segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

GUERRA TOTAL – ENTRE ALEPPO E MOSUL, A VERDADE DISSIPA-SE EM MEIO ÀS FUMAÇAS DOS BOMBARDEIOS

Allepo, Síria - Numa guerra fomentada pelo Ocidente (leia-se EUA), a grande mídia mostra a destruição e imagens de crianças e mulheres atingidas pelos bombardeios. A guerra é cruel, perversa. Mas a manipulação da informação que circula pelo mundo é revoltante para quem acompanha essas histórias. Os que reagem ao cerco quase final, e fatal, à cidade são chamados de “Rebeldes”, em luta contra o “ditador” Bashar Al-Assad. Mas nada se diz da euforia que tomou conta de muitos moradores com a ocupação da cidade pelas tropas sírias, apoiadas pela Rússia e pelo Irã.
Mosul, Iraque - Em outra guerra (ou quase que a mesma), consequência da insanidade ocidental (leia-se EUA e aliados), o que vemos são imagens de combates, a partir da ação de soldados iraquianos e curdos, com apoio dos Estados Unidos. Aqui, os que reagem ao cerco, também quase fatal, e final, são chamados de “Terroristas”, e a retomada da cidade significa uma vitória da liberdade. Neste caso, as notícias são de que as pessoas que vivem na cidade são transformadas em escudos humanos.
Aleppo, antes e depois da
guerra.1
Ésquilo, dramaturno grego que viveu no seculo V, antes da guerra cristã, tem uma frase que lhe é atribuída, repetida sempre que eclode uma guerra: “Numa guerra a primeira vítima é a verdade”. Isso se aplica hoje não só à guerra, por uma mídia que desinforma e faz da mentira um instrumento de controle e de manipulação permanente.
Em Aleppo ou em Mosul a realidade é fruto da disputa política. Da grande política, do controle pelo poder hegemônico em regiões estratégicas do mundo. São guerras fomentadas por Estados-Nação e corporações que disputam riquezas e territórios, e as vidas humanas não são objetos de preocupação quando elas são estimuladas e financiadas, instigando grupos radicais para desestabilizar governos. Ao final, para direcionar a opinião pública, imagens são distorcidas e a verdade omitida ou alterada, escondendo-se as reais razões da destruição de países e das centenas de milhares de mortes que se espalham em meios aos escombros e afetam, numa característica da guerra moderna, principalmente a população civil.
Militantes do Estado Islâmico
preparam-se para o cerco em Mosul
Um combate travado nas cidades inevitavelmente leva a destruição. A guerra de guerrilhas, rua por rua, torna absolutamente sangrento o combate, onde os grupos que resistem e controlam territórios tomados do poder do Estado, usam de artifícios táticos e protegem-se em meio a casas ocupadas, fazendo da população espécie de escudos de proteção. A ausência de acordo para cessar os combates, visto que a parte fragilizada na refrega não se entrega, leva a que isso chegue ao limite da violência, de maneira implacável. A população que não consegue sair da zona de guerra, ou porque apoia os combatentes, ou porque são reféns e a condição da própria segurança desses, é atingida de forma bárbara, notadamente as crianças.
Pessoas comemoram a retomada de
Aleppo
As imagens do conflito são utilizadas como arma de propaganda, e as crianças passam a fazer parte de um jogo de desinformação visando desgastar o lado que momentaneamente está saindo-se vitorioso.
Em Mosul ou em Aleppo a crueldade faz parte da radicalidade gerada pelo conflito. Representa a derrota da política, chegada a um ponto extremo, onde as forças antagônicas desejam assumir controle com objetivo de controlar o poder. Por um lado a manutenção desse poder nas mãos de um mesmo grupo por muitas décadas, de outro uma insurgência insuflada por interesses ocidentais, visando o domínio de uma região estratégica e, ao mesmo tempo, impor derrota à Rússia, há décadas aliada do governo sírio, onde existe a única base militar que esse país detém com acesso ao mar Mediterrâneo.
Fila de ônibus aguardam para retirar
civis de Aleppo
A existência de interesses por trás de quem controla a informação, os oligopólios que transmitem suas “verdades”, através de notícias e imagens manipuladas, termina por consolidar versões que não representam, necessariamente, a origem dos fatos, nem mesmo a própria realidade deles. Até porque, se for à origem, ver-se-á que toda a situação de caos existente no Oriente Médio, com a destruição de diversos países (Líbia, Síria, Iraque, Iêmen...), praticamente com alguns entregues ao domínio de milícias que receberam o apoio para destituir governos, e que atualmente são caracterizadas como terroristas, são decorrentes de ações inescrupulosas que desdenham de resultados perversos para as pessoas que ficam em meio a essas disputas, pagando com suas vidas a obsessão de governos ocidentais que visam controlar esses países e suas riquezas petrolíferas. O resultado dessa perversão é o caos, a fragmentação de estados, a migração massiva e o genocídio de populações.
Atentado em 2012 ao consulado dos EUA
A guerra é consequência da incapacidade de se resolver problemas políticos por meio de acordos e tratados ou porque não há interesses nisso, já que os objetivos são geopolíticos e incompatíveis entre os Estados em disputa. Nas situações em curso, que se estendem por mais de uma década, desde que os EUA iniciaram sua “guerra ao terror”, a tentativa claramente analisada em obras portentosas que devem ser lidas com atenção, escritas por Moniz Bandeira e Jeremy Scahill,[1] dentre tantos, visava destruir governos incômodos a esses país e seus aliados. As consequências tem sido funestas, absolutamente marcadas pela insensatez, que, aliás, levou à queda da ex-Secretária de Estado do governo estadunidense, Hilary Clinton, responsabilizada por boa parte dessas ações desastrosas, bem como da morte do embaixador daquele país na Líbia (retratado com os formatos tradicionais de Hollywood, no filme “13 horas: os soldados secretos de Benghazi”). Seguramente isso foi também determinante para sua derrota nas últimas eleições, superada por um falastrão, sem nenhuma presença na política até então, o ultraconservador Donald Trump.
Soldados iraquianos no cerco à Mosul
Não há o que defender numa guerra. A própria tensão que ela cria brutaliza seus participantes, e os transformam em máquinas de matar. Poucos conseguem agir de forma racional, mas depende muito do tempo em que permanecerá no front de batalha. Em um caso e no outro, certamente ações irracionais, crimes de guerras e descontrole, ocorrem frequentemente. Seguramente alguns atos heroicos podem ser destacados. Mas é preciso conhecer primeiro o que está por trás dessa guerra, depois as dificuldades em se estabelecer acordos de paz quando há interesses muito grandes a insuflar o conflito. E não se pode jamais esquecer quais foram as verdadeiras razões e em que condições muitas dessas guerras tiveram início. Isso é uma condição sine qua non, para entendermos porque se tornam tão difícil os acertos finais para botar fim aos combates.
Tropas Sírias avançando sobre Aleppo
Por fim, todo o desequilíbrio que têm afetado o Oriente Médio decorre de uma estratégia definida para derrubar os governos de diversos países na região. A política de regime change, implementada pelos EUA, com o intuito de desestabilizar econômica ou politicamente esses países, cujos governantes já não atendiam mais a seus interesses hegemônicos, cujos resultados levaram equivocadamente a ser denominada “primavera árabe”, representou uma tentativa de alteração da forma de agir, não mais com intervenções militares, mas desestabilizando os países, financiando e armando grupos oponentes, não se importando com as consequências disso. Al Qaeda, Al Shaabab, Al Nusra, ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante), Boko Haram, surgiram direta ou indiretamente como consequência desse tipo de estratégia, ou de erros graves cometidos por tropas ocidentais ao tentarem agir unilateralmente sobre conflitos locais.
Rebeldes sírios se protegem dos ataques
em Aleppo
A guerra da Síria tornou-se bastante emblemática, porque desde o início o governo de Bashar Al-Assad contou com o apoio da Rússia. Agindo em duas frentes que lhe contrapunha, o presidente Putin desfechou golpes diretos e ousados, na Ucrânia e na Síria. Em uma, intervindo por meio de grupos pró-Rússia e assumindo controle da Criméia, bloqueando os objetivos da OTAN/EUA de assumirem o controle total daquele país e isolarem a Rússia. Em outra, no caso mais emblemático que era a Síria, assumindo com força o papel de protagonista no combate mais eficaz contra o Estado Islâmico, chegando à beira de um conflito com a Turquia, cujo governo de Erdogan fazia jogo duplo, inclusive comprando petróleo desse grupo.
Tropas iraquianas preparam o cerco
à Mosul
Na impossibilidade de acordo, tentado por diversas vezes por iniciativa do presidente russo, prevaleceu, como sempre nesses casos, a guerra total. Primeiramente os alvos foram os combatentes do Estado Islâmico. Atacados pelo alto com bombardeios russos e por terra pela ação de tropas iranianas, do Hesbolah e dos curdos. Depois, os rebeldes, aliados do ocidente foram encurralados na cidade de Allepo, dispostos a resistirem rua por rua, da mesma foram que o ISIS jurou também fazer na cidade de Mosul, cujo desfecho final ainda não aconteceu.
O resultado não poderia ser pior para a população civil. A cidade de Aleppo, completamente destruída, neste momento em que escrevo, está praticamente tomada pelas tropas pró-Síria, que retoma assim o controle. Os acordos finais são para garantir a retirada dos combatentes rebeldes e de parte da população que desejar lhes acompanhar. De uma cidade com um dos maiores índices de desenvolvimento humano na região, assim como acontecia em parte da Líbia, e de uma população de mais de dois milhões de habitantes, hoje o que restam são escombros por toda a parte. A insanidade da guerra, os sujos interesses que a movem, resulta em destruição e mortes. A cidade será reconstruída, e beneficiará os lados vencedores, cujas corporações estarão incorporadas no objetivo de a reconstruírem, e lucrarem com isso. Já as vidas perdidas, essas não retornarão, assim como boa parte daqueles que optaram por sair da cidade e atravessarem o mediterrâneo em direção à Europa, por enquanto segura.
Assassinato do embaixador russo
na Turquia
Enfim, houve intencionalidade em toda essa loucura. Ao fim, para completar a gravidade do conflito, que, apesar do cerco à Mosul e da tomada de Aleppo pelo governo Sírio, não significa que está acabando, chega a notícia, quando finalizo este artigo, do assassinato do embaixador russo, Andrei Karlov, na Turquia. Tudo indica que em vingança á ação em Aleppo. O atentado teria sido praticado por um membro da polícia turca, que foi morto logo em seguida. São situações que não tem fim, foram criadas com objetivos geopolíticos, e tornarão ainda o mundo bastante inseguro. As reações a mais esse atentado sinalizam para a radicalização e o espectro de guerra total tende a se espalhar por diversas direções.




[1] BANDEIRA, Luiz Alberto. A Segunda Guerra Fria. Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013
BANDEIRA, Luiz Alberto. A Desordem mundial. O espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
SCAHILL, Jeremy. As Guerras sujas. O mundo é um campo de batalha. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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