Durante quase duas décadas tenho me dedicado a estudar a Guerrilha do Araguaia, um dos movimentos de resistência à ditadura mais conhecido e emblemático do período. Iniciei minha pesquisa em 1992 e continuo até hoje envolvido nesse processo. Tenho dito que comecei pesquisando a história da Guerrilha do Araguaia e que hoje me sinto dentro dessa história.
Fui convidado a participar como observador das expedições do Grupo de Trabalho Tocantins(*), criado pelo Ministério da Defesa com a finalidade de cumprir a determinação judicial imposta pela juíza Solange Salgado, da 1ª Instância Judiciária Federal, no Distrito Federal, em ação proposta por familiares dos desaparecidos naquela guerrilha. Muitos dos quais comprovadamente executados após terem sido presos com vida. O objetivo é encontrar restos mortais dos militantes que se envolveram no movimento guerrilheiro, garantindo às suas famílias o direito ao sepultamento digno de seus corpos, bem como às informações das circunstâncias de suas mortes.
Mas, dez anos antes do começo da minha pesquisa, caravanas de familiares já haviam percorrido a região, com poucos recursos e condições materiais, em busca de informações que levassem ao paradeiro dos corpos dos guerrilheiros. Soube-se, a partir daí, além das informações documentadas, que diversos moradores da região, e não somente militantes do partido que organizou a guerrilha, o PCdoB, também estavam desaparecidos. Ou porque se tornaram, eles também, guerrilheiros, ou porque foram vítimas da brutalidade que se abateu sobre os moradores da região (sul do Pará e norte de Goiás, hoje Tocantins).
Ainda assim, dez anos depois, quando iniciei as entrevistas com moradores da região, pouco se divulgava em termos de documentos que comprovassem a existência de um movimento guerrilheiro naquela área. A não ser aqueles conseguidos sigilosamente, mas ainda aquém da importância que o movimento possuiu, e com conteúdo que não possibilitava identificar o grau de agressividade e de abusos cometidos, com prisões indiscriminadas de moradores, torturas, assassinatos e desaparecimento de corpos de militantes após serem executados friamente.
Soubemos também, por informações obtidas junto aos moradores, que frequentemente circulavam pela região militares disfarçados, ou expondo-se abertamente, de forma a intimidar os moradores e impedi-los de relatar os fatos que aconteceram e dos quais muitos foram vítimas com prisões e torturas físicas ou psicológicas.
Assim, além de impedir que familiares e pesquisadores tivessem acesso a fontes documentais que pudessem registrar a memória daquele movimento, utilizava-se do medo para impedir que através da história oral pudéssemos obter as informações necessárias daquela população que viveu dias angustiantes de violência e intimidação. Desse modo, era negado não somente aos personagens diretos as informações de suas ações e de suas vidas para conhecimento de seus familiares, como também se cerceava os moradores de resgatar a memória de suas vidas, forçando-os a uma amnésia torturante, pois imposta pelo medo.
Considero toda essa epopéia que tenho registrado, juntamente com outros pesquisadores, como um claro exemplo de que o controle das informações pessoais constitui-se num instrumento de poder antidemocrático, e que continua mantido apesar de já estar estabelecida a democracia. Está demonstrado que acima do Estado pairam ainda canais de ilegalidade onde se escondem personagens como os torturadores, que se livraram de punição, em função de uma autoanistia concedida pelo próprio regime militar.
Muito embora os canais democráticos funcionem e as instituições que se envolveram diretamente no processo repressivo, obviamente representadas por outros personagens, cumpram as determinações que as autoridades judiciárias estabelecem, ainda assim permanecem as dificuldades para se abrir todo o “baú” onde se escondem informações valiosas sobre aquelas pessoas que reagiram ao arbítrio e pagaram por isso com suas vidas.
Isso nos leva a pressupor que uma das garantias constitucionais mais importantes, assegurada também pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, o direito à informação pessoal, à verdade e, consequentemente, à memória, ainda continua a ser usada contra o próprio cidadão.
Principalmente nos dias atuais, quando somos muito mais facilmente monitorados por todos os mecanismos tecnológicos que garantem ao Estado o controle de nossas vidas. Portanto, ainda não temos acesso total às informações, como nos deveria ser de direito, apesar de todos os esforços envidados, destacando-se a Comissão Especial dos Familiares dos Desaparecidos Políticos, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e o Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas.
Repito aqui, e essa é a razão de postar esse artigo, uma opinião sobre o que foi dito em algumas exposições na mesa de debate do Seminário Internacional sobre Acesso à Informação, em que estive presente no final do ano passado, organizada pelo Arquivo Nacional, através do Projeto Memórias Reveladas.
Sou um historiador e não tenho medo de assumir, em absoluto, que o meu olhar é guiado pelos elementos que me conduziram ao longo de anos de militância política. Abdiquei, faz pouco tempo, de uma ativa militância partidária de três décadas. Mas não dos paradigmas que foram responsáveis por construir a minha visão de mundo, porque ela é fundamentada em valores de respeito à vida humana e à defesa de uma sociedade em que as pessoas sejam respeitadas não pelo que possuem em termos de riqueza material, porém pela sua condição de indivíduos que merecem igualitariamente ser tratados com dignidade.
Por isso, não me preocupo em ser julgado por falta de isenção, desde que dentro do meu critério de verdade, eu esteja me guiando por esses valores e, fundamentalmente, pela honestidade da análise dos fatos. Afirmo que não pode haver história isenta do olhar ideológico, e desconfio daquele historiador que vive a reafirmar a sua isenção enquanto pesquisador, pois isso é impossível. Sua vida está impregnada de valores culturais que conduzem a sua investigação e influenciam suas conclusões.
Sei que para nós, que fomos militantes destacados e sempre tivemos fortes vínculos partidários, é muito forte o estigma que nos acompanha. Mas preocupa-me o fato de alguns ex-militantes, no afã de se livrar dessa rotulação, ao tornaram-se intelectuais e membros da academia, procurar mostrar-se confiável aos críticos, assumindo, para isso, posições cada vez mais conservadoras e cometendo profundas injustiças e o maior erro que qualquer historiador pode cometer: o anacronismo. Suas autocríticas vêm eliminadas das condições que diferenciam cada época e não passam de afirmações que os possam tornar-se pares aceitos no universo de um sistema acadêmico cuja marca é o conservadorismo e a vaidade, embora com aparentes visões progressistas.
Como foi dito em outros debates do Seminário, a verdade jamais será única. Cada um, a depender do paradigma que seguir, terá uma visão sobre um determinado fato, e fará a sua análise escorada nesses valores. É claro que isso pode mudar ao longo dos anos, pois cada um de nós está sujeito a isso. Mas o que não se pode é pretender que, por ter sido “flexível” a essas mudanças e capaz de fazer “autocrítica”, cada um se julgue no direito de considerar ser a sua abordagem a mais isenta.
Considero um enorme equívoco que alguns historiadores, outrora militantes aguerridos e membros de organizações revolucionárias, caçados e perseguidos por um sistema ditatorial fortemente hierarquizado sob o absoluto controle das forças armadas, queiram agora fazer uma revisão historiográfica e questionarem o termo ditadura militar. Vivíamos, sim, uma ditadura militar, e não “cívico-militar”, como se pretende agora dizer os revisionistas, quase que se aproximando da expressão “ditabranda”, para diferenciá-la de outras que ocorreram na América Latina.
É claro que o absoluto controle de todo o aparato do Estado, principalmente aquele construído pela mente de seu ideólogo maior, Golbery do Couto e Silva, que dizia respeito à “ideologia da segurança nacional”, estava nas mãos dos militares. Tanto é que não permitiram que Pedro Aleixo, vice-presidente da República, assumisse a Presidência, quando Costa e Silva morreu, em 1969, com a aplicação do Ato Institucional nº 16 (AI-16). Mantiveram uma junta militar até a escolha do próximo militar-ditador.
O fato de muitos civis, políticos e empresários terem dado suporte à ditadura não os tornam condutores daquele movimento, muito embora tenham a mesma responsabilidade pelos desmandos cometidos e pelo financiamento a ações criminosas como na conhecida Operação Bandeirantes. Até porque seria inimaginável qualquer governo que não contasse com a presença civil.
Nos últimos anos isso tem vindo à tona, por meio do resgate da história de um período obscuro e, até mesmo porque muitos daqueles que serviram à estrutura criminosa que foi montada para silenciar os que divergiam, erguem-se das sombras e começam a contar parte da guerra suja travada nos porões. Pudemos ver isso no depoimento de um agente da ditadura, registrado no livro de Tais Morais, publicado pela Geração Editorial, “Sem Vestígios”.
São segredos revelados que amplificam nossa indignação pela crueldade dos fatos ali relatados, como no caso do esquartejamento do corpo do militante David Capistrano, dirigente do antigo Partido Comunista Brasileiro, que sequer defendia a luta armada como opção de combate ao regime. Ele relata também a operação macabra de retirada dos corpos de guerrilheiros, eliminados após serem presos, dos lugares em que foram abatidos para serem queimados e não deixarem vestígios, na Serra das Andorinhas.
Também é narrado por esse agente-torturador toda a operação que foi montada para prender parte da direção do PCdoB, bem como da previamente planejada execução de dois de seus principais dirigentes, Angelo Arroio (um dos comandantes da Guerrilha do Araguaia) e Pedro Pomar, no conhecido Massacre da Lapa. Sabe-se que um dos alvos principais, também a ser eliminado, era João Amazonas, por acaso substituto de Pomar em uma viagem à Albânia, que o livrou também de ser assassinado.
Da mesma forma pode-se ver em outro depoimento, registrado pelo repórter Roberto Cabrini, no programa Conexão Repórter, do SBT, em 30.03.2011, na semana que antecedeu o início da novela Amor e Revolução. Esses relatos, igualmente revoltantes, podem ser visto através do link, http://www.youtube.com/watch?v=6ExCqtqyQgA&playnext=1&list=PL7B3E2BD2321308A9.
Outras memórias que o Brasil precisa resgatar, e que está conseguindo, são aquelas que ficaram submetidas ao esquecimento forçado, a uma amnésia impositiva, como na situação vivida pelos camponeses do Araguaia. São as memórias de dezenas de milhares de pessoas que foram presas, torturadas e assassinadas por delitos de opinião, por divergirem politicamente, por defenderem alternativas políticas e sociais para o nosso país. Mas que a tortura tornou a própria lembrança desses fatos, em situações de horror psicológico, ansiedades e depressão.
Esse foi um período marcado pelos desmandos de uma ditadura militar, e de uma estrutura fundada na ideologia da Segurança Nacional, com mecanismos de repressão sob absoluto controle dos militares. Os civis que os serviam não eram os que davam a última palavra, e os que divergiam, como no caso do Governador de Goiás, Mauro Borges, que inicialmente apoiara o golpe, eram submetidos à perseguição e cassação de seus direitos políticos.
Muito embora tudo isso, vivemos obviamente nos dias atuais circunstâncias completamente distintas. As Forças Armadas submetem-se a um governo civil, com uma presidenta que esteve do lado dos que lutavam por liberdades políticas. A democracia capitalista funciona equilibradamente, com seus acertos e desvios de moral e de caráter. E quase todos os antigos militares, que comandaram aquele período e safaram-se de punições devido a auto-anistia, já não estão mais vivos. Outros, que exerceram funções nessa estrutura repressiva encontram-se na reserva das Forças Armadas, não exercem mais influências, apesar de algumas vivandeiras, como o deputado federal Jair Bolsonaro, darem voz ainda a seus farsescos últimos suspiros de uma época que merece sempre ser lembrada, para que jamais se repita.
(*) Agora, no Governo Dilma Russef, houve uma ampliação do grupo, com a incorporação do Ministério da Justiça e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e passou a ser denominado Grupo de Trabalho Araguaia.
(**) Esse artigo é uma adaptação da última parte de uma exposição feita por mim, no I SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE ACESSO À INFORMAÇÃO E DIREITOS HUMANOS, no Rio de Janeiro, em novembro de 2010, organizado pelo Arquivo Nacional.
É velho mestre a coisa sempre esteve "VERDE OLIVA" naquela região.
ResponderExcluirLeio neste momento as assassinas memórias de Julio Santana, narradas pelo compentennte Klester Cavalcanti em seu livro O NOME DA MORTE, uma história nua e crua de como se matava e esfolava os comunistas.
Todos nós somos parte deste história.
Meu abraço de sempre.
1- Sobre as memórias da época da ditadura a Argentina tem algo a nos ensinar. Pelas ruas de Buenos Aires e de Salta (capital do estado de Salta), por exemplo, monumentos se espalham pelas rus com nomes de desaparecidos, poemas de Neruda e outras lembranças dessa época,s em contar os julgamentos que ocorrem ainda hoje.
ResponderExcluir2-É engraçado ver edições do jornal O Estado de São Paulo, que mandou um enviado especial para Goiás para fazer reportagens "denunciando" "comunistas terroristas" no nosso estado, e meus colegas jornalistas ainda insistem em falar sobre isenção na profissão.
3-Quando leio textos sobre isso só me lembro dos tristes depoimentos dos participantes da Revolta de Trombas e Formoso....
Beijos Romuca
Gabi