Foram
muitas, ao longo da história, as epidemias, ou ações de vírus e bactérias que
causaram temor em governantes e insegurança na população neste e em outros
séculos. Peste bubônica, cólera, varíola, sarampo, poliomielite, dengue, zika,
chicungunha etc, colocaram, e ainda colocam, à prova a capacidade dos estados
saberem lidar com essas doenças, em meio a circunstâncias que apontam em outra
direção, como decorrência do sucateamento do sistema de saúde e redução a cada
ano maior dos percentuais necessários para atender as necessidades mínimas do
combate não somente aos microrganismos causadores dessas doenças, mas as
condições nas quais eles encontram o campo ideal para agirem e se proliferarem.
Além de, aqui no Brasil, o estabelecimento de uma lei que criou um teto – limite
– aos gastos públicos, trava qualquer possibilidade de modernização e ampliação
da rede pública de saúde, como também da educação, das políticas sociais e do
desenvolvimento científico e tecnológico.
Por
outro lado, no intervalo de tempo de um século, outras formas de crises
colocaram a prova não somente o sistema, mas a capacidade de superar as
dificuldades das próprias pessoas. Se as crises epidêmicas deixaram rastros de
absolutos caos econômicos, outras decorrentes de desequilíbrios estruturais, ou
até mesmo das consequências daquelas, estremeceram os alicerces do capitalismo:
a grande depressão de 1929 e a crise dos sub-primes de 2008.
No
entanto, nos baseando no que ocorreu após a grande depressão, que se inicia no
final de 1929 e atravessa toda a década de 1930, até desembocar na segunda
guerra mundial, houve uma transformação radical na sociedade, um aumento
considerável do papel do Estado na solução dos problemas econômicos e sociais,
e da garantia de emprego para a população, bem como levou a mudança de hábitos,
nesse caso quebrado pelo advento da guerra, que pode também ser incluída dentre
as consequências dessa crise de proporções mundiais, mas cujos efeitos foram
mais fortes nos EUA e na Europa.
Embora
tenha havido um forte impacto nas estruturas do sistema capitalista, esse não
foi tão intenso a ponto de paralisar as estruturas produtivas como consequência
de uma imposição externa, aparentemente casual. Mas isso pode ser
cientificamente demonstrada em suas causas fundamentais, como sendo inerentes
ao próprio sistema, visto que isso decorre da forma como a sociedade está
organizada em grandes cidades, assim como pela destruição acelerada da
biodiversidade do planeta.
Tentemos
fazer uma comparação, com os devidos cuidados para não incorrermos em
anacronismos, entre a grande depressão, tendo como causa o excesso de produção
do sistema e a redução do consumo, sem, contudo, ter havido forçosamente uma
paralisação da economia, já que essa se deu na sequência da elevação produtiva;
com o que temos hoje, numa dimensão muito maior, já que a paralisia do processo
produtivo se deu forçosamente por meses, como necessidade para conter o poder
viral.
Nessas
circunstâncias, de uma absoluta impossibilidade das cadeias produtivas
funcionarem adequadamente, e uma semiparalisia no sistema afetando a quase
totalidade das empresas, o que se pode observar é um impacto muito mais forte
na estrutura do sistema capitalista em comparação com o que ocorreu na
depressão de 1929, ou mesmo na mais recente explosão de crise, em 2008, com a
quase quebra do sistema financeiro mundial.
Isso
poderia jogar por terra toda e qualquer iniciativa de gerir a economia com base
nas receitas neoliberais, pois só se poderia conter um caos de dimensão
planetária, com os estados investindo maciçamente na economia, fortalecendo as
empresas, dando suporte aos micro e pequenos empreendedores, e garantindo
fortes investimentos em infraestruturas por todo o país, como elemento gerador
de empregos, tal qual foi feito na grande depressão, seguindo-se as orientações
keynesianas.
Seria
preciso haver um retorno ao estado de bem estar social, desmontando por
completo todo esse aparato de reforma que pode levar a uma quase destruição do
Estado naquilo que o torna mais essencial, a sua importância nas políticas
sociais, principalmente com a necessidade de criação de uma renda mínima para
populações carentes, a ser mantidas pelo Estado. Muito embora o auxílio
emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional tenha aberto um caminho nessa
direção, criando um dilema a ser resolvido por um governo ultra direitista e
com uma política econômica radicalmente neoliberal.
O
isolamento social, o distanciamento das pessoas e o enclausuramento em
circunstâncias as mais diversas, tem causado fortes impactos, a depender da
condição social e da dimensão habitacional onde cada família vive. Certamente,
o pós-quarentena trará novos comportamentos sociais. Em primeiro lugar porque a
crise imporá uma necessidade do estabelecimento de relações mais solidárias, em
função do aumento da miséria e a disseminação da pobreza; em segundo lugar
porque esse distanciamento já está gerando diversas reflexões sobre as formas
como temos vivido em sociedade até então, com um distanciamento entre os
próximos, e uma proximidade entre os distantes. Será preciso repensar aquilo
que nos transformou enquanto sociedade com o advento de novas tecnologias e das
redes sociais, bem como dos mecanismos criados pela competição a qualquer custo
e a necessidade de se garantir o primeiro lugar como condição de se ver
inserido nos mecanismos inclusivos do sistema.
Precisamos
resgatar aquilo posto pelo geógrafo Milton Santos em uma de suas últimas obras,
e seguramente a de maior leitura: Por uma outra globalização. Não creio
que devamos culpar a globalização pela disseminação do vírus, até porque outros
vírus se disseminaram pelo mundo com alto grau de letalidade, embora não com a
velocidade deste. Claro que nosso estilo de vida, nos últimos anos se acentuou
muito fortemente pela forma como se deu a globalização, com o esvaziamento
acelerado do campo e o crescimento exponencial das cidades, bem como uma forte
destruição da nossa biodiversidade. Mas a globalização não é um sistema. Ela é
apenas uma forma pela qual o sistema ampliou seu poder de contaminação da
ganância, da usura, do acesso às novas tecnologias e das desigualdades sociais.
No entanto esses são elementos inerentes ao sistema capitalista, em sua forma
perversa, como descrito por Milton Santos como uma das etapas, ou seja, da
globalização como perversidade. (SANTOS, 2001)
Cumpre-nos
enfatizar o aspecto final de seu livro, quando ele defende ser possível uma
outra globalização, que possa primar pela solidariedade e pela necessidade de
as pessoas por todo o mundo se ajudarem mutuamente, de forma a reduzir as
desigualdades sociais. Porque não veremos, por mais que desejemos, o fim do
capitalismo como consequência da disseminação da Covid19, muito embora isso
amplie consideravelmente as suas contradições.
Ainda
teremos um processo lento e doloroso, de ampliação da crise, da miséria, do
aumento das desigualdades sociais, da violência, da perseguição aos que lutam
contra essas condições perversas, e o poder concentrado nas mãos dos
representantes das grandes corporações, principalmente as financeiras, que
podem sair dessa crise mais fortes e concentradas, na medida em que terão fortes
injeções de recursos financeiros por meio dos estados, como já está acontecendo e como aconteceu em
2008. Assim, suas garras tendem a se ampliar, através da aquisição de empresas
em estado falimentar, possibilitando as suas recuperações mediante a destruição de
empregos, como se deu no final da década de 1980 na Europa e nos EUA,
principalmente. Aqui no Brasil a reforma da legislação trabalhista já garante
aos empresários as condições para imprimirem regras mais flexíveis, já que as
garantias dos direitos dos trabalhadores foram fragilizadas, beneficiando as
empresas em detrimento da força de trabalho.
Mas,
será possível fazer com que os rumos sejam outros? A partir daqui o que nos
resta é deduzir, com base naquilo que nossa experiência pode permitir, e nos
conhecimentos históricos que nos remetem a momentos, senão iguais, mas muito
parecidos, cujas crises chegaram ao ápice, à exaustão da economia.
CRIAR NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÕES, À MARGEM DO ESTADO
Isso
inevitavelmente vai levar a uma mudança substantiva no poder político, tanto
maior quanto mais próximas estejam os processos eleitorais nos países.
Atentando-se para um elemento que pode ser motivador de reforçar governos de
viés autoritário, de extrema-direita, que em
essência representam a tentativa de implementação de projetos totalitários,
como aliás já ocorre em alguns países, por meios de medidas profundamente antidemocráticas.
Mas
o mundo pós-pandemia não será muito diferente do que já estava em curso. Uma
guinada conservadora, cujas concepções reacionárias e anti-democráticas se espalharam
por meio de manipulações, fake-news e o despertar de sentimentos por muito
tempo contidos. Frustrações, ressentimentos, decepções, fracassos, perda de perspectivas diante
de realidades sociais perversas, raiva pela política e desesperança.
O
desemprego tem aumentado, e necessitará da intervenção do Estado. Isso sendo
feito por um governo ultra conservador, tenderá a ampliar entre as camadas mais
pobres a ilusão do acesso a programas sociais que não virão acompanhados de
medidas que lhes garantam emprego e dignidade, mas que surtirá o efeito de
fortalecer um falso populismo, e poderá estender por mais um governo, políticas
antissociais, fortemente focadas no atendimento das benesses e privilégios das
classes dominantes, na destruição de diversos biomas e suas transformações em
pastos e agricultura, e submissão vergonhosa aos interesses dos EUA. Colocará também os segmentos progressistas num dilema, fruto das contradições, que é
ter que defender um programa social mais forte para as camadas mais baixas
economicamente da sociedade e ver o governo Bolsonaro se fortalecer com isso.
O
que vai estar em jogo nos próximos meses pós-quarentena será a capacidade da
sociedade não se abater com esse confinamento, e as organizações sociais e
associações comunitárias conseguirem disputar contra o poder discriminatório do
estado e das igrejas neopentecostais, o protagonismo no envolvimento das
populações periféricas, apontando para elas a necessidade de seguir por um
caminho de construção de relações solidárias e de comum união. Combatendo
fortemente a intolerância, o ódio e a mentira, elementos que tem causado
fraturas na sociedade e não nos permite proceder a debates produtivos sobre o
caminho que precisamos trilhar e a escolha do melhor modelo de desenvolvimento
que consiga eliminar vergonhosas desigualdades sociais.
Há
uma estratégia por trás da insistência em desconstruir a política e gerar
desesperanças nas pessoas. É uma arquitetura perversa e invertida, que aposta
na destruição das relações sociais, na dependência espiritual por meio do medo
e do controle de suas crenças, e, do ponto de vista das estruturas sociais o
foco, nitidamente é transformar a sociedade no caos, e de suas cinzas
implementar políticas completamente opostas àquelas que colocaram o Brasil no
topo das nações com mais avanços democráticos e sociais na primeira década do
século XX.
O
desafio é como resistir a isso, sem que os segmentos progressistas se coloquem
numa postura eterna de defesa, em função dos ataques perversos por meio de
desconstrução de reputações, de lawfares (o uso e manipulação de leis para perseguir opositores) e fake-news. É preciso reforçar os
alicerces dos movimentos sociais, das associações comunitárias e organizações não
governamentais. Mas acima de tudo, é preciso ter a clareza que a democracia
tradicional está sob ataques, não porque essa tenha solucionado os problemas
cruciais e as desigualdades criadas pelo sistema capitalista, mas porque nas
duas décadas do século XXI políticas de inclusões sociais se ampliaram,
garantiram inserções de segmentos por muito tempo oprimidos em patamares mais
elevados na estrutura social e empoderaram setores secularmente discriminados,
fazendo elevar suas vozes e os fazendo se assumirem e se destacarem,
sobrepondo-se às amarras impostas por uma sociedade hipócrita e conservadora.
E
se a velha democracia está sendo carcomida,
por dentro, pelos próprios beneficiários de suas artimanhas, é preciso
encontrar outras formas de se implementar as políticas e até mesmo de
questionar até que ponto nos levará a nossa paciência em achar que esse estado,
dominado por uma burguesia estúpida, banqueiros gananciosos, latifundiários
exterminadores da vida, e uma classe média alta empedernida, insensível e idiotizada, conseguirá
solucionar os problemas graves geradores de desigualdades sociais que pode nos levar para uma guerra civil planetária.
Talvez
não tenhamos tempo para esperar que esse estado, ilusoriamente, seja capaz de
atender aos nossos mais banais e simplórios desejos. E pensemos, o quanto
antes, ser melhor elaborarmos uma estratégia que bote abaixo essas estruturas,
o quanto mais rápido melhor, embora isso possa demorar décadas. A crise da
pandemia pode acelerar esse processo... ou não. Dependerá do caminho que o povo
seguirá. Em sendo assim, talvez seja melhor criar as condições para destruir
esse estado, e sobre seus escombros construir novas relações sociais de
produção, baseadas na cooperação, no comunitarismo e no socialismo.
Não
creio que as eleições possam ajudar, muito embora seja um caminho forçosamente
necessário. Mas as transformações sociais, se desejamos construir algo novo,
não deverão seguir na ilusão do caminho institucional. É preciso criar novas
formações, contrapondo-se às estruturas do poder político do estado capitalista,
dominado pelas corporações. Como numa espécie de ações em paralelo e
desobediências civis, por um lado; e por outro lado reforçando-se o caminho das
organizações populares, gerando uma dualidade de poderes, que possa assim
desorganizar as forças tradicionais conservadoras e se instaure poderes
comunitários locais. Isso é urgente, antes que as milícias assumam essa
condição de controle sobre as comunidades, alinhando-se, como já estão, com o
poder militar e uma estrutura de estado corrompida.
Os
desafios estão postos, já nos iludimos bastante, o mundo virtual se assume como
uma miragem que nos fornece o ópio. O mundo real é profundo, perverso e
desigual, e o fosso que se abre e se amplia, suga para o fundo das profundezas
a desesperança e o melhor que a juventude e os trabalhadores poderiam oferecer,
com consciência política, para construir caminhos por onde possamos
materializar as nossas utopias. Resgatemos as esperanças, e construamos nas
periferias das grandes e médias cidades, e no grande sertão interiorano,
organizações comunitárias que se estruturem à margem do Estado, com moedas
próprias e formas de estruturar o poder que tenha na organização do povo, e nos
conselhos comunitários, os pilares para a construção de um estado socialista.
Rebeldia
e ofensividade, não a defensiva eterna, é o que nos fará acreditar ser possível
construir um outro mundo. E, como dizia Lênin, “Sonhos, acreditemos neles, com
a certeza de realizarmos, escrupulosamente, as nossas fantasias”.
(*) Esse texto é uma versão atualizada e ampliada
de parte de um artigo publicado na Revista de Geografia da UEG, Eliseé:
Campos Filho, R. (2020). A peste, a gripe espanhola e a covid19 – geografizando as pandemias pelo mundo. Élisée - Revista De Geografia Da UEG, 9(1), e912014. Recuperado de https://www.revista.ueg.br/index.php/elisee/article/view/10301
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