Memorial da América Latina |
Eu poderia iniciar esse texto
tomando como referência Honduras, que viveu recentemente um processo semelhante,
com a deposição do presidente Manuel Zelaya em um “golpe branco”. Ou mesmo as
tentativas de golpes e assassinatos contra Hugo Chavez, da Venezuela e Rafael
Correa, do Equador. Ou quem sabe citar a manipulação da mídia e dos setores
conservadores em torno de um escândalo, tomado proporções inusitadas pelos
interesses em jogo – o midiaticamente denominado “mensalão” – quando se aventou
também a hipótese de um impeachment
do presidente Lula, aqui no Brasil.
Qualquer um desses exemplos, e
tantos outros possíveis de ser encontrados na história política
latino-americana nos possibilitam entender a maneira como a elite tradicional lida
com o controle do poder, e apregoa a falácia da democracia, a seu bel-prazer,
sempre no intuito de manter o controle sobre os meios de produção, do sistema
financeiro e do modelo latifundiário que vigora por aqui desde há séculos. Para
isso ainda é bem atual o livro de Eduardo Galeano, “As veias abertas da América
Latina”.
Mas como vivemos um momento de
expectativa em torno desses dois acontecimentos, onde por maneiras diferentes
processos que se acreditavam democráticos são tomados por golpes de estados mais
sofisticados, utilizando-se de mecanismos constitucionais, mas manipulados de
acordo com os interesses em jogo. O Paraguai e o Egito são bons exemplos para
demonstrar o quanto a democracia é um sistema representativo dos setores conservadores, somente permitido às forças populares quando na sua utilização não consigam adquirir maioria no parlamento. E reage-se à força, os proprietários dos meios de produção, quando se veem ameaçados em seus domínios, ou quando a eminência de um poder popular os assustam, impregnando-os de temor de ter suas riquezas ameaçadas.
MAIS
UM GOLPE NO PARAGUAI
Talvez seja este o país de maior
tradição golpista na história da América Latina. E o que mais tempo conviveu
com uma ditadura militar, sob o comando do general Alfredo Stroesner, que após
um golpe militar em 1954 governou aquele país por 35 anos, entremeada por
sucessivas fraudes eleitorais.
A herança desse e de outros
caudilhos e ditadores transformou o Paraguai em um dos países mais atrasados economicamente
do continente americano. Dominado por uma forte elite agrária, a pobreza se
disseminou majoritariamente por todo o seu território, sem que fosse possível
criar um movimento camponês forte, em função da violenta repressão que sempre
marcou a política paraguaia.
A eleição de Fernando Lugo se
apresentava como uma vitória das forças populares, e consequência dos ares de
mudanças que vicejava por toda a América Latina. Mas isso só foi possível com
uma ampla aliança política, que o levou a um acordo com o Partido Liberal
Radical, que poderíamos, grosso modo, assemelhá-lo a uma mescla de PSDB e DEM.
Contudo, os anos de ausência de
democracia não permitiram a consolidação de um sistema partidário que fugisse
do bipartidarismo que vigorou por toda a ditadura stroesner. Assim, em aliança
com um partido conservador, que possuía ao lado do Partido Colorado maioria no
parlamento, Lugo se viu impossibilitado de implementar reformas progressistas.
Sua tentativa esbarrou logo imediatamente na formação do seu governo, levando a
um imediato rompimento do vice-presidente liberal. Agora protagonista do golpe,
assumindo a condição de presidente, e de um partido que, embora sendo
representante das forças conservadoras e do latifúndio, há mais de sessenta
anos estava fora do controle do poder político.
Impedido de consolidar suas
propostas de mudança, por não possuir sequer um terço do parlamento, Lugo se
viu isolado e ainda por cima desacreditado pelos movimentos populares,
principalmente os sem-terras, camponeses que travam uma batalha ferrenha contra
o enorme poder que os grandes proprietários de terras, latifundiários, possuem
naquele país. Inclusive controlando boa parte do parlamento.
Sem-terras no Paraguai opovonalutafazhistoria.blogspot.com.br |
A gota-d’água de tudo isso foi
exatamente um confronto envolvendo latifundiários, policiais e sem-terras, em
uma fazenda de propriedade de um ex-senador colorado. O final do conflito
deixou 18 mortos, entre camponeses (11) e policiais (7), num típico conflito de
guerrilha, já que envolveu até mesmo grupos guerrilheiros (Exército do Povo Paraguaio)
que atuam na região, embora uma suspeita não comprovada e que requer desconfiança pelas fontes que deram essa versão. A insinuação de que grupos populares vinculados ao governo
também estivessem ao lado dos sem-terras serviu como pretexto para que os
setores conservadores, provavelmente sentindo-se ameaçados pela determinação de
Fernando Lugo de propor uma Reforma Agrária (embora não tivesse apoio político
para isso), iniciasse um processo em rito sumário, sob o argumento de “mau
desempenho de suas funções, com o intuito de derrubar o presidente
democraticamente eleito.
Enfim, consolidado esse golpe, em
menos de 48 horas, vemos um comportamento semelhante ao que aconteceu aqui no
Brasil, em 1964. Também a bandeira da Reforma Agrária, a amedrontar e ameaçar
os interesses de grandes proprietários de terras, aliado ao crescimento e
fortalecimento das Ligas Camponesas, foi o pano de fundo para que o cargo de
presidente fosse declarado vago após a mobilização das tropas militares que em
1º de abril daquele ano também implementou um golpe com argumentos parecidos.
Da mesma forma que Lugo, João Goulart também não possuía uma forte base
parlamentar e se via também acuado por boa parte da esquerda, que criticava sua
lentidão para consolidar as transformações reivindicadas.
Nos dois casos o sectarismo por
parte dos grupos de esquerda, ansiosos por mudanças aceleradas, se contrapôs a outra
semelhança entre as duas situações, a aliança dos setores conservadores e
reacionários. Historicamente, enquanto a esquerda se divide a direita se
unifica, em torno da defesa de seus interesses corporativos, principalmente de seus meios de produção, grandes propriedades, bábricas e bancos.
Conclusão, o Paraguai volta por meio
de um outro golpe de estado, travestido de interesses “democráticos”, porque
com base no parlamento (assim também o foi aqui no Brasil, quando o
presidente do Congresso declarou vago o cargo de presidente), a ser governado
pelos setores conservadores.
Tudo indica que os próximos meses
serão decisivos para definir os rumos da “democracia” paraguaia. Provavelmente
haverá uma radicalização nas lutas sociais e um aumento da repressão contra o
movimento camponês, levando a um acirramento da luta de classes e a provável conflito
guerrilheiro que poderá até mesmo ameaçar a fronteira brasileira, porque onde
se situa um dos principais focos desse embate, envolvendo os apelidados “brasiguaios”,
antigo produtores brasileiros que se instalaram naquele país e ali consolidaram
um forte poder latifundiário.
O que se pode esperar agora é que
as nações que componham a Unasul reconheça a situação do Paraguai, como de uma
situação golpista, tendo sido ferido de morte os valores democráticos, através
do afastamento de um presidente eleito através de um julgamento sumário,
exercido em um tempo recorde a partir de uma situação de fragilidade política
gerada pelo próprio parlamento, incapaz de ceder aos interesses corporativos
dos grandes fazendeiros, minoria proprietária da maioria das terras paraguaias, dentre os quais os chamados "brasiguaios".
EGITO:
DA PRIMAVERA ÁRABE A UM LONGO E TENEBROSO INVERNO
Já teci aqui no Blog crítica á
formulação de uma “primavera árabe”. Uso o termo para criticá-lo, na medida em
que erroneamente procura assemelhá-lo ao período de intensas revoluções
burguesas no século XIX denominado pelo historiador Eric Hobsbawm, como a “primavera
dos povos”. As manifestações iniciadas pela Tunísia, a partir do protesto em
auto-imolação de um vendedor ambulante, e espalhou-se por uma série de países,
teve seguramente origem na indignação de milhões de jovens e potencializadas
pelas redes sociais.
Praça Tahrir no Cairo |
Mas, nesse caso, quanto em tantos
outros que se espalharam pelo resto do mundo, e através de uma postura sectária
e de não aceitação da participação das organizações políticas e sociais, o
grito de indignação se não foi abafado, foi gradativamente sendo manipulado. E se
o temor inicial pela não aceitação da presença de partidos tomou corpo em meio
à multidão, isso não inibiu, na sequência das saídas institucionais, que o
movimento fosse cooptado pelo legalismo das eleições e pela sutileza com que
foi aplicado um golpe de estado disfarçado mantendo o poder sob o controle dos
militares.
Apoiado pelos países ocidentais europeus
e pelos Estados Unidos, e naquela região pela Arábia Saudita, tanto os
militares (no caso do Egito), quanto a Irmandade Muçulmana (no Egito e na
Tunísia, além de sua participação no conflito da Síria), passaram a se
constituir em alternativas para os interesses do império, bem como para conter
o aumento da influência do Irã.
Entre idas e vindas, e dois
processos eleitorais sendo um parlamentar e outro presidencial (algo inédito
naquele país), a característica marcante que fica é da manipulação através de
mecanismos legais (como no exemplo do Paraguai) para manter o controle do poder
nas mãos dos militares e, por outro lado, com a destituição do parlamento
recém-eleito pela junta militar, impedir que o próximo presidente, oriundo da Irmandade Muçulmana, venha a ter uma maioria parlamentar. O
objetivo é dificultar a governabilidade, principalmente através de medidas que
venham a desagradar os interesses dominantes da minoria de privilegiados, e
manter sob controle um provável estado islâmico, que possa vir a funcionar como
nos Emirados Árabes, no Kweit e em outras monarquias muçulmanas que dominam a
região tendo a frente a Arábia Saudita.
Mursi - Irmandade Muçulmana EFE - Revista Época |
O resultado eleitoral foi
divulgado neste domingo, e a demora visou dar tempo à Junta Militar de desfazer o parlamento, e
impor limites ao poder presidencial. Mas, principalmente, para garantir com que
as principais estruturas do estado egípcio se mantenha sob controle dos
militares e atendendo aos interesses dos Estados Unidos num região de enormes
interesses estratégicos. Mesmo assim, uma incógnita prevalecerá, quanto aos rumos que o Egito tomará nos próximos anos.
Ao fim de tudo o que podemos
aprender desses exemplos é que a dita democracia só tem valor se atende aos
interesses daqueles que controlam a riqueza, seja meios de produção ou o sistema
financeiro. É admissível às elites perder o poder político para partidos que
não sejam de suas representações, mas
não é admitido que as ações desses partidos, ou lideranças que ascendam ao
poder, extrapolem os limites de seus interesses. O que vale então é ou a plutocracia
ou a teocracia, atendendo aos interesses dos setores mais ricos, no primeiro
caso, ou de grupos religiosos no segundo caso, desde que estejam os dois em
perfeita sintonia. O que quase sempre acontece.
Com isso quero dizer que a
democracia, que deve ser vista historicamente, não em seu sentido universal
como a própria social-democracia procurou apresentar, é incompatível com os
valores capitalistas. Na medida em que esse seria um regime representativo que atenda
aos interesses da maioria, quando no capitalismo prevalecerá sempre os
interesses de uma minoria, controladora dos meios de produção e permanentemente
atenta a se impor pela força cada vez que o seu poder estiver sob ameaças.
Junta militar governa o Egito desde a queda de Mubarak |
O Paraguai, bem como o Egito, são
alguns dos tantos outros exemplos que deveriam nos instigar, e alertar aqueles
que lutam contra o processo de dominação excludente e se dispõem a lutar contra
as injustiças sociais. O que se vê nesses processos é uma verdadeira autofagia
entre setores de esquerda, que digladiam-se e se veem muito mais como inimigos
do que deveria ser a própria burguesia. O sectarismo e a incapacidade de se
fazer política para além dos interesses mesquinhos dificulta a formação de uma
base de apoio progressista, bem como a eleição de parlamentares identificados
com as lutas populares. Essa situação termina por jogar nas mãos da burguesia o
controle dos parlamentos, e impõe a qualquer governo de esquerda que se eleja a
necessidade de composições conservadores para manter a governabilidade.
Evidentemente, nessas situações as
medidas que poderiam possibilitar transformações radicais, como a reforma
agrária, não se consolidam, mantém um caos político, acirram os ânimos entre a
própria esquerda e garante os pretextos para que um parlamento conservador
majoritariamente aplique golpes de tomada de poder escorando-se em
constituições limitadas e implementadas exatamente no sentido de conter
qualquer ascensão ao poder de grupos que apliquem medidas que alterem
as estruturas arcaicas do estado conservador.
Engraçado a tal da mídia,faz tanta confusão na nossa cabeça que no fim precisamos nos organizar do aveso para compreender algo. Seu texto me mostrou parte desse caminho aveso.
ResponderExcluirAbraço
Lorranne
Bom texto, já estava pra solicitar uma analise da situação politica do Paraguai, estavamos como no Mito da Caverna, com a grande midia nos fornencendo apenas o lado conservador, realmente a instabilidade da esquerda fortalece e muito a direita conservadora, porém vem a questão é muito mais facil agradar a poucos que a muitos e ao gerar o caos da multidão, sempre surgirá uma direita forte!!!
ResponderExcluirAbraços,
André.