segunda-feira, 20 de junho de 2011

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ – A EUROPA GRITA CONTRA O FMI, E NO BRASIL OS MOVIMENTOS RECLAMAM DIREITOS CIVIS


Estive, pela semana que passou, a observar com um olhar curioso as inversões sociais trazidas pelo século XXI. Lembro-me de quando passei a me envolver com o movimento social, através das entidades estudantis, no começo dos anos 1980. Por todas as duas décadas seguintes, quando mantive minha militância ativamente o Brasil e América Latina se encontravam em um momento de transição. Tanto por aqui, quanto em outros países a luta contra os regimes ditatoriais se dirigia para um desfecho favorável às pressões populares.
 As condições sociais nesses países eram as piores possíveis, talvez só possam ser comparadas à da maioria dos países africanos. Dívidas internas e externas absurdamente altas, desemprego elevado, inflação galopante, aumento crescente nas condições de miséria da população, repressão violenta aos opositores, e na contraposição à tudo isso, partidos de esquerda e movimentos sociais, quase todos eles dirigidos por uma militância ativa, envolvida diretamente com esses partidos.
O anti-imperialismo era uma marca em comum e o grito de guerra “Fora FMI” era entoado por praticamente todos os que se opunham à estrutura econômica que estrangulava a vida das pessoas e encurtavam os salários, que mal chegavam à metade do mês. Muito embora a guerra fria tivesse sido congelada a partir do final dos anos 80, como conseqüência da crise que afetou o bloco soviético e os antigos países socialistas, isso prevaleceu ainda pela última década do século passado com a ascensão do neoliberalismo.
A indignação tomou outro rumo, e o embate passou a se dar contra a globalização e o furacão liberal que forçou a abertura das fronteiras para o capital, reforçando o poder das grandes corporações em praticamente todo o mundo. Inclusive naquele outro mundo, outrora objeto de admiração da esquerda, que passou a se constituir em um ambiente extremamente disputado pelas empresas multinacionais. A chamada economia de mercado se impunha sobre a economia estatal e apresentava como sendo definitivo o admirável mundo capitalista. Tentavam vender a idéia de que o capitalismo seria a última etapa de desenvolvimento da humanidade.
No Brasil, em relação às liberdades democráticas a situação foi mudando mais lentamente do que a abertura das fronteiras para as mercadorias. Num primeiro momento toda uma luta de milhões de pessoas foi barrada por um poder parlamentar ainda conservador e suporte político do antigo regime militar. Mas as divisões existentes, conseqüência da própria crise que afetou o antigo regime possibilitou a mudança conservadora, embora importante historicamente, com a eleição de Tancredo Neves.
Mas as lutas sociais não diminuíram, muito pelo contrário, elas se intensificaram agora com mais liberdades e a legalização de várias entidades e partidos até então proibidos de funcionarem legalmente. Vivemos assim um final de século onde se manifestava intensamente a luta de classes e a ampliação na representação popular de parlamentares vinculados a esses movimentos e àqueles partidos de esquerda que estiveram à frente dessas organizações.
Isso tanto vale para o movimento estudantil, como para as lutas operárias e camponesas. Os estudantes puderam ter as suas representações legalizadas, os sindicatos se reproduziram rapidamente e criaram as Centrais Sindicais, e no campo a luta se intensificou agora com a entrada de mais uma entidade que amplificou as reivindicações dos trabalhadores, já fortalecidas com a CONTAG. Foi a vez de se destacar e crescer o Movimento dos Sem-Terra, entidade que passou a ter uma força que extrapolava as fronteiras e repercutia internacionalmente.
O final do século XX refletia, de certa maneira, os fracassos das políticas imperialistas para os países latino-americanos, e o século XXI se iniciou com um fato marcante de conseqüências econômicas e geopolíticas que viria a trazer mudanças significativas na nova ordem mundial. O atentado às torres gêmeas, o World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, alterou por completo o panorama político internacional. A partir desse acontecimento a política externa da maior potência econômica e militar do mundo focou suas atenções para a Ásia Central e Oriente Médio. Isso num momento em que na América Latina novos governos assumiam em oposição às políticas neoliberais.
Enquanto a Europa e Estados Unidos investiam grandes somas de dinheiro em sucessivas guerras contra um inimigo invisível, o terrorismo, a América Latina se recompunha com uma virada democrática e a ascensão de dirigentes vinculados aos partidos de esquerda, alguns com forte componente ideológico e batendo de frente com as políticas imperialistas.
Na somatória disso, prevaleceu o fortalecimento de políticas de Estados que buscavam descolar esses países das antigas influências estadunidenses. Ao mesmo tempo, eram incorporados às novas elites políticas antigos líderes e militantes dos partidos de esquerdas. Assim como lideranças populares e antigos sindicalistas assumiam ou a condição de dirigentes do Estado, como ministros, por exemplo, ou elegiam-se ao parlamento, seja como deputados ou senadores. Por todo o país isso se repetiu, invertendo a lógica do poder existente até então. As antigas esquerdas assumiam no começo do século XX a condução das políticas na maioria dos países latino-americanos.
No Brasil isso se deu com uma maior força e repercussão internacional, como conseqüência da eleição de um operário, antigo líder sindicalista e com um forte carisma no Brasil e fora dele: Luís Inácio Lula da Silva. O sucesso dos governos na aplicação de políticas públicas fortemente escoradas em investimentos do Estado coincidiu com uma crise econômica iniciada nos Estados Unidos e que afetou praticamente todos os países desenvolvidos.
A partir daí foi marcante a pujança do crescimento e desenvolvimento, na contramão do que acontecia com os países mais ricos. Altos investimentos em obras públicas, crédito disseminado para todas as camadas, principalmente para os mais pobres, desemprego em queda, auto-estima em elevação, e uma nova realidade que elevou o país a condição de novo emergente e de forte atrativo para o capital financeiro internacional.
Nessas condições, tendo as antigas lideranças agora a comanda o Estado, o movimento popular foi passando por transformações em sua forma de agir e reivindicar. Já não viam mais quem estava no governo como inimigo, mas vislumbravam o caminho da conciliação para verem atendidas antigas reivindicações. A maioria das centrais, embora mantendo suas bandeiras, comportavam-se de forma menos agressivas e buscando as negociações. E assim viam também suas principais reivindicações sendo atendidas e, consequentemente, arrefeciam o ímpeto da luta, que já não se dava mais pelo confronto, mas pela demonstração de força e mobilização para poder extrair do governo as conquistas necessárias.
Enfraquecidas, já que as principais reivindicações eram ou atendidas ou passavam por um processo de negociação, muitas vezes lentas e atendendo a estratégias para desmobilizar o movimento, as entidades estudantis foram gradativamente mudando de comportamento, e algumas de suas lideranças destacavam-se mais com o intuito de tornarem fortes candidatos no processo eleitoral. O parlamento passa a se constituir no palco principal dos embates, ou isso acontecia no âmbito das próprias disputas internas dos governos, seja municipal, estadual ou federal.
Paralelo  a isso, multiplicava-se por todo o país Organizações Não-Governamentais. Organizações sociais de direitos civis, chamadas de Terceiro Setor, porque completavam o papel que faziam o Estado e a iniciativa privada. Nessas organizações vários antigos militantes de esquerda e profissionais oriundos da Universidade, passaram a atuar seja com objetivo financeiro ou de desenvolver atividades de cunho social junto ás camadas mais pobres por todas as cidades brasileiras.
Essas organizações passaram não somente a se preocupar com questões sociais focadas na inclusão dessas pessoas, garantindo-lhes emprego e cidadania. Era também e principalmente isso inicialmente, mas na medida em que enfraquecia o movimento social, e os canais de negociação abriam-se mais facilmente, elas passaram praticamente a substituir as entidades e a disseminarem agora outras formas de lutas, extremamente diversificadas e que até a última década do século XX se concentravam mais nos países europeus e nos Estados Unidos. 
Lutas por direitos civis, pelas questões ambientais, contra os diversos tipos de preconceitos, pela emancipação das mulheres e inúmeros outros, passaram a ser prioridades na agenda desses movimentos, ao ponto de tanto alguns partidos de esquerda aderirem como prioridade, por exemplo à luta por moradia, e de organizações como CUT e MST abraçarem a causa ambientalista e a passar a identificar líderes sindicalistas rurais como ícones da luta ambiental.
Os movimentos que passam a ocupar as ruas são diversificados e alguns alegóricos, embora trazendo em seu bojo questões sociais sérias e complexas. 
A marcha da maconha, marcha das vadias, parada gay, movimentos religiosos contra aborto, movimento das mulheres pelo direito de decidir sobre seus corpos, Movimento dos atingidos por barragens, manifestações ecologistas e tantos outros movimentos potencializados agora pela difusão das redes sociais, transformaram por completo a maneira de se rebelar, se indignar e reivindicar direitos sociais e civis. 
Os demais, que viessem a repetir as tradicionais manifestações da década de 80 do século passado, não conseguem as mesmas mobilizações e, esvaziadas, perdem forças e poder de negociação.
Mudam-se as reivindicações, os objetivos e os agentes que se destacam como mobilizadores sociais. Assim como perdem os movimentos sociais o elã que os vinculavam de maneira mais efetiva aos trabalhadores e as camadas baixas da população, constituindo-se em entidades mais focadas em reivindicações voltadas para o atendimento dos interesses da classe média, e praticamente constituídas por pessoas oriundas dessa camada. Os mais pobres não deixam escapar as oportunidades abertas com a nova modalidade de organização, mas limitam-se a fazer parte de ONGs com atividades direcionadas ao atendimento de questões preocupadas com inclusão social, e de qualificarem-se ao mercado de trabalho.
Enquanto isso, ainda seguindo-se o rastro da crise econômica que estourou em 2008 nos Estados Unidos, tanto este país, quanto a Europa, passam a conviver com manifestações populares massivas, onde milhares de trabalhadores agora enfrentam o fantasma do desemprego e dos baixos salários. E, o que parecia improvável até a década passada, passam a levantar a bandeira de “Fora FMI”, algo comum por nossas bandas outrora. Isso porque a quebradeira nesses países força seus governos a buscar empréstimos no Fundo Monetário Internacional. Para concretizar esses empréstimos, a exemplo de como fazia por aqui, o FMI exige que os governos arrochem os trabalhadores, seja com desemprego ou com aumento de impostos, ampliando mais ainda a crise porque a situação deixa a população insegura e sem perspectiva futura.
Explodem em países como a Espanha, Grécia, Portugal, França, Irlanda, e outros, greves e manifestações que são reprimidas violentamente, ao estilo dos governos ditatoriais latinoamericanos. E por mais impossível que isso pudesse parecer há algum tempo atrás, o Brasil se inclui naqueles países que passam a dispor de dinheiro para emprestar a esses países via FMI.
Não bastasse isso, torna-se recorrente a disseminação de doenças que espalham-se em epidemias que acentuam os problemas sociais e geram um medo coletivo, afetando sobremaneira todo um comportamento altivo que sempre marcou a população européia, principalmente no pós segunda guerra mundial. Embora esse ainda seja também um dos problemas cruciais a ser enfrentado pelos países latino-americanos.
Invertem-se, assim, as características das lutas que atingem os países latinoamericanos e europeus, bem como as reivindicações. E, assim, nos encaminhamos para uma realidade que se aproxima mais daquilo que vigorou na Europa no final da década de XX, e que, embora enfraquecido na caracterização ideológica dos partidos, terminou por se constituir na construção das políticas que se implementaram aqui no Brasil, um misto de social-democracia e neoliberalismo.
Não há dúvidas que isso afetou os movimentos sociais, muito embora certamente esse tipo de afirmação venha a ser repelida com veemência por aqueles que ainda continuam erguendo suas bandeiras trabalhistas. Mas certamente o mais forte elemento a definir a maneira como se constitui a nossa sociedade, as classes sociais, e o embate travado entre elas pelo controle do poder, deixou de ser o motor a embalar a grande maioria das entidades e partidos.
Prevalece o pragmatismo,a busca por colocação nas estruturas do Estado, e o desfraldar de bandeiras fragmentárias e vinculadas a este ou aquele setor, isoladamente, quando muito por trás de seus discursos abrangendo a inclusão social, mas com poucos colocando em xeque as estruturas capitalistas, ou buscando identificar na origem de suas reivindicações, e que se constituem como problemas sociais, as contradições criadas e fomentadas pelo capitalismo.

Um comentário:

  1. Caro amigo, Romualdo
    Suas palavras constituem-se numa excelente crônica, verdadeiramente, política; e ainda sem perder a dimensão histórica da realidade!
    Em algum destes momentos, de idas e vindas, de lutas constantes, nos encontramos conforme as linhas pontilhadas e com muita precisão.
    As grandes mobilizações que cumpriram papel salutar na garantia de espaços democráticos, cederam lugar para uma multiplicidade de movimentos, e, que, mesmo sendo alguns peculiares, pela sua natureza e especificidade, não deixam de serem autênticos quanto à reivindicação de direitos, de tipo novo, até a pouco, “direitos achados”, e também são todas legitimas e merecem o acolhimento de todos que lutam por dias melhores.
    Penso que em vez de serem obstáculos, pelo contrário, apenas recolocam certas questões para a nossa reflexão; não importando muito se há resposta, clara e evidente. De qualquer forma podem ser tomadas como via aberta à interpretação e transformação das realidades; posto que, potencializam a geração e acumulação de experiências.
    Apenas um contraponto!
    Wilame

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