Dentre os comportamentos mais
aberrantes e aterradores que afetam a natureza humana está a capacidade de
alguns indivíduos dedicarem-se à macabra tarefa de transformar o seu semelhante
em mercadoria. O tráfico de gente, ou tráfico humano, para objetivos como
prostituição, trabalho escravo e contrabando de órgãos tem se acentuado, em
meio a um silêncio inexplicável das pessoas, principalmente dos setores
formadores de opinião.
Em meio a temas banais, e a
enfoques de enredos envolvendo intrigas e disputas românticas, surge uma
novidade na teledramaturgia brasileira. A atual telenovela da rede Globo,
“Salve Jorge”, em meio à mesmice citada acima, insere a discussão sobre o
terrível tráfico humano. Embora não seja novidade no cinema, é um assunto
inédito nessa área.
Não pretendo aqui fazer nenhuma
análise crítica do “folhetim” global, principalmente porque não o assisto com
frequência. Mas tive desde o começo a minha atenção alertada para o programa,
porque de há muito discuto essa temática com meus alunos de geopolítica. Não
significa, no entanto nenhum preconceito. Não estou querendo me aliviar das
críticas por assistir novela. Até porque acho esse mais um preconceito bobo. Aliás,
é uma crítica feita por muitos jovens, alguns dos quais se dedicam a assistir
seriados (ou enlatados, como na crítica tradicional) estadunidenses, que são na
verdade em formato de novelas. O provincianismo termina por condicioná-los que
aqueles são permitidos assistir, os daqui nem tanto, principalmente pelo fato
de haver uma aversão à emissora que mais produz esses programas. Mas é possível
ser crítico ao comportamento ideológico de uma emissora, sem necessariamente
recusar-se a assisti-la. Assim como é possível também estabelecer elogios àqueles
produtos que são mais do que entretenimento, mas contribuem para a discussão de
temas complexos que afetam a sociedade como um todo, direta ou indiretamente.
Mas o meu objetivo é reforçar a
atenção para um drama que atinge milhões de jovens em todo o mundo, e se coloca
em terceiro lugar entre o comércio ilícito internacional, perdendo apenas para
o trafico de drogas e de armas. Mas que, na maioria dos casos, são crimes que
estão interconectados e compõem um submundo de gangsterismo violento e de burla
no sistema financeiro, muitas vezes em conjunto, como condição necessária para
“lavagem” de milhões de dólares usufruídos desse comércio altamente lucrativo.
O que a telenovela assinada pela
dramaturga Glória Pérez aborda não é ficção. Pode-se dizer que é uma ficção
baseada em fatos realmente existentes. Até porque uma das personagens
inspira-se em um caso ocorrido e noticiado, porque na vida real a pessoa que a
inspirou faleceu como consequência das condições em que vivia. A personagem de
Carolina Dickman reflete o drama de uma jovem goiana morta por overdose de
drogas na Espanha, em situação criada por quadrilhas de traficantes de pessoas.
O comércio de seres humanos não se
resume ao tráfico de mulheres para prostituição. Embora esse seja o mais
evidente e o de maior lucratividade. Mas entra também nessa contabilidade
criminosa crianças, também para exploração sexual, mas principalmente para
tráfico de órgãos, bem como seres humanos em geral que são traficados para
trabalhos escravos, ou análogo à escravidão, em atividades como comércio,
indústria e agropecuária.
Esse tema já foi também explorado
em filmes, como “Tráfico Humano”,
originalmente uma mini-série produzida em 2005 e com ótimo elenco. Embora
longo, com 176 minutos, é extremamente forte, com cenas impactantes que nos
deixa refletindo sobre o submundo criminoso que só existe porque a sociedade na
qual vivemos cria demandas para isso. Afinal, trata-se de um comércio, macabro,
ilegal, mas cujo produto é consumido por quem vive principalmente nas camadas mais
altas da sociedade, grandes empresários, políticos, pessoas que hipocritamente
situam-se em condições sociais determinadas por elevado padrão de consumo e de
instrução superior. Acredito que tenha sido também inspirador para a autora
Glória Perez, pois alguns personagens se assemelham. Muito embora nessa
realidade descrita o comportamento de jovens que são iludidas e convencidas a
seguirem caminhos que lhes indicariam fama e dinheiro, são muito parecidas.
Embora bastante convincente, e com dados ao final sobre o tráfico crescente de
pessoas, não há indicação de ser baseado em fatos reais.
Outro filme bastante impactante, no
entanto, baseia-se em fatos reais para narrar uma história que incrimina tropas
de “paz” da ONU durante a reestruturação dos países que se envolveram em uma
guerra sectária nos Bálcãs: Bósnia, Croácia e Sérvia. A “Informante”, que tem no elenco a bela e ótima atriz (protagonista
do filme “O Jardineiro Fiel”) Rachel Weiz e a veterana Vanessa Redgrave, é uma
co-produção da Alemanha e Canadá. E por isso não tem os finais moralistas de
boa parte dos filmes estadunidenses, que procuram vender a ilusão de que o seu
sistema judiciário funciona.
Envolvidos na recuperação desses
países a ONU terceirizou serviços de segurança para cuidar, principalmente, dos
serviços de fronteiras e conter migrações que pudessem acirrar mais ainda a
intolerância, causa da guerra. Mas os membros dessa corporação, aliados à
polícia local e envolvendo funcionários da própria ONU, e até mesmo com a
conivência de diplomatas, fazem parte de uma rede de trafico de jovens garotas,
que se estendem por países da antiga União Soviética. Os próprios soldados são
responsáveis pelos maiores abusos contra essas jovens, praticando violências
sexuais expostas com toda crueza nesse filme.
O nome dado à corporação no filme,
ao que tudo indica não deve ser o mesmo. Não pude encontrar na pesquisa que fiz
nenhuma que tivesse a denominação que lhe é dada: “Democra”. Mas nos créditos
finais há a informação de que, embora se comprovando todos os envolvimentos
dessas pessoas ligadas às atividades desenvolvidas pela ONU na região, e aos
crimes que lhes foram imputados, não houve nenhuma punição. E o responsável por
demitir a agente que revela toda a rede de tráfico e as responsabilidades de
cada um, continuava a tratar de contratos com os Estados Unidos, envolvendo
bilhões de dólares, para atividades no Iraque e no Afeganistão. A exemplo do
que aconteceu com a empresa Black Water, tida como o maior exército particular
do mundo, e também responsável por uma série de atrocidades nos países onde
atuou como segurança de autoridades estadunidenses. Embora denunciada, tendo
sua história relatada em um livro (Black
Water – a ascensão do exército mais poderoso do mundo), alterou seu nome
para Xe, e continua mantendo contratos com a ONU e os EUA.
Um terceiro filme, que deve ser
visto e que trata desse tema não tem a mesma qualidade dos dois anteriores, mas
é situado em uma área de intenso conflito fronteiriço e de guerra pelo tráfico
de drogas. “Desaparecidos” (que não
deve ser confundido com um filme brasileiro que possui o mesmo título), também
é uma co-produção da EUA e Alemanha. O cenário desta vez é o México, também
citado no primeiro filme, cuja fronteira com os EUA se constitui em uma rota
também para o tráfico humano.
Os alvos sempre são os jovens, mas
nesse caso uma garota de apenas 13 anos. Considero particularmente interessante
observar no crime que se comete contra crianças o intuito de não somente
utilizá-las como escravas sexuais, como também se constituem em verdadeiras
mercadorias vivas contrabandeadas com o objetivo de utilizar os seus órgãos
para serem vendidas a pessoas ricas que não estão dispostas a entrarem em
enormes listas de doações de órgãos. Tanto quanto o tráfico humano, o de órgãos
tem crescido talvez em uma proporção maior, e muitas vezes os dois crimes se
conectam, e como sempre estão ligados também ao tráfico de drogas e de armas. Cito
então outro filme que trata disso: “Tráfico
de órgãos”.
Muitas jovens são vítimas em
decorrência da própria condição criada na sociedade, que impõe a busca pelo
sucesso a qualquer preço. No caso de garotas com perfils que agradam ao crime
organizado, as artimanhas para atraí-las acontecem em agências de modelos que as
iludem com promessas de transformações de suas vidas, incentivando-as a
espelharem-se em outras modelos de sucessos. Também tem sido muito comum o
envolvimento de algumas jovens através da internet, seja com promessas de
empregos no exterior ou mesmo em páginas de relacionamentos, onde funcionam
espécies de coiotes, que se aproveitam da ingenuidade da maioria delas e
aplicam o golpe que, quando descoberto já será tarde para que a vítima possa
sair dele. A brutalidade, às vezes o estupro, para controlá-las pelo terror,
através do medo que lhes impõem criam uma espécie de paralisia, que as mantém
escravizadas aos seus perversores.
São crimes hediondos, de uma
perversidade sem tamanho, mas que, no entanto não despertam na sociedade nenhum
tipo de mobilização, como tem sido de hábito da juventude na defesa de animais
ou de árvores. A hipocrisia que se dissemina na sociedade esconde o fato de que
a natureza humana perde-se em meio à podridão intestina de um sistema onde tudo
se torna mercadoria, e que lucrar e enriquecer se sobrepõe a qualquer decência
e moral. E, por se constituir em um elemento cultural de sua lógica de
funcionamento, mantém a sociedade cega diante de tais monstruosidades e aberrações.
Não é da natureza humana, como se
procura disseminar, para amenizar uma culpa coletiva pela indiferença, e
aliviar-se individualmente das responsabilidades. É da natureza do sistema no
qual estamos vivendo, em que tudo passa a ter valor de mercado, inclusive o
lucrativo comércio do sexo, das drogas, das armas. Transforma-se em valores
culturais, e para aliviar, casos que envolvem tráfico humano são noticiados
como prostituição, e o preconceito encarrega-se de torná-lo indiferente. Pois
que seriam gentes com falhas de moral e de caráter, que perderam-se na
vulgaridade, e que portanto merecem o castigo do sacrifício. Os hipócritas, que
se escondem por trás dos discursos religiosos conservadores, também contribuem
mais ainda para reduzir aos desvios humanos a perversidade de crimes que são
reflexos da própria sociedade. Muito embora também sejam algumas organizações
religiosas as que se dedicam a denunciar esses crimes.
Por isso, embora haja uma campanha
em nível internacional, paradoxalmente puxada pela própria ONU, envolvida no
acobertamento de casos de tráfico, conforme denunciado no filme “A Informante”,
não há mobilização na sociedade diante de uma realidade cruel. Muito embora
todos os dias centenas de jovens e crianças “desaparecem”, são sequestradas em
todo o mundo, perfazendo um montante de cerca de dois bilhões de pessoas por
ano que são vítimas desse macabro comércio.
Como afirmei no texto anterior,
quando trato do problema das drogas, o discurso da elite, da classe média e de
jovens letrados, constitui-se nos últimos anos, repetindo uma cantilena da
grande mídia que serve aos interesses das grandes corporações, a defender o
futuro. Algo inefável, porque inexistente, e criar novos modismos no interesse
delas próprias. Baseando-se no medo que se torna um poderoso instrumento de
controle, apontam o fim do mundo como consequência da destruição da natureza.
Mas pouco, ou quase nada, se diz da natureza artificialmente criada e moldada
no ser humano, que o transforma em uma máquina, em um ser insensível capaz de
atos de perversidades inimagináveis, e de uma violência latente ou explosiva,
que destrói o presente de centenas de milhões de vidas por todo o mundo,
afetadas direta ou indiretamente por crimes estúpidos e hediondos.
O tráfico de gente, para
prostituição ou comércio de órgãos, deveria mobilizar a sociedade em uma onda
de indignação permanente. E jamais deve ser visto, tanto quanto a violência,
como algo inerente ao ser humano, mas reflexo do que se construiu seguindo-se a
uma lógica determinada onde a vida perde importância diante da necessidade de se
buscar o prazer sexual a qualquer preço, e acumular dinheiro e riqueza, mesmo
que sobre as desgraças que atormentam as populações das grandes cidades. Para
essas pessoas, destruídas e violentadas em suas condições de seres humanos, ou
aquelas que morrem decorrentes dessa estupidez, não haverá futuro algum. E que
também não se espere um futuro esverdejante, em meio a ondas de violências que
mancham as paisagens com o sangue de milhões de inocentes. Ainda há tempo para
se indignar também com isso.
Imagens
extraídas dos sites:
Ficha
técnica dos filmes citados:
TRÁFICO HUMANO
Título original: Human Trafficking
Ano: 2005
Tempo: 176min
Censura: 14 anos
País: Canadá, EUA
Produtora: Muse Entertainment
Título Original: Trade
País: EUA/Alemanha
País: EUA/Alemanha
Ano: 2007
Tempo: 119
Drama / Policial
Drama / Policial
Direção: Marco
Kreuzpaintner
Roteiro: Jose
Rivera, Peter Landesman (artigo)
Elenco: Cesar Ramos, Marco Pérez, Paulina Gaitan, Kevin
Kline, Alicja Bachleda-Curus, Pavel Lychnikoff, Zack Ward
A INFORMANTE
Título Original: The
Whistleblower
País de Origem: Alemanha /
CanadáGênero: Drama
Tempo de Duração: 111 minutos
Ano de Lançamento: 2010
Direção: Larysa Kondracki
TRÁFICO DE ÓRGÃOS
Título Original: Inhale
País de Origem: EUA
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento: 2010
Direção: Baltasar Kormákur
País de Origem: EUA
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento: 2010
Direção: Baltasar Kormákur
Concordo plenamente com vc Romualdo e quero aqui compartilhar minha indignação para com mais essa barbárie cometida diariamente. Difícil saber como ajudar no combate ao tráfico de pessoas. Penso que a educação, além da informação, é um meio fundamental para ajudar na compreensão do risco e de que são possíveis vítimas. Não entendo como as pessoas sempre acham que nada pode acontecer com elas, de certa forma que seriam intocáveis e protegidas sem fazer por onde.
ResponderExcluirabraços,
Ana