esses mesmos
valores os responsáveis, em maior parte, pelas injustiças crescentes em um
mundo desconcertado.
“Carandiru”, o filme e a história,
representa tudo isso. É a pura reflexão de uma realidade que nos faz ver que o
inferno está sendo construído cada vez mais perto de nós, porque ele também é uma criação humana. Mesmo diante de
um mundo maravilhoso, conforme a belíssima música de Louis Armostrong: “What a
wonderful world”. Mas para usufruí-lo e preservá-lo devemos resgatar o sentido
que nos fez ser humanos, a nossa condição humana. Devemos inverter a lógica
insana que nos move diante de um sistema injusto e desigual, transformando o
inferno em uma fantasia, irrealizável, e realizando concretamente o paraíso
como algo que existirá realmente para as nossas vidas, coletivamente.
A criminalidade e a violência, tem origem social |
Creio ser esse um desafio para as
novas gerações, mas como no próprio sentido de futuro, para se realizar ele
precisa ser construído agora. Isso, contudo não acontecerá enquanto formos
conduzidos pelos medos, pela imposição da lógica competitiva e pela manipulação
de nossas consciências. Nossa batalha, portanto, enquanto sociedade em
conjunto, é tão difícil quanto aquele indivíduo que deseja a todo custo
livrar-se do vício das drogas. Não é impossível, mas só será concretizado se
conseguir vencer os medos, romper com os vícios, com o olhar de preconceito
sobre o outro e suas diferenças, e, principalmente, eliminar o egoísmo.
Enfim, só conseguiremos com muita
força de vontade e determinação para buscar uma mudança em nosso jeito de ser,
no estilo de vida que nos é imposto pelo sistema. Quantos estarão determinados
a isso? Dessa resposta encontraremos a definição do que será o futuro, e de
como nele estará a nossa condição humana.
Uma coisa é certa, nada disso será
feito pelas redes sociais ou com uma grande mídia conservadora e corporativa,
travestida de partido político. O mundo em que vivemos não é uma Matrix, ele é
real, e não será transformado através de embates virtuais.
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