24 de junho de 2013. Completaram-se 12 anos da morte de meu pai (2001). Foi em seu velório, entre meio à dor que eu sentia, que fiquei sabendo da morte de outro baiano ilustre, na mesma data. Este um conhecido cidadão do mundo: Milton Santos. Com esse artigo homenageio Milton Santos, por sua dimensão histórica-geográfica mundial, e por extensão, meu pai, cujo papel político se restringiu ao seu Estado e a sua sempre querida cidade natal, Alagoinhas, onde foi vereador por quatro mandatos(*).
MILTON SANTOS: DA BAHIA PARA O MUNDO
CIDADÃO DO MUNDO
Conheci Milton Santos, em 1996 no Simpósio realizado na USP em sua homenagem: “O mundo do cidadão - cidadão do mundo”. Tempo suficiente para aprender a respeitá-lo e admirá-lo, e a me tornar leitor ardoroso de seus textos e livros.
Também baiano, como ele, formado em História, com pós-graduação nessa mesma área, entrei na Universidade Federal de Goiás em um concurso realizado no curso de Geografia, em 1995 para ministrar aulas de Formação Econômica e Social, também dentro da minha área de formação. Ao final do primeiro ano eu tinha uma firme convicção da importância dessa disciplina, por ser ela fundamental para o entendimento da relação tempo-espaço. Afinal, nada se dá fora do tempo, nem ocorre no vazio, senão num determinado espaço. Além da fundamental compreensão de que nada acontece isoladamente, somente este ou aquele fato podendo ser explicado dentro de um processo que aponte as causas e nos dê a dimensão de um presente que nada mais é do que a somatória de tempos passados. A junção e conjunção de espaços que se transformam num acumulo incessante de novos objetos, gerados por outros, que, outrora novos, foram envelhecidos pelo tempo.
Milton Santos passou a ser um referencial para um redirecionamento das minhas dimensões intelectuais. Primeiro, por uma iniciativa própria, senti a necessidade de buscar nas leituras da Geografia a condição necessária para me dar a compreensão de que eu estava ali para ajudar na formação de Geógrafos. Nada mais justo, e coerente, que procurasse aliar os meus conhecimentos historiográficos, à noção e dimensão do pensar geográfico. Senão me perderia num emaranhado de conceitos e categorias, vendo-os de maneira formal, como se vê habitualmente no senso comum, e banalizando a importância do conhecimento geográfico para o entendimento das relações humanas. É preciso bem mais do que uma mera análise da superfície terrestre; dos cursos dos rios; dos afluentes das margens esquerdas e das margens direitas; da localização cartográfica; das capitais e de seus estados; dos tipos de solo e da qualidade da água. Questões importantíssimas para entender o todo que abrange o nosso planeta, mas insuficientes se desconsiderarmos o principal elemento de ligação: o ser humano, razão primeira e última da existência de todo conhecimento, pois é por ele que todo o saber é gerado.
GEOGRAFANDO O HUMANO
O viés humano da Geografia transportava-a, do sentido estrategicamente imposto por séculos, desde os seus primórdios, que visava facilitar (e guardar) a localização de fronteiras dos nascentes Estados absolutistas, ou desde já o desenvolvimento cartográfico para tal fim, objetivando encontrar mercadorias e mercados, para uma visão mais ampla e racional, no entendimento de que era preciso inseri-la como uma ciência humana.
O lugar, o território, o espaço, a paisagem, as cidades, o urbano e o rural; a cultura, as tradições, enfim a busca de conhecimentos não mecanicamente estabelecidos, mas numa interação dialética que aponta claramente as relações entre o planeta e a sociedade, visualizando as “heranças sociais materiais e o presente social”[1]. Sem se limitar, contudo, à simples constatação de uma determinada realidade, mas procurando soluções que dêem conta de resolver os problemas da imensa maioria da população.
A Geografia mudou, num percurso oposto àquele tomado pela História. Enquanto aquela buscava abranger o todo numa abordagem dialética, encontrando no marxismo os elementos basilares para o entendimento da racionalidade e das contradições que moviam as sociedades humanas, o conhecimento histórico tomava outro rumo, caracterizando-se pela fragmentação. A História fragmentara-se e aprofundara-se no localismo, no cotidiano e nas mentalidades, e à medida que aprofundava-se em suas especificidades, afastava-se do presente e da noção de totalidade, mesmo procurando evitar os riscos do anacronismo.
Apesar de Braudel, que soube trabalhar brilhantemente as noções de espaço e espacialidade, e via tempo-espaço como inseparável, o enfoque dialético que ligará os restos do passado à inexorabilidade das explicações do presente, transfere-se para a Geografia, aproximando-a cada vez mais da sociologia, da filosofia, da economia e da própria história.
E ninguém melhor do que Milton Santos soube compreender o momento da Geografia, direcionando seus olhares para o fazer, na maneira como o homem no presente constrói o seu futuro sobre os restos do passado. Vendo nas técnicas, e em seus usos, as respostas para o entendimento das complexas relações sociais, como “um dado fundamental da explicação histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos os lugares”.[2] Mas, mesmo com tais considerações, ele via a vida “não como um produto da técnica, mas da política, a ação que dá sentido à materialidade”[3]
Surpreendentemente, se considerarmos os direcionamentos dos fatos históricos das duas últimas décadas do Século XX, a produção intelectual do professor Milton Santos avançou na contramão de idéias hegemônicas que procuravam colocar-se como esclarecedoras e definidoras de um fatalismo, que nos impunha a crença em um fim do qual não poderíamos escapar. A “globalização” colocava-se como inevitável, e a sociedade futura como um deslumbramento da vitória do “livre-mercado” sobre o “leviatã”, inoperante máquina do Estado a entravar o progresso. Não somente o neoliberalismo despontava como o ápice das liberdades, como o pós-modernismo surgia para por fim à uma época que se caracterizou pela consolidação dos Estados-Nações e que alcançou seu auge, e também os limites de suas contradições, com o Welfare-State. A crise do socialismo dava um ar de déjà-vu, de estancamento de uma utopia cujo “fracasso” só confirmava a convicção de ser o capitalismo e a economia de livre-mercado o futuro incontestável da humanidade.
Não foi essa a análise que fez Milton Santos em 1993, momento máximo da euforia neoliberal, no 3° Simpósio Nacional de Geografia Urbana, realizada no Rio de Janeiro, quando apontava as principais tendências dos anos 90:
“Na hora atual, e para a maior parte da humanidade a globalização é sobretudo fábula e perversidade: fábula porque os gigantescos recursos de uma informação globalizada são utilizados mais para confundir do que para esclarecer: a transferência não passa de uma promessa. (...) Perversidade, porque as formas concretas dominantes de realização da globalidade são o vício, a violência, o empobrecimento material, cultural e moral, possibilitados pelo discurso e pela prática da competitividade em todos os níveis. O que se tem buscado não é a união, mas antes a unificação”.[4]
Contudo, apesar da acidez das suas críticas quanto ao processo da globalização, da destruição de valores e do encolhimento do indivíduo à superficialidade de suas relações, gerado pelo enorme poder da massificação midiática, Milton Santos apontava na contradição de ser este mundo três em um só, o elemento motivador da crença de que a globalização não passa de uma percepção enganosa onde se impõe a informação, alicerçada na produção de imagens e do imaginário. “O primeiro é o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização”[5].
Assim, direcionou seus últimos escritos na contraposição do discurso hegemônico, caracterizado como “Consenso de Washington”, e se tornou uma das vozes mais importantes na abordagem do processo que atravessa a humanidade nas últimas duas décadas do século passado. “Ao contrário do que se disse antes, a história não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. (...) O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes”.[6]
Acreditando na força do pobre e do lugar, Milton Santos enfatizava, utilizando-se de uma expressão da professora Maria Adélia de Souza, que “todos os lugares são virtualmente mundiais”,[7] o próprio sentido da globalidade corresponderia a uma maior individualidade, e nessa relação unicidade-totalidade acreditava que tornava-se necessário encontrar os novos significados do mundo atual redescobrindo o lugar.
Aos pobres ele concedia a primazia de situar-se num ponto de intersecção com o futuro. Acreditava que o distanciamento ao totalitarismo da racionalidade transformava as imagens do conforto, da modernidade tecnológica, em miragens para aqueles que por não estarem inseridos nessa aceleração contemporânea, nesse mundo da profusão de sempre novos objetos, eram por ele caracterizados como “homens lentos”. E por assim ser, por escaparem dessa ventura vedada aos ricos e às classes médias, é que os pobres podem esquadrinhar as cidades e ver na diversidade a necessidade de transformação.
FILOSÓFO DA GEOGRAFIA
“Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado com carência a satisfazer - carência de todos os tipos de consumo, consumo material e imaterial, também carência do consumo político, carência de participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo Mundo e percebidas no lugar”.[8]
Como afirmou o geógrafo e ex-presidente da SBPC, Aziz Ab’Saber, Milton Santos foi um filósofo da Geografia. Procurou incorporar a crítica aos seus estudos geográficos num crescente resgate da concepção humanista, fundamentada na dialética marxista e no existencialismo sartriano. E assim, ele se impôs perante a Geografia mundial, e no Brasil se tornou um dos mais citados intelectuais das três últimas décadas. Para confirmar a exceção, numa regra caracterizada pela formação cultural dominada por uma elite branca e “estrangeirizada”, a sua cor negra não foi barreira para que se consolidasse como uma das vozes altissonantes da universidade brasileira, e de nossa cultura de uma maneira geral. Autoridade que lhe permitia, inclusive, cobrar coerência de seus colegas de Academia, e a ser duro nas críticas à apatia em que vivia a universidade.
No seu último escrito, um artigo publicado pelo jornal Correio Braziliense, afirma que “por definição, vida intelectual e recusa a assumir idéias não combinam. Esse, aliás, é um traço distintivo entre os verdadeiros intelectuais e aqueles letrados que não precisam, não podem ou não querem mostrar, à luz do dia, o que pensam. (...) A apatia ainda está presente na maior parte do corpo professoral e estudantil, o que é sinal nada animador do estado de saúde cívico dessa camada social cuja primeira obrigação é constituir, como porta-voz, a vanguarda de uma atitude de inconformismo com os rumos atuais da vida pública”[9].
Milton Santos faleceu no mesmo dia que meu pai, Romualdo Pessoa Campos, também baiano, vereador por 16 anos pelo PTB, na cidade de Alagoinhas, e por várias vezes secretário da mesa diretora do legislativo daquela cidade, até ser preso em 1964 e ter desistido da política, tornando-se funcionário público do DNER até se aposentar. A altivez e o orgulho pelo seu trabalho alimentavam uma esperança de que o nosso país desse certo pelo esforço de cada um, como ele fazia.
24 de junho, dia de São João, tão lembrado pelos nordestinos. Um dia para ficar para sempre guardado na minha memória.
Um, cidadão do lugar, incorporado na força dos lentos, baiano do interior, embora quase anônimo me alimentou o orgulho de ser seu homônimo. O outro, também baiano, cidadão do mundo (embora ele não gostasse dessa expressão), esgrimindo na força de seus argumentos, de suas criações e elaborações intelectuais a esperança de um outro mundo, de uma outra globalização. E a morte, a igualá-los na eternidade do meu pensamento, na afinidade dos meus sonhos, na consolidação das minhas crenças, e na afirmação das certezas de que embora curta a nossa vida nessa imensidão de tempo que gesta e desenvolve a humanidade, vale a pena lutar, mesmo sendo ela, a morte, a única certeza do porvir. Mas ela não deve nos desanimar, e sim nos reconfortar, na medida em que escapemos da nossa individualidade e possamos transferir nossos sentimentos humanistas para a construção de uma utopia, sem a qual a nossa existência não teria sentido.
***
Quando escrevi esse artigo minha filha ainda estava viva. Em 2007 ela também se foi, para ficar para sempre na memória. Certamente a palavra que usei no parágrafo anterior – reconfortar - passou a ter um peso maior com a morte dela. Sigo tentando, mas é muito difícil, afinal, embora seja mais fácil nos conformarmos com a morte de nossos pais, pela ordem natural quando chegada a velhice - assim imaginamos – é diferente quando perdemos um filho ou uma filha. Mas, sim, a morte não pode desanimar aqueles que ainda não sucumbiram a ela e que carregam consigo a utopia de um outro mundo, mais justo e solidário. Apesar das evidências apontarem para o contrário, no coração da maioria prevalece esse sentimento que embalou a vida dos que aqui homenageamos. Inclusive minha filha, que como canta Gonzaguinha, carregava essa certeza na pureza de ser criança. A vida, ela segue, a não ser para aqueles que já passaram por ela e nos esperam em algum lugar.
(*) Este artigo foi escrito no mês de junho de 2001, duas semanas após a morte de meu pai e de Milton Santos, um ano de perdas pessoais e de abalos geopolíticos mundiais com o ataque terrorista ao World Trade Center. Foi publicado nesse mesmo ano no Jornal Opção, de Goiânia, no Jornal A Tarde, de Salvador em um suplemento cultural especial sobre Milton Santos. Depois inseri o texto, com alguns reparos no Boletim Goiano de Geografia, Vol. 21, n. 1. Em 2010 postei um resumo dele neste Blog. Agora resolvi publicá-lo na íntegra para lembrar os 10 anos da morte desses dois baianos que de maneiras diferentes foram personagens importantes em minha vida. Um me fez gente como sou, o outro me aproximou da Geografia para sempre.
(**) 24 de junho de 2013. Volto a publicar este artigo, doze anos depois da morte de meu pai, e de Milton Santos. O que está dito aí não pode ser apagado. Eu relembrarei sempre nesta data.
(**) 24 de junho de 2013. Volto a publicar este artigo, doze anos depois da morte de meu pai, e de Milton Santos. O que está dito aí não pode ser apagado. Eu relembrarei sempre nesta data.
[1] Santos, Milton. Território e Sociedade. São Paulo: Ed. Fund. Perseu Abramo, 2000. Pág. 26
[2] Santos, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994. Pág. 67
[3] Idem, Pág. 39
[4] Idem, Pág. 56
[5] Santos, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000. Pág. 18
[6] Idem, Pág. 172
[7] Santos, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Pág. 252
[8] Idem, Pág. 261
[9] Correio Braziliense, 03 de junho de 2001
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