sexta-feira, 18 de novembro de 2016

APESAR DE TERMOS FEITO TUDO, TUDO O QUE FIZEMOS, AINDA SOMOS OS MESMOS E VIVEMOS COMO NOSSOS PAIS

“Eu não vivo do passado. O passado vive em mim”
Paulinho da Viola
Lembro-me de ter ouvido muito de meu pai uma frase que é lapidar, porque ela mostra o quanto vivemos no passado, presos a situações que se passaram em épocas diferentes, mas que insistimos em analisar com o olhar do presente. Ele costumava sempre fazer referência às minhas lutas, ou seja, à minha participação política, iniciando-se com a expressão, “no meu tempo...”.
Meu pai foi vereador na cidade de Alagoinhas (BA), teve uma participação política destacada naquela cidade. Antes de ser parlamentar era atuante no sindicato dos trabalhadores em curtumes. E, em abril de 1964, foi detido em nossa casa por soldados fortemente armados, preso e levado para uma prisão em Salvador onde ficou por cerca de 30 dias. Ele pouco nos falou sobre esse tempo em que ficou preso. Depois de solto, retornou à Alagoinhas, cassado, e abandonou a política. Embora acusado de “comunista”, ele passou ao largo dessa ideologia, e fazia parte do mesmo partido de João Goulart, o PTB de outrora, não esse de hoje.
Evidente que ele tinha uma experiência histórica, que nos orgulhava ao ouvi-lo falar a respeito. Mas que não guardava similaridade com a situação em que eu me encontrava, na década de 1980. Quase vinte anos e muita mudança na conjuntura nacional e internacional, além de alterações no comportamento da sociedade, indicava que os tempos eram diferentes. E de fato era. Vivíamos um período de intensa rebeldia, principalmente entre a juventude, e uma situação de fragilidade da ditadura militar. Era um período de exceção e de dificuldade para a atuação política e o ambiente era de crescimento das forças de esquerda e dos comunistas, embora em meio a uma divisão crescente dessas forças. O movimento estudantil reorganizava-se com muita força e participação, assim como as demais entidades sindicais e sociais de uma maneira geral. Não nos parecíamos em nada com a juventude da década de 1960, embora carregasse parte de insatisfações ainda comuns. Havia uma forte luta pelas liberdades individuais que se espalhara pelo mundo, em decorrência da reação à guerra do Vietnã e às ditaduras militares que cerceavam a liberdade em boa parte do continente americano e também na África. Vivíamos intensamente os tempos da guerra fria.
Outra diferença entre nós era do posicionamento político. Enquanto meu pai enveredou por um pensamento conservador, eu entrei e não saí do espectro da esquerda, e me mantive por todo esse tempo ligado à ideologia marxista, que se tornou base da construção de minhas ideias e formulações políticas.
Mais de vinte anos depois, me deparo com uma situação inversa, eu agora na condição de pai. Permanentemente sentido, pela perda de uma filha, logo aos dez anos de idade, e com um único filho que me restou. Ao contrário de meu pai que conviveu com seis, sendo cinco homens e uma mulher.
Mas que não se imagine isso ser suficiente para que a frase lapidar usada por meu pai, tivesse sido abandonada ou esquecida por mim. Eis que mesmo trilhando um caminho diferente de meu pai, de mentalidade mais progressista, me deparo cometendo o mesmo erro do anacronismo que sempre critiquei nele. Como tive uma atuação intensa no movimento estudantil, imagino sempre poder passar para o meu filho um pouco da minha experiência. Ora, mas já se passaram mais de 30 anos, e de um tempo acelerado e com transformações impressionantes na forma de se organizar e de viver em sociedade, principalmente devido ao forte aparato tecnológico que se desenvolveu de lá para os dias de hoje. Claro que isso não significa necessariamente que os tempos atuais sejam melhores, mas que inegavelmente é profundamente diferente.
“No meu tempo...”! Essa frase nos acompanha. Talvez porque nos espelhemos naquilo que fomos no passado, e porque desejamos que nossos filhos também nos vejam como referências. Quando temos boas referências a lhes passar. Ou porque, como diz Belchior em uma belíssima e clássica música que me aproprio aqui de uma frase que uso como título, “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Mas, tudo bem que de minha história de luta progressista eu pouco tenha pelo que me arrepender. E meu filho trilha um caminho, parecido com o meu, mas em uma situação bem distinta, quase que completamente diferente, pelo aspecto conjuntural. Não pode caber, nesse caso, a comparação nos exemplos com os fatos presentes. Porque o mundo mudou, e muda sempre. A juventude, que carrega fortemente esse sentimento de rebeldia e de mudança, guia-se por outros valores e comportamentos. E, portanto, suas lutas diferem substancialmente da nossa, principalmente na forma, embora nem tanto no conteúdo. Contudo, insistimos em olhar o presente com as experiências do passado.
Alto lá! Não se trata de negar o passado, nem a experiência vivida, o que é uma condição para evitarmos erros e nos mirar nos acertos. Mas, se a conjuntura é completamente diferente, se os valores da sociedade são outros, se a juventude age com um comportamento bem distinto daquele do passado, provavelmente nossa forma de agir há décadas não se enquadre na maneira como eles veem o mundo e com as influências que direcionam suas ações atualmente.
Foi preciso dias, ruminando entre conflitos internos e interpretações das lutas em curso que se chocam com a radicalidade com que essa juventude está agindo, para que meus olhos se abrissem: embora com mentalidade progressista, me prendo ainda, conforme a música do Belchior, em formas conservadoras que me moldaram no passado. Um passado progressista, mas ao trazê-lo para o presente, ele se torna conservador, pois eu pretendo negar a própria realidade atual.
Travo, portanto, uma desgastante luta intestina, angustiantemente dialética, em meu próprio âmago, para me desvencilhar do olhar do passado. Isso não é fácil. Porque a vida, naturalmente, vai nos tornando conservadores. Envelhecemos, e quanto mais perto do limite de nossas vidas, mais racionalizamos nossas atitudes e nos batemos de frente com comportamentos impulsivos. Ou seja, queremos sugerir racionalidade no presente, em atos e atitudes semelhantes às que nos formaram no passado. Alguns, não. Permanecem ainda com impulsos juvenis, mas creio que muitos desses não passaram pelo processo intensivo da luta estudantil, como eu passei por seis anos. E agem na meia idade como se fossem recompor tempos não vividos. Demoram a amadurecer.
Posto isso, no entanto, não posso abdicar de tecer considerações e formular uma análise sobre esse tempo, e não sobre o comportamento radicalizado de uma juventude em luta. Porque, nesse caso, carrego um acumulo de experiência do passado que me permite uma análise do presente pelas formas de movimento com que as estratégias são estabelecidas. Além do olhar da história, do historiador.
Não vou me escandalizar com a intolerância como se ela fosse fruto apenas deste tempo. Não, ela sempre esteve presente nas sociedades, e mesmo desde os tempos iniciais das civilizações, fundadas em valores religiosos que eram impostos por quem exercia o controle do poder político. Pelos grupos, ou classes que por seu tempo, tornavam-se dominantes.
Mas não há como negar, que na medida em que uma crise de proporções mundiais se acentua, e quando há um evidente declínio do modo de produção absolutamente hegemônico mundialmente, os valores construídos a partir dele, e que constrói toda uma superestrutura fundamentada nos valores por ele disseminados, e portanto determina a cultura de uma maneira geral, se chocam com contradições saídas de seu próprio interior. De uma crise sistêmica, que abala as estruturas da sociedade, passamos a crises de valores, e, principalmente, da aceitação dos valores dominantes incapazes de justificar a degradação da sociedade construída sobre eles. Logicamente os setores dominantes, e as camadas que se situam no topo da pirâmide social, tendem nessas crises a lutarem desesperadamente para assegurarem não perder o que construíram. E passam a exigir mais ações repressivas contra possíveis medidas que lhes causem temores.
Isso foge ao controle. A radicalização no combate ao que se possa sugerir de novidade para confrontar esses valores arcaicos e em crise é combatida ferrenhamente, e os que defendem ardorosamente seus privilégios construídos e tentado ser mantidos em meio aos escombros dessa sociedade, passam a agir com comportamentos intolerantes, que somente espalham mais ódio e destempero a uma situação de crise intensa.
Como lidar com esse tempo, de uma transição que não aponta em direção a nenhum novo sistema que possa substituir o capitalismo? Como entender as novas formas de atuação e manifestação da juventude, em alguns casos absolutamente refratária aos mecanismos tradicionais de organização política?
Como combater a intolerância que se dissemina aceleradamente e não somente destrói relações de amizades, como também implode as famílias a ponto de gerar tragédias de ódio inominável, carnal, um filicídio? O que faz o pai matar seu único filho e se suicidar em seguida, por alimentar um rancor de anos, mas explodido numa confrontação de escolhas de caminhos, de liberdade, de necessidade de se romper o cordão umbilical, algo comum a qualquer adolescente? E, neste caso, uma escolha que se choca com o estilo de vida usual permitido pelos valores do sistema. Um comportamento anarquista que deseja confrontar toda e qualquer autoridade e ser livre das amarras institucionais que nos obrigam a viver em “ordem”, e mirando no “progresso”.
A estupidez e a idiotização das pessoas é absolutamente visível em seus comportamentos, nas opiniões que compartilham por redes sociais que se tornaram propagadores de um ódio insano. Os ataques pessoais, ofensas, injúrias, racismos, homofobia, todos os tipos de preconceitos são destilados raivosamente, temendo a nós, historiadores, que algo semelhante aconteça como nos exemplos perversos do monstruoso genocídio de Ruanda e da guerra cruenta e intolerante ocorrida na região dos Balcãs, que fragmentou a antiga Iugoslávia.
Mas, finalizo me dirigindo aos que defendem outro mundo, marcado pela tolerância e o respeito à diversidade, às crenças e às opiniões. Um mundo onde as desigualdades sociais sejam reduzidas a um limite aceitável. Combater a intolerância, com um comportamento igualmente intolerante, trará pouco sucesso à causa de construção desse novo mundo. A radicalização usada por determinados grupos que se dispõe a ir à luta, mas desconhece os limites dos desejos dos outros, mesmo que esses outros possam vir a ser convencidos da importância de suas lutas, representa igualmente uma estupidez radical estéril. Não soma, não agrega pelo convencimento, e afasta pela rispidez das formas adotadas inconsequentemente. Se o que desejamos é justiça, ela jamais se fará com irracionalidade, pois a base para que a justiça prevaleça é a razão.
Por outro lado, a forma radical expressa na intolerância da aceitação do outro, desperta o outro extremo, que ao reagir com semelhante intolerância transforma a luta geral, numa luta específica, entre extremos, que só pode despertar comportamentos fascistas, ao se fechar em suas verdades, na defesa veemente de suas opiniões como definitivas, e na violência como forma de se impor e de se sagrar vencedor nessa luta. Mas essa pode ser muitas vezes uma vitória de Pirro, e aí não há como não olhar para o passado, pois tem sido sempre assim na história.
Mas, para além das elucubrações políticas e ideológicas que eu possa fazer, existe uma realidade que se consolida, não só no Brasil, como em boa parte do mundo desde que se iniciou este século. 1. A constituição de uma diversidade de movimentos que aglutinam seus componentes organizando-se horizontalmente; 2. a negação da política;  e, 3. a aversão aos partidos políticos e a quaisquer formas de organização que represente a luta pela tomada do poder.
O primeiro item advém de concepções do século XIX, pelo anarquismo, e mais recentemente tomando a forma de movimentos autogestionários, mas que combatem os mecanismos de controle do Estado e se opõem a todas formas repressivas. Combatem, portanto, as formas tradicionais, muito embora ajam também com comportamentos intolerantes, ao não definir objetivamente seu alvo principal e rejeitar outros pensamentos que possam somar no processo de desconstrução do tipo de sociedade por eles criticada. Temem ser engolidos na sequencia de construção de outras alternativas, que para eles não devem seguir nenhum modelo e se organizar horizontalmente. Mas a questão que fica é, como chegar a isso em meio a força de um Estado e de formas de controle consolidadas e difíceis de serem desestruturadas?
Os outros dois não são novidades, mas as formas geradas pelas situações causadas por essas orientações, em circunstâncias diversas, embora parecidas, culminaram nas primeiras décadas do século XX, em regimes totalitários, expressas principalmente no fortalecimento do fascismo, e de sua face mais cruel, o nazismo. O que significa que temos em pleno século XXI, e depois de terem sido combatidos por muitas décadas, pelos dois lados da guerra fria, numa situação de intensificação de uma grave crise econômica mundial, a volta daqueles elementos que jogaram a humanidade em uma guerra estúpida, movida pelo preconceito e intolerância.
Não tenho dúvidas que a maneira de lidar com uma crise que se dissemina por todos os poros da sociedade, e radicaliza todas as formas de luta e de combate, em meio a uma intolerância crescente, é usar de formas radicais de enfrentamento, mas procurando, de todas as formas, atrair para o lado da racionalidade, com a construção de um movimento que se oponha ardentemente à perversão dessa sociedade capitalista, aqueles que nos últimos anos foram seduzidos pela deformação da notícia, pela dissimulação política e pela inversão dos valores que sempre foram defendidos pelos setores progressistas da sociedade. É inadimissível que a radicalidade se volte na forma de “fogo amigo”, e o foco do combate seja desviado, acentuando uma divisão que, lamentavelmente, sempre esteve presente nesses setores.
A juventude tem suas lutas, radicais pela forma, mas também consciente pelos objetivos a serem atingidos. Mas há uma diversidade de atuações movidas por questões ideológicas sectárias, que muitas vezes levam a embates entre si, ao invés de concentrar forças no inimigo maior e mais forte, aqueles que usurparam o poder, disseminam ódio e alimentam as forças de um setor egoísta socialmente, que se aproxima dos jovens como nunca aconteceu.
Saber lidar com essa situação, podendo cada um defender suas posições, mas visando o objetivo comum, é condição sine qua non, para que um novo tipo de democracia possa ser construído, impedindo que a intolerância se dissemine mais do que já está acontecendo. 
Por meios ainda que indefinidos, a juventude de hoje estará construindo no presente o que será o seu momento de amadurecimento pelas décadas que virão. E quiçá isso se dê, futuramente, em uma sociedade menos desigual, mais racional e tolerante do que esta em que estamos vivendo. Mas, certamente, estará convivendo com o mesmo dilema que hoje vive a minha geração, e quem sabe ainda ouvindo a canção de Belchior. Se isso for certo, que cada um e cada uma saibam lidar com seus filhos, compreendendo o tempo deles, e não o seu.

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