“Eu não vivo do passado. O passado vive em mim”
Paulinho da
Viola
Lembro-me de ter ouvido muito de
meu pai uma frase que é lapidar, porque ela mostra o quanto vivemos no passado,
presos a situações que se passaram em épocas diferentes, mas que insistimos em
analisar com o olhar do presente. Ele costumava sempre fazer referência às
minhas lutas, ou seja, à minha participação política, iniciando-se com a
expressão, “no meu tempo...”.
Meu pai foi vereador na cidade de
Alagoinhas (BA), teve uma participação política destacada naquela cidade. Antes de
ser parlamentar era atuante no sindicato dos trabalhadores em curtumes. E, em
abril de 1964, foi detido em nossa casa por soldados fortemente armados, preso
e levado para uma prisão em Salvador onde ficou por cerca de 30 dias. Ele pouco
nos falou sobre esse tempo em que ficou preso. Depois de solto, retornou à
Alagoinhas, cassado, e abandonou a política. Embora acusado de “comunista”, ele
passou ao largo dessa ideologia, e fazia parte do mesmo partido de João Goulart,
o PTB de outrora, não esse de hoje.
Evidente que ele tinha uma experiência
histórica, que nos orgulhava ao ouvi-lo falar a respeito. Mas que não guardava
similaridade com a situação em que eu me encontrava, na década de 1980. Quase
vinte anos e muita mudança na conjuntura nacional e internacional, além de
alterações no comportamento da sociedade, indicava que os tempos eram
diferentes. E de fato era. Vivíamos um período de intensa rebeldia,
principalmente entre a juventude, e uma situação de fragilidade da ditadura
militar. Era um período de exceção e de dificuldade para a atuação política e o
ambiente era de crescimento das forças de esquerda e dos comunistas, embora em
meio a uma divisão crescente dessas forças. O movimento estudantil
reorganizava-se com muita força e participação, assim como as demais entidades
sindicais e sociais de uma maneira geral. Não nos parecíamos em nada com a
juventude da década de 1960, embora carregasse parte de insatisfações ainda
comuns. Havia uma forte luta pelas liberdades individuais que se espalhara pelo
mundo, em decorrência da reação à guerra do Vietnã e às ditaduras militares que
cerceavam a liberdade em boa parte do continente americano e também na África.
Vivíamos intensamente os tempos da guerra fria.
Outra diferença entre nós era do
posicionamento político. Enquanto meu pai enveredou por um pensamento
conservador, eu entrei e não saí do espectro da esquerda, e me mantive por todo
esse tempo ligado à ideologia marxista, que se tornou base da construção de
minhas ideias e formulações políticas.
Mais de vinte anos depois, me
deparo com uma situação inversa, eu agora na condição de pai. Permanentemente
sentido, pela perda de uma filha, logo aos dez anos de idade, e com um único
filho que me restou. Ao contrário de meu pai que conviveu com seis, sendo cinco
homens e uma mulher.
Mas que não se imagine isso ser
suficiente para que a frase lapidar usada por meu pai, tivesse sido abandonada
ou esquecida por mim. Eis que mesmo trilhando um caminho diferente de meu pai,
de mentalidade mais progressista, me deparo cometendo o mesmo erro do anacronismo
que sempre critiquei nele. Como tive uma atuação intensa no movimento
estudantil, imagino sempre poder passar para o meu filho um pouco da minha
experiência. Ora, mas já se passaram mais de 30 anos, e de um tempo acelerado e
com transformações impressionantes na forma de se organizar e de viver em
sociedade, principalmente devido ao forte aparato tecnológico que se
desenvolveu de lá para os dias de hoje. Claro que isso não significa
necessariamente que os tempos atuais sejam melhores, mas que inegavelmente é
profundamente diferente.
“No meu tempo...”! Essa frase nos
acompanha. Talvez porque nos espelhemos naquilo que fomos no passado, e porque
desejamos que nossos filhos também nos vejam como referências. Quando temos
boas referências a lhes passar. Ou porque, como diz Belchior em uma belíssima e
clássica música que me aproprio aqui de uma frase que uso como título, “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o
que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Mas, tudo bem que de minha história
de luta progressista eu pouco tenha pelo que me arrepender. E meu filho trilha
um caminho, parecido com o meu, mas em uma situação bem distinta, quase que
completamente diferente, pelo aspecto conjuntural. Não pode caber, nesse caso,
a comparação nos exemplos com os fatos presentes. Porque o mundo mudou, e muda
sempre. A juventude, que carrega fortemente esse sentimento de rebeldia e de
mudança, guia-se por outros valores e comportamentos. E, portanto, suas lutas
diferem substancialmente da nossa, principalmente na forma, embora nem tanto no
conteúdo. Contudo, insistimos em olhar o presente com as experiências do
passado.
Alto lá! Não se trata de negar o
passado, nem a experiência vivida, o que é uma condição para evitarmos erros e
nos mirar nos acertos. Mas, se a conjuntura é completamente diferente, se os
valores da sociedade são outros, se a juventude age com um comportamento bem
distinto daquele do passado, provavelmente nossa forma de agir há décadas não
se enquadre na maneira como eles veem o mundo e com as influências que
direcionam suas ações atualmente.
Foi preciso dias, ruminando entre
conflitos internos e interpretações das lutas em curso que se chocam com a
radicalidade com que essa juventude está agindo, para que meus olhos se abrissem:
embora com mentalidade progressista, me prendo ainda, conforme a música do
Belchior, em formas conservadoras que me moldaram no passado. Um passado
progressista, mas ao trazê-lo para o presente, ele se torna conservador, pois
eu pretendo negar a própria realidade atual.
Travo, portanto, uma desgastante
luta intestina, angustiantemente dialética, em meu próprio âmago, para me desvencilhar do olhar do passado.
Isso não é fácil. Porque a vida, naturalmente, vai nos tornando conservadores.
Envelhecemos, e quanto mais perto do limite de nossas vidas, mais
racionalizamos nossas atitudes e nos batemos de frente com comportamentos
impulsivos. Ou seja, queremos sugerir racionalidade no presente, em atos e
atitudes semelhantes às que nos formaram no passado. Alguns, não. Permanecem
ainda com impulsos juvenis, mas creio que muitos desses não passaram pelo
processo intensivo da luta estudantil, como eu passei por seis anos. E agem na
meia idade como se fossem recompor tempos não vividos. Demoram a amadurecer.
Posto isso, no entanto, não posso
abdicar de tecer considerações e formular uma análise sobre esse tempo, e não
sobre o comportamento radicalizado de uma juventude em luta. Porque, nesse
caso, carrego um acumulo de experiência do passado que me permite uma análise
do presente pelas formas de movimento com que as estratégias são estabelecidas.
Além do olhar da história, do historiador.
Não vou me escandalizar com a
intolerância como se ela fosse fruto apenas deste tempo. Não, ela sempre esteve
presente nas sociedades, e mesmo desde os tempos iniciais das civilizações,
fundadas em valores religiosos que eram impostos por quem exercia o controle do
poder político. Pelos grupos, ou classes que por seu tempo, tornavam-se
dominantes.
Mas não há como negar, que na medida
em que uma crise de proporções mundiais se acentua, e quando há um evidente declínio
do modo de produção absolutamente hegemônico mundialmente, os valores
construídos a partir dele, e que constrói toda uma superestrutura fundamentada
nos valores por ele disseminados, e portanto determina a cultura de uma maneira
geral, se chocam com contradições saídas de seu próprio interior. De uma crise
sistêmica, que abala as estruturas da sociedade, passamos a crises de valores,
e, principalmente, da aceitação dos valores dominantes incapazes de justificar
a degradação da sociedade construída sobre eles. Logicamente os setores
dominantes, e as camadas que se situam no topo da pirâmide social, tendem
nessas crises a lutarem desesperadamente para assegurarem não perder o que
construíram. E passam a exigir mais ações repressivas contra possíveis medidas
que lhes causem temores.
Isso foge ao controle. A
radicalização no combate ao que se possa sugerir de novidade para confrontar
esses valores arcaicos e em crise é combatida ferrenhamente, e os que defendem
ardorosamente seus privilégios construídos e tentado ser mantidos em meio aos
escombros dessa sociedade, passam a agir com comportamentos intolerantes, que
somente espalham mais ódio e destempero a uma situação de crise intensa.
Como lidar com esse tempo, de uma
transição que não aponta em direção a nenhum novo sistema que possa substituir
o capitalismo? Como entender as novas formas de atuação e manifestação da
juventude, em alguns casos absolutamente refratária aos mecanismos tradicionais
de organização política?
Como combater a intolerância que se
dissemina aceleradamente e não somente destrói relações de amizades, como
também implode as famílias a ponto de gerar tragédias de ódio inominável,
carnal, um filicídio? O que faz o pai matar seu único filho e se suicidar em
seguida, por alimentar um rancor de anos, mas explodido numa confrontação de
escolhas de caminhos, de liberdade, de necessidade de se romper o cordão
umbilical, algo comum a qualquer adolescente? E, neste caso, uma escolha que se
choca com o estilo de vida usual permitido pelos valores do sistema. Um
comportamento anarquista que deseja confrontar toda e qualquer autoridade e ser
livre das amarras institucionais que nos obrigam a viver em “ordem”, e mirando
no “progresso”.
A estupidez e a idiotização das
pessoas é absolutamente visível em seus comportamentos, nas opiniões que
compartilham por redes sociais que se tornaram propagadores de um ódio insano.
Os ataques pessoais, ofensas, injúrias, racismos, homofobia, todos os tipos de
preconceitos são destilados raivosamente, temendo a nós, historiadores, que
algo semelhante aconteça como nos exemplos perversos do monstruoso genocídio de
Ruanda e da guerra cruenta e intolerante ocorrida na região dos Balcãs, que
fragmentou a antiga Iugoslávia.
Mas, finalizo me dirigindo aos que
defendem outro mundo, marcado pela tolerância e o respeito à diversidade, às
crenças e às opiniões. Um mundo onde as desigualdades sociais sejam reduzidas a
um limite aceitável. Combater a intolerância, com um comportamento igualmente
intolerante, trará pouco sucesso à causa de construção desse novo mundo. A
radicalização usada por determinados grupos que se dispõe a ir à luta, mas
desconhece os limites dos desejos dos outros, mesmo que esses outros possam vir
a ser convencidos da importância de suas lutas, representa igualmente uma
estupidez radical estéril. Não soma, não agrega pelo convencimento, e afasta
pela rispidez das formas adotadas inconsequentemente. Se o que desejamos é
justiça, ela jamais se fará com irracionalidade, pois a base para que a justiça
prevaleça é a razão.
Por outro lado, a forma radical
expressa na intolerância da aceitação do outro, desperta o outro extremo, que
ao reagir com semelhante intolerância transforma a luta geral, numa luta
específica, entre extremos, que só pode despertar comportamentos fascistas, ao
se fechar em suas verdades, na defesa veemente de suas opiniões como
definitivas, e na violência como forma de se impor e de se sagrar vencedor
nessa luta. Mas essa pode ser muitas vezes uma vitória de Pirro, e aí não há
como não olhar para o passado, pois tem sido sempre assim na história.
Mas, para além das elucubrações
políticas e ideológicas que eu possa fazer, existe uma realidade que se consolida, não só no Brasil, como em boa parte do mundo desde que se
iniciou este século. 1. A constituição de uma diversidade de movimentos que aglutinam seus componentes organizando-se horizontalmente; 2. a negação da política; e, 3. a aversão aos partidos políticos e a quaisquer formas de
organização que represente a luta pela tomada do poder.
O primeiro item advém de concepções
do século XIX, pelo anarquismo, e mais recentemente tomando a forma de
movimentos autogestionários, mas que combatem os mecanismos de controle do
Estado e se opõem a todas formas repressivas. Combatem, portanto, as formas tradicionais,
muito embora ajam também com comportamentos intolerantes, ao não definir
objetivamente seu alvo principal e rejeitar outros pensamentos que possam somar
no processo de desconstrução do tipo de sociedade por eles criticada. Temem ser
engolidos na sequencia de construção de outras alternativas, que para eles não
devem seguir nenhum modelo e se organizar horizontalmente. Mas a questão que
fica é, como chegar a isso em meio a força de um Estado e de formas de controle
consolidadas e difíceis de serem desestruturadas?
Os outros dois não são novidades,
mas as formas geradas pelas situações causadas por essas orientações, em
circunstâncias diversas, embora parecidas, culminaram nas primeiras décadas do
século XX, em regimes totalitários, expressas principalmente no fortalecimento
do fascismo, e de sua face mais cruel, o nazismo. O que significa que temos em
pleno século XXI, e depois de terem sido combatidos por muitas décadas, pelos
dois lados da guerra fria, numa situação de intensificação de uma grave crise
econômica mundial, a volta daqueles elementos que jogaram a humanidade em uma
guerra estúpida, movida pelo preconceito e intolerância.
Não tenho dúvidas que a maneira de
lidar com uma crise que se dissemina por todos os poros da sociedade, e radicaliza
todas as formas de luta e de combate, em meio a uma intolerância crescente, é
usar de formas radicais de enfrentamento, mas procurando, de todas as formas,
atrair para o lado da racionalidade, com a construção de um movimento que se
oponha ardentemente à perversão dessa sociedade capitalista, aqueles que nos
últimos anos foram seduzidos pela deformação da notícia, pela dissimulação
política e pela inversão dos valores que sempre foram defendidos pelos setores
progressistas da sociedade. É inadimissível que a radicalidade se volte na
forma de “fogo amigo”, e o foco do combate seja desviado, acentuando uma
divisão que, lamentavelmente, sempre esteve presente nesses setores.
A juventude tem suas lutas,
radicais pela forma, mas também consciente pelos objetivos a serem atingidos. Mas
há uma diversidade de atuações movidas por questões ideológicas sectárias, que
muitas vezes levam a embates entre si, ao invés de concentrar forças no inimigo
maior e mais forte, aqueles que usurparam o poder, disseminam ódio e alimentam
as forças de um setor egoísta socialmente, que se aproxima dos jovens como
nunca aconteceu.
Saber lidar com essa situação,
podendo cada um defender suas posições, mas visando o objetivo comum, é
condição sine qua non, para que um
novo tipo de democracia possa ser construído, impedindo que a intolerância se
dissemine mais do que já está acontecendo.
Por meios ainda que indefinidos, a
juventude de hoje estará construindo no presente o que será o seu momento de
amadurecimento pelas décadas que virão. E quiçá isso se dê, futuramente, em uma
sociedade menos desigual, mais racional e tolerante do que esta em que estamos
vivendo. Mas, certamente, estará convivendo com o mesmo dilema que hoje vive a
minha geração, e quem sabe ainda ouvindo a canção de Belchior. Se isso for
certo, que cada um e cada uma saibam lidar com seus filhos, compreendendo o
tempo deles, e não o seu.
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