A
pós-política e o perigo dos três efes: fakes,
farsantes e fascistas(*)
Há algum tempo alimento a vontade
de escrever um texto que pudesse problematizar uma situação que vivemos no
mundo real, mas que se manifesta mais fortemente na virtualidade de um
cotidiano que segue perigosamente em direção ao acirramento de comportamentos
fortemente marcados pela intolerância.
Os golpes silenciosos aplicado em
alguns países que viveram dias e meses de revoltas populares, e o rito sumário
da impostura democrática, com os setores da elite conservadora paraguaia
destituindo o presidente daquele país, me levaram a, enfim, concluir por tentar
registrar minhas preocupações que já me acompanhavam desde que terminei de
escrever as “crônicas de um mundo em transe”, no começo do ano. E me
convenceram após por várias vezes ter sido estupidamente afrontado com ofensas,
por divergir de determinadas opiniões expostas na internet.
Como os amigos leitores desse blog
podem perceber, ao longo da leitura de mais de uma centena de artigos, embora
tenha me desligado umbilicalmente da militância política, não o fiz das minhas
concepções nem da minha filiação partidária. E mantenho sempre a ideologia
marxista, e o método dialético, a guiar os meus olhares e definirem as minhas
observações sobre as transformações que afetam o cotidiano da humanidade. E o
nosso entorno, em particular.
Os dissabores da vida, registrados
no acaso que dilacerou uma parte de mim, e que me levou inclusive a criar esse
blog, gerou certo ceticismo quanto a construção do futuro. No meu caso
particular o futuro desvaneceu-se no momento em que uma tragédia tirou de mim
parte dele, e me fez prestar mais atenção no presente, valorizando mais o
passado, e tentando entender como as mudanças casuais nos afetam em nossos
sentimentos mais profundos, de esperança, fé e crenças nas transformações materiais.
Tornei-me mais criterioso nas
análises, mais ponderado na avaliação política, e equilibrado na identificação
dos sentimentos de solidariedade. Mas me assusta ver como o caráter dos
indivíduos vem sendo determinado por fortes traços de intolerância. E o que
vejo é preocupante, após três décadas de militância política, e tendo podido
acompanhar essas transformações por minhas leituras focadas na dialética
materialista e pela experiência principalmente desses últimos cinco anos, em
que pude observar melhor com outros olhares esses comportamentos,
principalmente da juventude.
O meu ingresso na virtualidade das
redes sociais, motivado principalmente pela necessidade de melhor difundir o
meu blog, me levou da euforia com o deslumbramento pela potencialidade que
essas ferramentas nos possibilitam, à decepção com que comecei a perceber nesse
meio um canal de expressão de comportamentos desrespeitosos, intolerantes e
catártico das frustrações digressivas de personalidades certamente marcadas por
históricos de convivências sociais complexas. Muito embora sendo comportamento
de uma minoria, incomodam e preocupam.
Imaginei, num primeiro momento,
poder transferir a minha militância para o mundo virtual, até mesmo me
intitulando um “guerrilheiro cibernético”, como uma forma de prosseguir na
difusão de ideias que marcaram a minha formação política. Como aprendi a ser
mais tolerante com as diferentes opiniões, e a não me consumir por questões
menores que venham a nos dividir, os que possuem concepções que se baseiam na
solidariedade e na busca pelo caminho que nos leve a uma sociedade mais justa e
menos desigual, acreditei poder levar o bom combate para as redes sociais.
Eu sabia que encontraria discussões
ácidas, no enfrentamento de opiniões advindas de setores conservadores. O que
não seria nenhuma novidade, e até mesmo natural. Mas o que me viria a me
surpreender, por todo esse tempo de virtualidade digital seria a virulência dos
embates, oriundos principalmente de pessoas identificadas com grupos
aparentemente de esquerda. Além dos inconformados conservadores, contrariados
com as recentes mudanças políticas no Brasil.
Passei a observar tais
comportamentos, e até mesmo em algumas situações o grau de agressividade e de
ofensas destiladas atingiu níveis preocupantes, me alertando para buscar explicações
em uma nova realidade que teve início em conflitos que marcaram um novo estilo
de luta da juventude por vários países, denominado “indignai-vos”. Na esteira
da crise capitalista que se estende desde quando as torres gêmeas foram postas
ao chão, em 2001, cujo epicentro se deu em 2008 com a quebra de inúmeras
instituições financeiras na sequência de uma grave crise no mercado imobiliário
estadunidense, até o momento atual, com uma crise imprevisível na Europa e do
capitalismo de uma maneira geral.
A partir de uma situação concreta,
particular, e as observações que as minhas aulas de geopolítica me impunham,
fui construindo algumas ideias a respeito dos tempos atuais. Na junção das
lembranças das elaborações de Milton Santos, das leituras dos últimos textos de
Eric Hobsbawm, e, obviamente, da dialética marxista, fui me convencendo que
vivemos uma época de transição, de um possível esgotamento do sistema
capitalista. Mas, como já alertava Gramsci, o perigo está quando o novo demora
em chegar e o velho resiste em desaparecer. Se não há a perspectiva de saídas
revolucionárias, que possam dar um novo rumo à sociedade mediante a existência
de uma vanguarda devidamente organizada, outros mecanismos certamente
despontarão, a exemplo de como se deu o surgimento do nazi-fascismo, nas
décadas de 1930-40, e prolongarão a agonia sistêmica.
Lembrei-me de ter lido há alguns
anos um livro do filósofo Slavoj Zizek, quando ao final ele conclui com algumas
formulações interessantes, que podem perfeitamente serem pontuadas com os
acontecimentos patrocinados pelos “indignados” – que surgiram nas revoltas
árabes e nas lutas contra o sistema financeiro capitalista, nos Estados Unidos
e Europa – e nos ajudam a entender o comportamento de uma juventude sectária e
intolerante. As justas revoltas são desprovidas de senso crítico aprofundado,
porque não lhes acompanham nem questões teóricas, que lhes ajudem a compreender
as contradições, nem ideologia, que lhes indiquem como superar tais
complexidades e encontrar caminhos alternativos àqueles pelos quais se estão
protestando. Voltei a ele, e cito aqui um trecho interessante.
Assim dizia Zizek:
“Por
tudo isso, a lição ‘leninista’ fundamental de nosso tempo é a seguinte:
política sem a forma organizacional do partido é a mesma coisa que política sem
política; por isso, a resposta àqueles que querem apenas ‘Novos Movimentos
Sociais’ (nome muito adequado, aliás) deve ser a mesma que os jacobinos deram
aos girondinos que queriam negociar uma solução de compromisso: ‘Vocês querem
revolução sem revolução!’. O dilema atual é que há dois caminhos abertos ao
engajamento sociopolítico: ou joga-se o jogo do sistema, engajando-se na ‘longa
marcha através das instituições’, ou toma-se parte em novos movimentos sociais,
do feminismo à ecologia e ao anti-racismo. E, reiterando, a limitação desses
movimentos é que eles não são políticos no sentido do Singular Universal: eles
são ‘movimentos de uma só causa’, que não têm a dimensão da universalidade –
quer dizer, eles não se relacionam com a totalidade social” (ZIZEK, Slavoj. Às
portas da revolução – escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo editorial,
2005. Pág. 325).
A máscara do protagonista de "V" de Vingança inspirou alguns a esconderem-se no anonimato |
Prosseguindo, em um capítulo
denominado “Contra a pós-política”, Zizek critica o comportamento gerado do
desencantamento seja com a desilusão do socialismo, como pela crescente crise
do capitalismo. O caminho escolhido quase sempre tem sido do apoliticismo e da
busca por escolhas de temas pontuais, que se tornam bandeiras de grupos e
camadas sociais, desconectadas de uma realidade bem mais ampla, que poderia
levar ao entendimento que tais circunstâncias são geradas pela forma como
funciona o sistema capitalista.
Os exemplos que surgem dessa
confusão têm levado ao poder setores conservadores oportunistas, que se
aproveitam desses dilemas e da desideologização, que tem caracterizado os
tempos atuais. Na medida em que não carregam em si ideologias, e limitam-se às
particularidades, esses movimentos contribuem para a alienação das massas em
geral, quase sempre afastadas dos embates políticos. A consequência disso é a
incapacidade em se identificar possíveis diferenças, mesmo quando há um
completo antagonismo no confronto de concepções ideológicas bem distintas
levando ao poder candidatos conservadores, reforçando o controle dos meios de
produção pela classe dominante e impedindo possíveis mudanças estruturais.
Creio ser a situação atual do
Paraguai um ótimo exemplo, que já me referi no texto anterior. E o processo
eleitoral mexicano, que deve levar a retornar ao poder o PRI (Partido
Revolucionário Institucional), conservador, que dominou a política naquele país
por 70 anos. Mesmo tendo nas duas últimas décadas um movimento social que
adquiriu uma grande influência internacional, os zapatistas, e estando o México
em uma verdadeira guerra civil contra o poder do tráfico de drogas.
Mas essas situações não são o cerne
das questões que quero aqui abordar. São apenas exemplos, dentre dezenas de
muitos outros que apontam as contradições flagrantes de um tempo que deveria
apontar para a busca por alternativas progressistas ao capitalismo, sistema que
vive uma de suas maiores crises desde a grande depressão da década de 30 do
século passado.
As causas de tudo isso, como
pontuadas por Zizek, podem ser encontradas na absoluta falta de compreensão
política de uma juventude, distanciada de conteúdos teóricos que possam
explicar, ou pelo menos facilitar, o entendimento sobre como as contradições afetam
nossas vidas e a sociedade de maneira geral, e não são possíveis de serem
explicadas mirando-se apenas nas particularidades. As palavras de ordens, quase
sempre distantes de atingir o substrato do problema, miram preferencialmente
setores emergentes da própria esquerda, notadamente partidos comunistas em
ascensão. Há uma disputa sectária entre grupos de esquerda que confunde o alvo,
e alivia a classe dominante, que se unifica quando sente o chão abrir-se a seus
pés.
Miguel de Unamuno, iludiu-se com o movimento que ascendeu o fascismo, e depois o combateu quando descobriu o seu sentido perverso. |
Além disso, por não possuírem
elementos ideológicos que lhes garanta organicidade, alguns desses movimentos
não somente atacam os partidos políticos, mas escolhem aqueles que são forjados
ideologicamente, e destilam injustos ódios que com o tempo transformam-se em
comportamentos intolerantes. Parece haver uma necessidade de se destruir as
ideologias dos que as têm. Mas como não há espaços para discussões, pela
ausência delas diante de um pragmatismo imediatista, a agressividade passa a se
constituir na arma aparentemente eficaz para fazer valer seus objetivos.
Ocorre que na sequência de
comportamentos que vão se tornando cada vez mais intolerantes, amplia-se a
virulência das agressões, e o que se vê é a repetição de atos que nos fazem
lembrar a maneira como o nazismo e o fascismo despontaram logo na sequência da
crise econômica da terceira década do século passado.
A alienação de uma juventude
forjada em tempos de uma globalização neoliberal, a destruição dos laços
familiares, a individualidade crescente, a busca egoística pelo sucesso a
qualquer custo, e a ampliação de valores teológicos que substanciam tudo isso,
denominada teoria da prosperidade, compõem um conjunto de circunstâncias que
explicam os tempos de negação da ideologia. Mas não somente isso. Agregue-se,
contraditoriamente, a falta de informação em um tempo em que as ferramentas
tecnológicas facilitam a aproximação com o que acontece em todas as partes do
mundo. Mas são essas mesmas ferramentas, que explicam, para o bem e para o mal,
o distanciamento de leituras mais complexas, filosóficas, optando-se por um
cartesianismo vulgar, porque fruto de toda a confusão gerada pela sociedade
midiática neoliberal, e pela informação deformada, apolítica e baseada na
espetacularização do medo. O que os empurram para leituras alienantes, bizarras
e de auto-ajuda.
A radicalidade de alguns desses
comportamentos foram potencializados pelas redes sociais, criando uma coragem
peculiar a alguns jovens, situação que não aconteceria em plano real, pela
absoluta falta de backgrounds,
consequência do distanciamento teórico e da ausência de fundamentos a lhes
garantir segurança para um embate ideológico.
A intolerância, característica fascista, não tem limites. E se inspira em crimes hediondos no combate político |
O que se vê, então, é o destilar de
ódios a todos aqueles que porventura pensem diferentes, discordem e confrontem
seus pensamentos e práticas. Semelhante ao que aconteceu na ascensão do
fascismo tradicional, aquele que no período de crise sistêmica parecida com a
que vivemos nos dias atuais, despontou a partir de comportamentos críticos, de
suportes garantidos pelas insatisfações e indignação de populações que viviam
momentos de dificuldades econômicas graves. Também naquele momento, os jovens
tornaram-se alvos potenciais de lideranças emergentes, pela insatisfação com
uma época que não lhes ofereciam perspectivas. E alimentados pela intolerância,
visaram também os comunistas, que ameaçavam ideologicamente a elite dominante,
fracassada desde o final da primeira guerra mundial. A negação da política
instrumentalizou uma reação conservadora.
Alguns daqueles que usam das redes
sociais para agirem de maneira desrespeitosa não o fazem de maneira explícita,
mas escondem-se em perfis falsos, prática criminosa que tem se tornado comum,
principalmente no Facebook. Ou senão, omitem de seus perfis informações que
possam identificá-los e apresentam desenhos, ou charges, em lugares de fotos
que os reconheçam.
Não é essa uma prática somente
desses grupos, mas pude identificá-las também sendo utilizada por jornalistas
de blogs conservadores, de jornais, tabloides e revistas, que postam suas
matérias para serem repercutidas, e que, ao serem criticados acionam seus fakes, que agem agressivamente, ofendem
o interlocutor e tentam desqualificá-lo. Assim como fazem alguns desses farsantes,
anonimamente, em comentários agressivos nos blogs que tem defendidos os últimos governos no Brasil e teçam
criticas aos partidos conservadores.
Ao fim de tudo, esses
comportamentos tornaram-se bem visíveis no desencadear da greve na
universidade. Comportamentos sectários, violentos e intolerantes, traduzem um
sentimento comum à época do fascismo, de não aceitação das diferenças, de
negação do pensamento oposto e da reação intempestiva e agressiva na imposição
de um pensamento ou de uma determinada prática. Não sei se surpreende, mas é
lamentável, o fato de juntarem-se a esse coro intolerante alguns professores,
que obviamente se desqualificam enquanto educadores. Mas suas posturas indicam
que eles pouco se importam com isso, a inconsequência é uma marca que lhes
acompanham e a intolerância um traço de caráter.
O filme "A Onda" mostra como o fascismo pode iludir a juventude |
E, não surpreendente, grupelhos de
extrema-esquerda, setores anárquicos despolitizados e contumazes direitistas,
se irmanaram no mesmo comportamento. Mas tudo isso deve servir de alerta aos
que defendem uma sociedade baseada na tolerância, no respeito às diversidades e
na aceitação de ideias que se contraponham. Considerando-se o momento de crise
econômica mundial, do xenofobismo e da intolerância religiosa, vivemos
circunstâncias bastante parecidas com o que ocorreu no século XX. O fascismo e
o nazismo ascenderam mediante a insatisfação popular, e se consolidaram com um
discurso baseado no moralismo hipócrita, no anticomunismo e na descrença com as
organizações políticas.
Diferente do que se pensa, a
ideologia que moveu o fascismo não foi construída pela direita, mas originou-se
de um viés esquerdista, notadamente naqueles setores mais sectários, cujo
discurso radical empolgava as massas e as tornavam-nas facilmente manipuláveis
e aptas a uma lavagem cerebral coletiva. Tanto Hitler (que criou o Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), quanto Mussolini (expulso do
partido socialista por suas ideias extremistas, e antigo editor do jornal mais
lido da esquerda, o Avanti),
excelentes oradores, críticos dos desmandos sistêmicos e com carismas
suficientes para se apresentarem como salvadores, o fizeram apropriando-se de
forma oportunista da expectativa que a população tinha em relação ao socialismo
e a conduziram a um tempo de intolerância que vitimou milhões de pessoas em uma
época que não pode ser esquecida, para que não se repita jamais.
Ao se colocarem como alternativas
ao movimento socialista e comunista em ascensão, adotando comportamentos
intolerantes e anticomunistas, tornaram-se confiáveis a uma burguesia que já
não tinha mais opções para conter a débâcle
do capitalismo naquele momento. Registre-se, porque é história, que alguns
setores esquerdistas alemães, naquele momento, se negaram a combater esse
movimento, porque poderia beneficiar os comunistas, melhores organizados e
preparados para tomarem o poder naquele país.
O "Ovo da Serpente", filme de Ingmar Bergman, mostra a gestação do nazismo |
Mas, tudo indica que, tal qual nos
mostrou Ingmar Bergman, os sintomas do fascismo podem a qualquer momento serem
gestados, como o ovo de uma serpente,
aproveitando-se de insatisfações momentâneas e usando como tática a
desqualificação do outro, a mentira persistente e a estupidez alienante. São
tempos que exigem além de reflexões muita determinação e combate a essas novas
práticas fascistas encobertas com discursos de liberdade e democracia, em mais
um período de crise estrutural do sistema capitalista.
Como no período do Estado Novo, na
ditadura varguista, quando o integralismo de Plínio Salgado desfilava suas
bandeiras fascistas em marchas pelas ruas das cidades brasileiras, novos
“galinhas verdes”, como ficaram conhecidos esses personagens, retornam à cena
em tempos cibernéticos, reforçando a conhecida frase irônica de Karl Marx, para
quem a história, ao se repetir, se configuraria da primeira vez como farsa, em
seguida como uma tragédia.
Caro Romualdo, parabéns pelos excelentes textos que vem escrevendo. Estes são politizados e carregados de cientificidades pelo caráter multidisciplinar das abordagens que faz da análise dos fenômenos políticos, culturais e sociais que são historicamente construídos.
ResponderExcluirComo você, acredito que as transformações sociais só podem se concretizar através da militância na busca para o conhecimento, o que redunda na capacidade individual da vida que se resolve materialmente, como disse Marx.
Gilmar Elias.
Parabéns pelo texto, Prof. Romualdo.
ResponderExcluirComo sempre, uma aula de vida, civilidade e respeito.
Abraço,
Maria Izabel