Outubro! Mais do que um mês, esse
nome simboliza uma virada na história. Embora pelo calendário antigo (Juliano)
– são treze dias de diferenças do atual (Gregoriano) –, neste mês ficou marcado
um dos mais importantes acontecimentos do Século XX, que alterou pelas décadas
seguintes a configuração geopolítica do mundo. De 26 de Outubro a 7 de novembro
de 1917. São treze dias de um calendário para outro. Treze dias que abalaram o mundo (claro que estou fazendo uma leitura temporal livre).
Impressionado com esse importante
fato histórico, e já envolvido com uma militância política no movimento
estudantil, eu não tive dúvidas na hora de escolher o nome da chapa com a qual
eu concorreria à presidência do Centro Acadêmico de História da UFG. O ano era
1982, e ainda vivíamos a ditadura militar, mas já com uma tênue abertura
política em função dos desgastes que enfraqueceram o governo dos militares.
Naquele ano aconteceram as primeiras eleições para governadores após o golpe
militar de 1964.
Mas independente desse
enfraquecimento, nós que estávamos na universidade, não temíamos assumir nossas
posições ideológicas. E no curso de História respirávamos rebeldias. Quase
unanimemente as lideranças do movimento estudantil se posicionavam à esquerda
no espectro geopolítico da guerra fria. E aqui no Brasil a ditadura, por sua
própria característica cerceadora das liberdades individuais, tornava essa
escolha óbvia para boa parte da juventude universitária. Principalmente nos
cursos de Ciências Humanas, embora não somente nestes.
Por isso a Revolução Russa era
impactante. Ela representava um anseio de liberdade, que vinha acompanhado da
crítica ao capitalismo, pelo seu caráter opressor e fomentador de perversas
desigualdades sociais.
Enfim, a paixão por esse fato
histórico impactante ocorrido em 1917, mas no mesmo mês em que ocorreriam as
eleições para o Centro Acadêmico, naquele momento 65 anos depois, nos levou a
escolha do nome da chapa: OUTUBRO! Não houve divergência, e também não teve
concorrência. A eleição ocorreu com chapa única, e o slogan, igualmente ousado,
mais do que nos inspirar refletia o nosso sentimento: “Outros Outubros virão!”
No entanto, tínhamos opiniões
diferentes quanto aos rumos das transformações geradas por aquela revolução,
que transformou a Rússia na União Soviética e colocava em prática as ideias e
teorias do socialismo, apresentadas pelas formulações de Marx, Engels e outros
que se destacaram na crítica ao capitalismo no século XIX.
A Revolução Russa nos unia enquanto
instrumento de transformação social, era a nossa inspiração, juntamente com a
Revolução Cubana, mas nos dividia quanto aos rumos e métodos adotados na
consolidação do estado socialista e de como ele influenciaria nos rumos da
revolução mundial. As divisões que viriam a ocorrer nos períodos que se
seguiram no processo de consolidação do governo revolucionário, se mantiveram
como uma chaga na esquerda, e se refletem nos dias atuais.
Era natural que
acontecessem as cisões. Somente mergulhando no entendimento do que era a
complexidade da Rússia naquela época para compreender por que. Não bastassem as
dificuldades naturais de um país com as dimensões russa se recompor de um
processo de deposição de governo por meio violento, de uma ação revolucionária;
de estar em meio a uma guerra mundial (1914-1918); e de logo em seguida
enfrentar uma guerra civil que durou cinco anos, a saúde de Vladimir Ilitch
Lênin não permitiu que ele liderasse por mais tempo o governo bolchevique
soviético. Com sua morte prematura (1924) diante da construção de um poder
socialista do qual foi o principal arquiteto, fez com que acentuasse as
divergências internas, antecipando uma disputa pelo controle da direção do
partido e do Poder na URSS.
As diferenças
que foram explicitadas a partir daí acompanharam o movimento marxista
internacional de forma indelével, e representam as principais razões porque é
tão difícil uma unificação dos grupos, organizações e partidos que se dizem
herdeiros do espólio leninista.
Mas não desejo
aqui fazer análise dessas divisões. Particularmente me situo em um desses lados
ideologicamente, mas compreendo que a radicalidade desse desentendimento e a
conjuntura política mundial dominada pela guerra fria, nos fez adotar um
comportamento refratário às críticas que se faziam ao burocratismo e excesso de
centralidade nas decisões, funcionando na lógica de que as direções não erram,
acentuando vaidades e enxergando inimigos em qualquer um que ousasse emitir
opiniões críticas ou contrárias àquelas encaminhadas pelos dirigentes. A
bipolaridade mundial no âmbito da geopolítica refletia-se internamente nos
partidos, que sofriam de outro tipo de bipolaridade e, mais grave, de uma esquizofrenia
crônica, que levou à perseguições e prisões de muitos daqueles que estiveram à
frente da revolução.
Embora eu
considere compreensível que o poder soviético devesse exigir bastante
disciplina, em função da realidade vivida, de extrema dificuldade de lidar com
a transição para o socialismo e tendo que enfrentar um cerco dos países
ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, então potência em ascensão,
seguramente houve excesso no tratamento de questões muito sensíveis a uma
população miserável como a russa daquele momento. É bem verdade que não haveria
tratamento mais ameno, caso houvesse sido consagrado o grupo que fazia oposição
àquele liderado por Stálin. A começar pelo comportamento mais agressivo de
Trotski na relação com o campesinato. A bem da verdade, o grupo estalinista era
considerado à direita de Lênin, principalmente por tomar atitudes mais diplomáticas
em determinadas situações. O exemplo claro disso é toda a polêmica em torno do
tratado de Brest-litovsk, cujo comportamento de Trotski levou a um acordo em
piores situações do que o inicialmente proposto e definido por Lênin. Enquanto
Stálin era mais pragmático, embora duro em suas decisões, Trotski adotava uma
postura mais sectária e refratária à determinadas alianças que pudessem ser
vistas como ideologicamente nocivas à consolidação das transformações
socialistas. Ademais, e esse era um aspecto crucial das divergências que
despontavam e que se seguiram, Stálin considerava a necessidade de fortalecer a
revolução e construir o socialismo na União Soviética, para só depois se buscar
ampliá-la para outros países. Trotsky, e os trotskystas, desejavam que a
revolução se espalhasse imediatamente, já que não acreditavam que fosse
possível construir o socialismo em um país isoladamente, e pregavam a revolução
mundial.
Essas
divergências se acentuariam com a morte de Trotski, no México, para onde foi
exilado após os chamados expurgos dos processos de Moscou, onde por determinação
do Comitê Central do PCUS, foram analisados casos em que certos comportamentos
e ações, inclusive de dirigentes, foram considerados traições. Seu assassinato
foi atribuído a um agente disfarçado a serviço da URSS. Embora outras versões
indiquem que se tratou de um crime passional, devido a Trotsky ter se tornado
amante da companheira do assassino. São versões que servem ideologicamente para
justificar o maniqueísmo, mas há evidências da radicalidade que tomou as
divergências existentes entre os dois grupos, e de que isso incomodava os
dirigentes soviéticos.
De certo é que
isso se espalhou por todos os cantos do mundo, e paralelo à guerra fria que
opunha os dois mundos, capitalismo x socialismo, acentuavam-se as divergências
entre as duas principais correntes que existiu no processo da revolução
soviética dentro do PCUS. Mas isso já vinha desde as divisões entre
mencheviques e bolcheviques no antigo Partido Operário Social Democrata Russo
(POSDR), afinal, Trotsky era uma liderança menchevique que aderiu aos
bolcheviques ainda antes do eclodir da revolução. Essas divergências nunca
foram sanadas, mas enquanto se deu o processo revolucionário estiveram juntas
na destruição da Rússia czarista e ambas foram responsáveis, portanto, por um
momento ímpar na história mundial, quando de forma organizada um ideal de sociedade
foi implantado, seguindo-se as teorizações feitas desde a elaboração do
Manifesto do Partido Comunista e da constituição da Associação Internacional
dos Trabalhadores, que foi o embrião da Internacional Comunista, e que teve
como protagonistas principais Karl Marx e Friederich Engels.
É absolutamente
impossível tentar entender a Revolução Russa, bem como todas as divergência que
se seguiram na construção do socialismo e da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, sem o entendimento da conjuntura política daquele momento, e das
transformações que aconteceram após esse fato e o fim da segunda guerra
mundial. Mas, inegavelmente, coube a Vladimir Ilyich Ulyanov, conhecido como
Lênin, não somente apontar o momento preciso do golpe fatal que derrubou o
governo dos Romanov, como também, logo depois de seu retorno à Rússia e
seu desembarque na Estação Finlândia, comandar e liderar a reação dos
operários, trabalhadores, soldados, camponeses na tomada dos poderes, ocupação
das fábricas e das terras. E foi exatamente na relação com os camponeses, e na
definição do cooperativismo e coletivismo, que a radicalidade levou a um
extremo que significou um confronto sangrento que se seguiu ao final da guerra
civil. Boa parte dessas dificuldades foram enfrentadas por Lênin, mas sua morte
prematura certamente influenciou na forma como os confrontos seguintes
aconteceram, bem como no tratamento com as divergências internas no PCUS.
A ascensão de
Stálin ao poder foi certamente polêmica. Suas características divergiam da
forma de agir de Leon Trotyski. Mas a ascensão do nazismo o transformou numa
liderança forte, numa condição necessária para conter os avanços da Alemanha e,
ao mesmo tempo, realizar todo um processo de transformação interna que
colocasse a URSS em condições de impedir que Hitler conseguisse o objetivo de
ocupar o território soviético. E isso aconteceu, fazendo com que os soviéticos,
muito embora registrassem as maiores perdas durante a guerra, em especial no
cerco à Stalingrado, fossem fundamentais na derrota do nazismo e na ocupação de
Berlim, pondo fim a segunda guerra mundial.
Pode-se dizer
então que o que tornou Stálin um dirigente forte, foi não tão somente seu
estilo e a rígida disciplina imposta, como também o medo da URSS sucumbir aos avanços
nazistas. O resultado desse embate, seguramente, fortaleceu o poder de Joseph
Stálin, como também elevou a União Soviética a segunda maior potência do
planeta, e iniciando um processo de rivalidade com os Estados Unidos, conhecido
como Guerra Fria, que durou do final da segunda guerra mundial até 1991,
momento em que a crise no países socialistas atingiu em cheio a potência
comunista, fragmentando o que foi um grande império, que exportava sua
revolução a outras partes do mundo, embora não tenha conseguido firmar para
todo o mundo o ideal do socialismo.
Após cem anos, o
legado da revolução soviética continua forte. Foi experimentado quase que em
circunstâncias parecidas, mas com proporções diferentes, em Cuba e na China. E,
vem a ser este país aquele que na mudança para o século XXI passou a se
constituir como o principal exemplo vivo daqueles ideais. De Mao Zedong a Xi
Jinping, embora mesclado com uma economia de mercado, o socialismo ao estilo
chinês se consolida, pelas mãos do Partido Comunista Chinês, e fortalece-se
enquanto uma referência para quem deseja identificar um modelo que possa ser
alternativa ao capitalismo.
A experiência
russa, inspirada na Revolução Francesa e na Comuna de Paris, seguirá espelhando
outros exemplos conquanto se acentue a crise que afeta rotineiramente o sistema
capitalista. Mas, como a ideologia dominante se impõe, aberta ou rasteiramente,
os desvios, perversidades e egoísmos que marcam o sistema hegemônico
mundialmente, não são identificados como problemas sistêmicos. E a cada momento
em que uma voz destoante à esquerda aponte esses desvios, imediatamente os
conservadores e reacionários buscam no medo identificar o socialismo e o
comunismo como responsáveis pelas desgraças do mundo. No entanto, é visível que
isso ocorre como uma óbvia contradição na forma de funcionamento do
capitalismo, baseado na ganância e na usura, e tendo no individualismo e no
consumismo o motor que nos encaminha em direção a um abismo.
Resta repetir as
frases que embalaram os movimentos que levaram até à revolução russa e ainda se
mantém atuais: “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos”, e... “Abomináveis na
grandeza,/Os reis da mina e da fornalha/Edificaram a riqueza/Sobre o suor de
quem trabalha!/Todo o produto de quem sua/A corja rica o recolheu./Querendo que
ela o restitua,/O povo só quer o que é seu!” (A Internacional. Por muito tempo o hino da União Soviética).
Outros Outubros
virão!
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