terça-feira, 13 de outubro de 2020

O CORONAVÍRUS E O IMPACTO DA CRISE NAS CONTRADIÇÕES DO SISTEMA CAPITALISTA

Foram muitas, ao longo da história, as epidemias, ou ações de vírus e bactérias que causaram temor em governantes e insegurança na população neste e em outros séculos. Peste bubônica, cólera, varíola, sarampo, poliomielite, dengue, zika, chicungunha etc, colocaram, e ainda colocam, à prova a capacidade dos estados saberem lidar com essas doenças, em meio a circunstâncias que apontam em outra direção, como decorrência do sucateamento do sistema de saúde e redução a cada ano maior dos percentuais necessários para atender as necessidades mínimas do combate não somente aos microrganismos causadores dessas doenças, mas as condições nas quais eles encontram o campo ideal para agirem e se proliferarem. Além de, aqui no Brasil, o estabelecimento de uma lei que criou um teto – limite – aos gastos públicos, trava qualquer possibilidade de modernização e ampliação da rede pública de saúde, como também da educação, das políticas sociais e do desenvolvimento científico e tecnológico.

Por outro lado, no intervalo de tempo de um século, outras formas de crises colocaram a prova não somente o sistema, mas a capacidade de superar as dificuldades das próprias pessoas. Se as crises epidêmicas deixaram rastros de absolutos caos econômicos, outras decorrentes de desequilíbrios estruturais, ou até mesmo das consequências daquelas, estremeceram os alicerces do capitalismo: a grande depressão de 1929 e a crise dos sub-primes de 2008.

No entanto, nos baseando no que ocorreu após a grande depressão, que se inicia no final de 1929 e atravessa toda a década de 1930, até desembocar na segunda guerra mundial, houve uma transformação radical na sociedade, um aumento considerável do papel do Estado na solução dos problemas econômicos e sociais, e da garantia de emprego para a população, bem como levou a mudança de hábitos, nesse caso quebrado pelo advento da guerra, que pode também ser incluída dentre as consequências dessa crise de proporções mundiais, mas cujos efeitos foram mais fortes nos EUA e na Europa.

Embora tenha havido um forte impacto nas estruturas do sistema capitalista, esse não foi tão intenso a ponto de paralisar as estruturas produtivas como consequência de uma imposição externa, aparentemente casual. Mas isso pode ser cientificamente demonstrada em suas causas fundamentais, como sendo inerentes ao próprio sistema, visto que isso decorre da forma como a sociedade está organizada em grandes cidades, assim como pela destruição acelerada da biodiversidade do planeta.

Tentemos fazer uma comparação, com os devidos cuidados para não incorrermos em anacronismos, entre a grande depressão, tendo como causa o excesso de produção do sistema e a redução do consumo, sem, contudo, ter havido forçosamente uma paralisação da economia, já que essa se deu na sequência da elevação produtiva; com o que temos hoje, numa dimensão muito maior, já que a paralisia do processo produtivo se deu forçosamente por meses, como necessidade para conter o poder viral.

Nessas circunstâncias, de uma absoluta impossibilidade das cadeias produtivas funcionarem adequadamente, e uma semiparalisia no sistema afetando a quase totalidade das empresas, o que se pode observar é um impacto muito mais forte na estrutura do sistema capitalista em comparação com o que ocorreu na depressão de 1929, ou mesmo na mais recente explosão de crise, em 2008, com a quase quebra do sistema financeiro mundial.

Isso poderia jogar por terra toda e qualquer iniciativa de gerir a economia com base nas receitas neoliberais, pois só se poderia conter um caos de dimensão planetária, com os estados investindo maciçamente na economia, fortalecendo as empresas, dando suporte aos micro e pequenos empreendedores, e garantindo fortes investimentos em infraestruturas por todo o país, como elemento gerador de empregos, tal qual foi feito na grande depressão, seguindo-se as orientações keynesianas.

Seria preciso haver um retorno ao estado de bem estar social, desmontando por completo todo esse aparato de reforma que pode levar a uma quase destruição do Estado naquilo que o torna mais essencial, a sua importância nas políticas sociais, principalmente com a necessidade de criação de uma renda mínima para populações carentes, a ser mantidas pelo Estado. Muito embora o auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional tenha aberto um caminho nessa direção, criando um dilema a ser resolvido por um governo ultra direitista e com uma política econômica radicalmente neoliberal.

O isolamento social, o distanciamento das pessoas e o enclausuramento em circunstâncias as mais diversas, tem causado fortes impactos, a depender da condição social e da dimensão habitacional onde cada família vive. Certamente, o pós-quarentena trará novos comportamentos sociais. Em primeiro lugar porque a crise imporá uma necessidade do estabelecimento de relações mais solidárias, em função do aumento da miséria e a disseminação da pobreza; em segundo lugar porque esse distanciamento já está gerando diversas reflexões sobre as formas como temos vivido em sociedade até então, com um distanciamento entre os próximos, e uma proximidade entre os distantes. Será preciso repensar aquilo que nos transformou enquanto sociedade com o advento de novas tecnologias e das redes sociais, bem como dos mecanismos criados pela competição a qualquer custo e a necessidade de se garantir o primeiro lugar como condição de se ver inserido nos mecanismos inclusivos do sistema.

Precisamos resgatar aquilo posto pelo geógrafo Milton Santos em uma de suas últimas obras, e seguramente a de maior leitura: Por uma outra globalização. Não creio que devamos culpar a globalização pela disseminação do vírus, até porque outros vírus se disseminaram pelo mundo com alto grau de letalidade, embora não com a velocidade deste. Claro que nosso estilo de vida, nos últimos anos se acentuou muito fortemente pela forma como se deu a globalização, com o esvaziamento acelerado do campo e o crescimento exponencial das cidades, bem como uma forte destruição da nossa biodiversidade. Mas a globalização não é um sistema. Ela é apenas uma forma pela qual o sistema ampliou seu poder de contaminação da ganância, da usura, do acesso às novas tecnologias e das desigualdades sociais. No entanto esses são elementos inerentes ao sistema capitalista, em sua forma perversa, como descrito por Milton Santos como uma das etapas, ou seja, da globalização como perversidade. (SANTOS, 2001)

Cumpre-nos enfatizar o aspecto final de seu livro, quando ele defende ser possível uma outra globalização, que possa primar pela solidariedade e pela necessidade de as pessoas por todo o mundo se ajudarem mutuamente, de forma a reduzir as desigualdades sociais. Porque não veremos, por mais que desejemos, o fim do capitalismo como consequência da disseminação da Covid19, muito embora isso amplie consideravelmente as suas contradições.

Ainda teremos um processo lento e doloroso, de ampliação da crise, da miséria, do aumento das desigualdades sociais, da violência, da perseguição aos que lutam contra essas condições perversas, e o poder concentrado nas mãos dos representantes das grandes corporações, principalmente as financeiras, que podem sair dessa crise mais fortes e concentradas, na medida em que terão fortes injeções de recursos financeiros por meio dos estados, como já está acontecendo e como aconteceu em 2008. Assim, suas garras tendem a se ampliar, através da aquisição de empresas em estado falimentar, possibilitando as suas recuperações mediante a destruição de empregos, como se deu no final da década de 1980 na Europa e nos EUA, principalmente. Aqui no Brasil a reforma da legislação trabalhista já garante aos empresários as condições para imprimirem regras mais flexíveis, já que as garantias dos direitos dos trabalhadores foram fragilizadas, beneficiando as empresas em detrimento da força de trabalho.

Mas, será possível fazer com que os rumos sejam outros? A partir daqui o que nos resta é deduzir, com base naquilo que nossa experiência pode permitir, e nos conhecimentos históricos que nos remetem a momentos, senão iguais, mas muito parecidos, cujas crises chegaram ao ápice, à exaustão da economia.


CRIAR NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÕES, À MARGEM DO ESTADO


Isso inevitavelmente vai levar a uma mudança substantiva no poder político, tanto maior quanto mais próximas estejam os processos eleitorais nos países. Atentando-se para um elemento que pode ser motivador de reforçar governos de viés autoritário, de extrema-direita, que em essência representam a tentativa de implementação de projetos totalitários, como aliás já ocorre em alguns países, por meios de medidas profundamente antidemocráticas.

Mas o mundo pós-pandemia não será muito diferente do que já estava em curso. Uma guinada conservadora, cujas concepções reacionárias e anti-democráticas se espalharam por meio de manipulações, fake-news e o despertar de sentimentos por muito tempo contidos. Frustrações, ressentimentos, decepções, fracassos, perda de perspectivas diante de realidades sociais perversas, raiva pela política e desesperança.

O desemprego tem aumentado, e necessitará da intervenção do Estado. Isso sendo feito por um governo ultra conservador, tenderá a ampliar entre as camadas mais pobres a ilusão do acesso a programas sociais que não virão acompanhados de medidas que lhes garantam emprego e dignidade, mas que surtirá o efeito de fortalecer um falso populismo, e poderá estender por mais um governo, políticas antissociais, fortemente focadas no atendimento das benesses e privilégios das classes dominantes, na destruição de diversos biomas e suas transformações em pastos e agricultura, e submissão vergonhosa aos interesses dos EUA. Colocará também os segmentos progressistas num dilema, fruto das contradições, que é ter que defender um programa social mais forte para as camadas mais baixas economicamente da sociedade e ver o governo Bolsonaro se fortalecer com isso.

O que vai estar em jogo nos próximos meses pós-quarentena será a capacidade da sociedade não se abater com esse confinamento, e as organizações sociais e associações comunitárias conseguirem disputar contra o poder discriminatório do estado e das igrejas neopentecostais, o protagonismo no envolvimento das populações periféricas, apontando para elas a necessidade de seguir por um caminho de construção de relações solidárias e de comum união. Combatendo fortemente a intolerância, o ódio e a mentira, elementos que tem causado fraturas na sociedade e não nos permite proceder a debates produtivos sobre o caminho que precisamos trilhar e a escolha do melhor modelo de desenvolvimento que consiga eliminar vergonhosas desigualdades sociais. 

Há uma estratégia por trás da insistência em desconstruir a política e gerar desesperanças nas pessoas. É uma arquitetura perversa e invertida, que aposta na destruição das relações sociais, na dependência espiritual por meio do medo e do controle de suas crenças, e, do ponto de vista das estruturas sociais o foco, nitidamente é transformar a sociedade no caos, e de suas cinzas implementar políticas completamente opostas àquelas que colocaram o Brasil no topo das nações com mais avanços democráticos e sociais na primeira década do século XX.

O desafio é como resistir a isso, sem que os segmentos progressistas se coloquem numa postura eterna de defesa, em função dos ataques perversos por meio de desconstrução de reputações, de lawfares (o uso e manipulação de leis para perseguir opositores) e fake-news. É preciso reforçar os alicerces dos movimentos sociais, das associações comunitárias e organizações não governamentais. Mas acima de tudo, é preciso ter a clareza que a democracia tradicional está sob ataques, não porque essa tenha solucionado os problemas cruciais e as desigualdades criadas pelo sistema capitalista, mas porque nas duas décadas do século XXI políticas de inclusões sociais se ampliaram, garantiram inserções de segmentos por muito tempo oprimidos em patamares mais elevados na estrutura social e empoderaram setores secularmente discriminados, fazendo elevar suas vozes e os fazendo se assumirem e se destacarem, sobrepondo-se às amarras impostas por uma sociedade hipócrita e conservadora.

E se a velha democracia está sendo  carcomida, por dentro, pelos próprios beneficiários de suas artimanhas, é preciso encontrar outras formas de se implementar as políticas e até mesmo de questionar até que ponto nos levará a nossa paciência em achar que esse estado, dominado por uma burguesia estúpida, banqueiros gananciosos, latifundiários exterminadores da vida, e uma classe média alta empedernida, insensível e idiotizada, conseguirá solucionar os problemas graves geradores de desigualdades sociais que pode nos levar para uma guerra civil planetária. 

Talvez não tenhamos tempo para esperar que esse estado, ilusoriamente, seja capaz de atender aos nossos mais banais e simplórios desejos. E pensemos, o quanto antes, ser melhor elaborarmos uma estratégia que bote abaixo essas estruturas, o quanto mais rápido melhor, embora isso possa demorar décadas. A crise da pandemia pode acelerar esse processo... ou não. Dependerá do caminho que o povo seguirá. Em sendo assim, talvez seja melhor criar as condições para destruir esse estado, e sobre seus escombros construir novas relações sociais de produção, baseadas na cooperação, no comunitarismo e no socialismo. 

Não creio que as eleições possam ajudar, muito embora seja um caminho forçosamente necessário. Mas as transformações sociais, se desejamos construir algo novo, não deverão seguir na ilusão do caminho institucional. É preciso criar novas formações, contrapondo-se às estruturas do poder político do estado capitalista, dominado pelas corporações. Como numa espécie de ações em paralelo e desobediências civis, por um lado; e por outro lado reforçando-se o caminho das organizações populares, gerando uma dualidade de poderes, que possa assim desorganizar as forças tradicionais conservadoras e se instaure poderes comunitários locais. Isso é urgente, antes que as milícias assumam essa condição de controle sobre as comunidades, alinhando-se, como já estão, com o poder militar e uma estrutura de estado corrompida.

Os desafios estão postos, já nos iludimos bastante, o mundo virtual se assume como uma miragem que nos fornece o ópio. O mundo real é profundo, perverso e desigual, e o fosso que se abre e se amplia, suga para o fundo das profundezas a desesperança e o melhor que a juventude e os trabalhadores poderiam oferecer, com consciência política, para construir caminhos por onde possamos materializar as nossas utopias. Resgatemos as esperanças, e construamos nas periferias das grandes e médias cidades, e no grande sertão interiorano, organizações comunitárias que se estruturem à margem do Estado, com moedas próprias e formas de estruturar o poder que tenha na organização do povo, e nos conselhos comunitários, os pilares para a construção de um estado socialista.

Rebeldia e ofensividade, não a defensiva eterna, é o que nos fará acreditar ser possível construir um outro mundo. E, como dizia Lênin, “Sonhos, acreditemos neles, com a certeza de realizarmos, escrupulosamente, as nossas fantasias”.



(*) Esse texto é uma versão atualizada e ampliada de parte de um artigo publicado na Revista de Geografia da UEG, Eliseé:

Campos Filho, R. (2020). A peste, a gripe espanhola e a covid19 – geografizando as pandemias pelo mundo. Élisée - Revista De Geografia Da UEG9(1), e912014. Recuperado de https://www.revista.ueg.br/index.php/elisee/article/view/10301 

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