Tomei emprestado de Lênin esse título.
Não propriamente nos termos por ele posto num discurso realizado em 19 de maio
de 1919, mas como uma paráfrase a ser aplicada nas circunstâncias que se propõe
a análise aqui presente. Acrescento aqui uma discussão sobre o sentido da
democracia, que ele se refere como “vontade da maioria”. É interessante
observarmos que para completar a tríade que compunha a palavra de ordem da
burguesia - nos momentos em que ela enquanto classe em ascensão
questionava o putrefato poder feudal - falta apenas a fraternidade.
Ora, a essência do discurso de Lênin[1] é
criticar a maneira como certas palavras, ou como os sentimentos de igualdade e
liberdade, eram costumeiramente manipulados, e cerzidos numa teia de demagogia
a fim de iludir o povo.
Aliás, essa preocupação já estava
presente muitos séculos atrás, com Aristóteles, Platão e Sócrates. Diversamente
eles apontavam os riscos presentes nas várias formas de democracia, e o temor
de que a mesma degenerasse em demagogia. “Aristóteles (Política, IV, 4, 2-7
e IV, 5, 3-5) distingue cinco formas de democracia: a primeira é aquela em
que as classes dos ricos e dos pobres estão, por lei, no mesmo plano de
igualdade, mesmo que, sendo os pobres mais numerosos, seja a eles que cabe
inevitavelmente governar, com a conseqüência implícita de uma política de
classe; a segunda é aquela onde, para chegar à magistratura, é preciso possuir
um patrimônio não elevado; a terceira é aquela em que os cargos são acessíveis
a qualquer cidadão de origem irrepreensível; a quarta é aquela em que todos os
cidadãos podem aspirar aos diversos cargos; a quinta é aquela onde é soberana
não a lei, como nas formas precedentes, mas a massa, ou seja a assembléia,
sendo então que ocorre o fenômeno da demagogia” [2].
Com esses dois exemplos pretendo
resgatar uma discussão, que, ao que parece, nos tempos de neoliberalismo
terminou por ser enfiada no fundo do baú: qual o caráter da democracia?.
Lembro-me bem que essa discussão opunha ideologicamente segmentos que
politicamente tem marchado conjuntamente, mas que no vislumbre de disputar o
poder mediante o sufrágio universal omitem a essência dessa polêmica, reforçam
momentaneamente a democracia participativa tal qual expressa na palavra de
ordem da burguesia, e a própria forma como a burguesia tem governado do ponto
de vista do aparato do Estado e das leis.
Nenhum problema quanto a isso, em
termos de inserir-se em um processo assumido como legítimo. A esquerda
assimilou bem a possibilidade que se descortinava com o fracasso da burguesia em
garantir a igualdade e a fraternidade expressas em sua bandeira
revolucionária. Percebeu que, historicamente, o sentido dado a esses termos
pela burguesia, haviam se esgotado no tocante à aceitação das massas, e que era
preciso se colocar como alternativa e alternância na condução do poder
político.
O problema, a meu ver, situa-se no
próprio esgotamente do processo, como Engels previra, mas que ainda não chegou
ao ponto de ebulição por ele imaginado[3].
Enquanto isso, o discurso anacrônico da burguesia, envelhecido em “barris de
carvalho” e apresentado como sofisticado, transfere-se para uma parcela
importante e significativa da esquerda. Democracia passa a ser a representação
divinal nos discursos, e a justificativa para caracterizar de forma maniqueísta
os que divergem de tal ou qual opinião, ou decisão. A súmula inquisitória
define, antes do purgatório, o caminho do inferno para os que se opõem às
decisões “democráticas” da maioria. Mesmo que essa maioria represente apenas
uma parte presente do todo majoritariamente ausente. Eis o temor de Aristóteles
em relação ao assembleismo.[4]
Mas que democracia?
A banalização do discurso em defesa da
democracia, e os interesses demagógicos que se encobriam por trás do mesmo,
levou a uma descrença absoluta do que deveria ser o princípio de decisão da
maioria. A lógica, enviesada, que permeia o discurso democrático, reza que a
decisão pelo voto é o momento mágico que integra o indivíduo e o qualifica como
cidadão. Seria a representação da sua individualidade num momento de decisão
coletiva. Mas este também é o princípio da demagogia, na medida em que conforma
as massas numa finalidade que é o voto. A isenção da participação está na
ideologia da dominação burguesa, fundada principalmente no positivismo. O sufrágio
universal possibilita a escolha democrática, e o eleito julga-se
plenipotenciário, porque ungido das urnas, e do poder popular legitimamente
conferido. A este cabe, seguindo-se o rito ideológico da dominação, estabelecer
a ordem mediante a autoridade que lhe foi outorgada. A passividade, ou a
pusilanimidade, nestes termos, é garantida pela “tradição” religiosa, e da
crença divinal na autoridade.
Ditadores e democratas usufruíram desse
discurso para justificar a consolidação de uma plutocracia ou
de uma burocracia. Tudo em nome do povo, pelo povo e para o povo.
Atualmente, repete-se à exaustão, o velho jargão da democracia, universalmente
aceito como estabelecido pela burguesia, mesmo com todo o desgaste e descrença
que o termo carrega.
Mas onde se encontra o sentido da
discussão que no início do texto me propus a resgatar? Está no fato de se
considerar a democracia como valor universal. Não só a democracia, como a
própria noção de igualdade e liberdade, deve ser entendido historicamente. Do
ponto de vista de uma racionalidade dialética ver esses conceitos, ou qualquer
um outro, universalmente, é desconsiderar o próprio princípio da contradição,
base fundamental para se entender qualquer processo de transformação.
Assim como a democracia, a liberdade e
a igualdade se situa com caráter diferente a depender do momento histórico
preciso. E é necessário, portanto, conhecer temporalmente e espacialmente, as
condições concretas e objetivas que envolve um determinado fato, ou fenômeno,
para nele aplicar dialéticamente o sentido que lhe cabe cada uma dessas
categorias.
Assim o faz Engels, quando polemizando
com um desafeto de sua época, M. E. Duhring, critica a noção de igualdade que a
burguesia transmitia. “A idéia de igualdade, tanto sob a sua forma burguesa
como sob a sua forma proletária, é também um produto da história, cuja criação
supõe necessariamente relações históricas determinadas, que, por sua vez,
supõem uma longa história anterior. Ela é, portanto, tudo o que se quiser,
salvo uma verdade eterna”.[5] É
exatamente por isso, que a noção de democracia, igualdade e liberdade é
diferente em Cuba e nos Estados Unidos, assim como na Grécia antiga, berço da
democracia apesar de na época ser uma sociedade escravocrata; ou como certamente crêem
os !Kung San, povo que ainda vive primitivamente ao norte de Botswana, na
região do deserto de Kalahari, na África.
A leitura fossilizada, presente no
discurso de uma boa parcela da esquerda, descambou para uma defesa demagógica
do igualitarismo, e embora apregoem a defesa do socialismo, cujo Estado é
altamente centralizado e fundado no princípio da autoridade expressa no partido
organizado mediante o uso do “centralismo democrático”, desconsideram o
próprio princípio da autoridade.
Primeiro que, tanto numa sociedade em
que prevaleça a lógica “a cada um segundo o seu trabalho”, ou em outra em que
vigore “de cada um segundo as suas possibilidades”, não há, efetivamente
nenhuma condição de igualdade, até porque a própria finalidade
seria “a cada qual segundo as suas necessidades”. Segundo, porque autoridade pressupõe
subordinação, e em qualquer sociedade isso será uma condição sempre presente,
como o foi, em gradações diferenciadas, porque devem ser entendidas
historicamente, nas sociedades comunistas primitivas. O que há de se ver, no
entanto, é que qualquer grau de igualdade, ou desigualdade, presente em
sociedades onde se elimine, ou não tenham existido classes sociais, não
signifique uma exploração e dominação sobre os meios de sobrevivência dos
indivíduos, mas apenas uma relação social baseado no respeito recíproco, mesmo
considerando-se a existência de diferenciações em suas formas de existência.
Contra essa fraseologia se arremeteu
Lênin, em discurso contundente, combatendo aqueles que, após a
revolução soviética, e ainda em pleno processo de uma intensa guerra civil,
inclusive contra exércitos estrangeiros, atacavam o governo bolchevique
acusando-o de anti-democrata, e de acabar com as liberdades. É importante
compreendermos o que se passava historicamente na época em que Lênin pronuncia
esse discurso, para não cairmos no erro que criticamos sempre: do anacronismo. Mas a
essência de sua abordagem prende-se às concepções expostas antes de sua época,
por Marx e Engels.
Diz Lênin: “Qualquer pessoa que
tiver lido Marx - quem quer que tenha lido mesmo uma divulgação
popular de Marx - sabe que ele devotou a maior parte da sua vida, das
suas obras e a maior parte das suas investigações científicas, exatamente à
ridicularização da liberdade, igualdade, vontade da maioria e a todas as
espécies de Benthams que o descrevem, para provar que por detrás destas frases
se encontram os interesses da liberdade do proprietário, a liberdade do
Capital, para oprimir as massas trabalhadoras”.
Ainda no mesmo opúsculo ele prossegue,
agora referindo-se à igualdade: “Engels tem toda a razão quando afirma que o
conceito de igualdade é um preconceito estúpido e absurdo, separadamente da
abolição de classes. Alguns professores burgueses tentaram convencer-nos dum
conceito de igualdade pelo qual todos seriam iguais. Tentaram atribuir aos
socialistas este absurdo por eles inventados. Mas na sua
ignorância, não sabiam que os socialistas, e especialmente os fundadores do
moderno socialismo científico, Marx e Engels, tinham afirmado: a igualdade é
uma frase oca a não ser que por igualdade se entenda a abolição de classes”.[6]
Por que se teme tanto o plebiscito? |
O que podemos deduzir das questões
posta aqui, em citações que fariam enrubescer qualquer paladino da democracia,
da liberdade, da igualdade? Depende da leitura que se faça. Aí vai pela ótica,
evidentemente dominada pelo cérebro, que formula a leitura condicionada pelos
fatores ideológicos que instruíram, ou educaram, determinado indivíduo.
Concordando plenamente com Marx, quando ele diz que é o meio que determina a
consciência, e não o oposto. Portanto, a assimilação da “verdade” do que vem a
significar cada uma dessas categorias, está de acordo com as elaborações
político-ideológicas dominantes num determinado momento.
Não se pode esconder o fato de que
esses valores não estão disponíveis para dois terços das pessoas que vivem no
mundo, e atingi-los é somente possível a uma minoria. A consequência disso tem
sido passar do discurso da crítica para a aceitação da condição daquilo que se
criticava, porque diante da perspectiva de se atingir o poder ou ascender à
classe média e a elite dominante. Uma parte considerável da intelectualidade,
principalmente, seguiu também por esse caminho. Inclusive aqueles que se
apresentam com postura radical e discurso ultra-revolucionário, mas não se
consideram intelectuais, preferem ser "proletários" ilustrados.
Sustentam melhor assim o "dom de iludir".
Lembrando Lênin, assistimos também na
universidade uma repetição de frases “ocas”, onde discursos pretensamente
avançados iludem uma massa passiva com slogans de igualdade, e avançam
agressivamente com palavras de ordem que visam mexer com o emocional e com a
defesa corporativa, esvaziando-se do conteúdo a essência do que se deve
discutir. Criou-se na universidade também uma visão de “igualdade”, que ameaça
a autoridade que deve haver na relação professor-aluno. Uma relação, claro, que
deve ser fundamentada no respeito mútuo, mas que jamais deve deixar dúvidas
quanto a quem é o mestre e quem é o discípulo, quem é o emissor e quem é o
receptor e daí extrair o grau de responsabilidade e representatividade que deve
existir num centro de produção do saber. Pode-se combater o esvaziamento da
crítica, ou mesmo a incompetência, que porventura venha a existir, mas jamais
relegar a um igualitarismo estéril, o papel do professor na Universidade.
Mesmo que o discípulo venha futuramente
a superar o mestre (o que deve ser visto orgulhosamente), como eventualmente
ocorre, jamais se pode ver nessa relação um igualitarismo como se propõe os anti-autoritários.
Mas, como se pode ver pelas questões
postas anteriormente, essa não é uma interpretação baseada nas idéias de Marx.
Pode, sim, ser uma visão obtusa dos significados expressos nas obras de Marx e
Engels, um “marxismo” que o próprio Marx negara ver em suas obras quando
critica alguns ditos “marxistas” franceses de sua época. Aproxima-se mais de
uma visão cristã de mundo, não propriamente ingênua, mas eivada de hipocrisia.
Na universidade, como na sociedade,
vive-se da ilusão da liberdade, concedida dentro da lógica sistêmica. Para os
seus defensores, nunca se criou algo melhor, por pior que ela seja. É um falso
sofisma, pois sempre dentro dessa lógica, a minoria seguirá se impondo pelas
condições sociais. E, em alguns casos, como na universidade, não é só pelo erro
da escolha, pois se pode esperar mais capacidade crítica (embora isso não seja
necessariamente verdade), mas pela absoluta abstenção da maioria de participar
nos fóruns decisórios, deixando nas mãos de uma minoria sectária a condução de
seus destinos.
Qualquer que tenha sido esse caminho,
da democracia ou da tirania, tem beneficiado sempre uma minoria, não somente
pela escolha da maioria, mas principalmente sua omissão em momentos cruciais.
Mesmo que consideremos isso circunstâncias geradas pelos elementos
superestruturais que justificam uma alienação das massas. Mas, e na
universidade? Fica o enigma da esfinge, numa reflexão que deve ser entendida
como um desabafo diante de determinadas circunstâncias. Por isso esse é um
texto para ser decifrado, e ele será assim entendido. Claro que há um
simbolismo na escolha da frase de Lênin .
[2] Bobbio, N et alli. Dicionário
de Política, Vol. II. Brasília-DF: Editora Universidade de Brasília, 1992.
Págs. 951-952
[3] Engels, F. A Origem da
família, da propriedade privada e do Estado. 5ª edição. Rio
de Janeiro: Editora Civiização Brasileira, 1979. Pag. 195
[4] Temos exemplo de anos atrás
quando uma assembleia dos professores da UFG aprovou um indicativo de greve. A
maioria presente na Assembléia assim o decidiu, democraticamente. Ocorre que
não estavam presentes nem 30 professores, de um total de cerca de 1.500. Mesmo
que sejam 300, hoje corresponde a menos de 20% do total. Mas muitos defensores
desse processo não aceitam plebiscito, quando em tese se atende a um número
maior de professores com poder de decisão. Porque teme-se o plebiscito?
Parabéns, Romualdo! O artigo está bem amarrado, e, também, reflexivo. É preciso pensar melhor sobre o significado e importância da democracia na atualidade.
ResponderExcluirParabéns, Professor!
ResponderExcluirMuito bom
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