“A desgraça deste mundo reside no fato de ser muito mais fácil abandonar
os bons hábitos do que os maus”.
William Maugham
O livro “A Servidão Humana”, um
clássico da literatura mundial, foi lançado há quase exatos cem anos, em 1915,
e o seu autor Wiliam Somerset Maugham, vivia também, pessoalmente, frente a
dilemas que ainda nos dias de hoje são corriqueiros. Assumir a sua
homossexualidade. Mas o conteúdo dessa obra-prima não está centrada nisso, mas
em um forte questionamento sobre as escolhas feitas pelo indivíduo, diante dos
problemas que a vida lhe apresenta. O amor, a família, o destino, a riqueza, a
morte, as deficiências físicas e morais. E os desejos e angústias que permeiam
as nossas decisões, fundamentais para definir nossos destinos. Era o retrato do
ser humano em uma época marcada por transformações cruciais. O início da
segunda guerra mundial impunha ao mundo novas realidades, marcadas pela
brutalidade da guerra, e pelo embate ideológico que redefiniria o mundo. Mas, ainda
se discutia sentimentos como bondade, paixão e amor, com sensibilidade, muito
embora a hipocrisia, traço de caráter coletivo da sociedade, já se manifestasse
em atos e comportamentos.
Cem anos depois, o que me proponho
aqui é discutir outro tipo de servidão, que tem definido comportamentos,
hábitos e vícios, gerados por uma impressionante dependência tecnológica em um
novo tipo de sociedade, onde nos tornamos consumistas compulsivos, e nos
consumimos pelo grau de escravidão que nos impõem os objetos cada vez mais
sofisticados que nos cercam.
Servidão e escravidão podem
carregar elementos conceituais diferentes, quando analisamos as estruturas
sociais ao longo de séculos de transformações da história humana. Mas, são
palavras que podem tornar-se sinônimas quando procuramos estabelecer as
relações construídas pelo sistema capitalista e o grau de dependência criada entre
os indivíduos e as mercadorias.
Esse fenômeno foi estudado e
identificado por Karl Marx já no século XIX. Segundo ele, nas relações sociais
que são estabelecidas na sociedade capitalista o indivíduo ao consumir uma
mercadoria desconhece, em absoluto, todo o processo de produção, no qual está embutida
a exploração da força de trabalho, principal elemento a acarretar a acumulação
de riquezas nas mãos dos poucos que controlam os meios de produção.
As mercadorias foram adquirindo, ao
longo da consolidação do sistema capitalista, por sua lógica entranhada, de
garantir por ela os lucros aos comerciantes e à burguesia, o caráter de um
fetiche. Por um lado, à medida em que cada vez mais ela cria uma vida própria,
deixando de ser adquirida simplesmente porque advinda de uma necessidade,
tornando-se um objeto de desejo irrefreável pelo qual os indivíduos se tornam
dependentes; e por outro lado porque nesse processo perde-se a percepção de que
ela é fruto da exploração do trabalho alheio, e por ele se garante o lucro, e o
seu valor passa a extrapolar sua significância real, adquirindo um valor
artificial ao sabor das manipulações criadas pelo mercado, deixando de ser
vista como algo criado pelo trabalho humano e pelo qual devesse ser medido.
Por esse processo, a vontade do ser
humano sucumbe ao que Marx denominou como o “fetichismo da mercadoria”, invertendo-se
a ordem natural das coisas, com as pessoas sendo subsumidas nessa lógica
sistêmica e aceitando serem dominadas pelos objetos. Perde-se, pela dependência
criada em relação às coisas, a capacidade de refletir criticamente sobre o processo
de exploração na produção da mercadoria e substitui a necessidade real, pelo
desejo de consumir, afetando duramente a capacidade do ser humano de controlar
de forma consciente a maneira como se dá o processo da produção.
Dessa forma o dilema se nos
apresenta como no enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”[1].
Na incapacidade do ser humano decifrar todo o processo produtivo, responsável
pela ampliação desmedida de mercadorias, e a consequente destruição da
natureza, torna-se impossível realizar seus desejos objetivado na frase que já
se tornou muito mais o foco de marketing do que de realizações efetivas para
sua concretização: o desenvolvimento sustentável.
Essa dependência, contudo, assume
nos dias atuais (muito embora perpassando isso por épocas passadas desde o
surgimento do capitalismo) um estágio preocupante, porque se aproxima do limite
possível de ser tolerado pela natureza, e porque culturalmente consome a
juventude, principalmente, transformando-a em zumbis modernos, espécie de seres
inanimados cuja capacidade de comunicar-se por vias de tecnologias sofisticadas
afasta-a do contato e do convívio natural.
Paradoxalmente, essa escravização
aos objetos, notadamente os de forte atração tecnológica, distanciam as
pessoas, quando essas estão próximas, e as aproximam quando estão distantes. A
proximidade passa a ser um empecilho porque impede de usufruir dos desejos
doentios de se comunicar pelos aparelhos sofisticados. Isso pode fazer com que
a capacidade de dialogar presentemente torne as novas gerações frias no
convívio social e insensíveis aos contatos humanos, que tendem a tornar-se
fúteis e passageiros.
Não há dúvidas que a tecnologia
facilita a vida humana, reduz as distâncias e coloca as pessoas mais próximas.
Mas o preço a pagar por isso tem sido bastante elevado quando se fala das
relações humanas. O mesmo objeto de deslumbre que nos lança no mercado em busca
de novidades, não necessárias, mas desejáveis, torna-se também alvo da
marginalidade, quase sempre oriunda de camadas sociais mais baixa. Cada vez
mais aparelhos celulares e tabletes são visados em assaltos e roubos. Repassados
e vendidos no mercado paralelo o baixo preço dessas mercadorias faz com que ela
seja disputada também por pessoas pobres. Com isso, não somente a classe média
e os mais ricos ficam reféns dessas tecnologias, e de mercadorias que não
deveriam ser as mais importantes em suas vidas, cujas necessidades mais
prementes são relegadas a planos inferiores. Some-se a isso as facilidades de créditos que garantem acesso fácil às mercadorias e instigam o consumo. A alienação gerada por essa lógica consumista e os vícios que dela advém, passam a se fazer
presente também entre os mais pobres, que se veem em um mundo distante daquilo
que é a realidade vivida.
Por todas as classes sociais a
dependência tecnológica assume ares de uma epidemia. E aquilo que deveria ser
algo facilitador das relações sociais, torna-se um enorme impedimento para que
se tenha a clara noção dos mecanismos reais de produção e do processo de
manipulação da realidade a fim de tornar cada jovem um consumista em potencial.
Podemos argumentar que tais tecnologias,
e as redes sociais que elas criam, tem ultimamente contribuído para aglutinar
milhares de jovens em manifestações que tem azucrinado a vida de governantes.
Mas nessas redes sociais vê-se também o lado selvagem, estúpido e odiento de
muitas pessoas, que passam a frequentar um ambiente onde podem tudo, ou pensam
que podem, e o desrespeito passar a se constituir em uma regra que se dissemina
numa velocidade impressionante.
Alimentada pela mídia, estamos
construindo via esses mecanismos uma geração marcada pelo ódio. Mas nesse
sentimento não há, infelizmente, uma capacidade crítica suficiente para
distinguir a origem de suas frustrações. O fetichismo, embutido na mercadoria,
espalha-se pela sociedade, e a coragem de se manifestar via redes sociais, bem
como a virulência em que essa rebeldia se transforma em alguns casos, não tem
objetividade. Esses jovens, em sua maioria, não se disporiam a enfrentar os
seus piores demônios, pois são eles que produzem seus objetos de desejos. São
alienados e, com esses comportamentos, não causam nenhum medo naqueles que
controlam toda a riqueza, os meios de produção e a cada um deles, por
intermédio das mercadorias que desejam.
Não defendo nenhum manifesto
Ludista, anti-tecnologia. Mas me preocupa o caminho que estamos trilhando em
direção ao futuro. Como sempre digo, o futuro não existe. Ele é uma construção idealizada.
Quando imaginamos, contudo, aquele tempo que ainda virá, e no qual nos
imaginamos nele, a menos que a morte nos tolha a vida, devemos olhar para o
presente. Ele é que dirá que tipo de mundo estamos construindo.
Faltando um ano para o prazo
estabelecido a fim de se resolver os principais problemas da humanidade, porque
é tão difícil se atingir os “objetivos do milênio”?[2]
Porque tudo isso depende do rompimento com as estruturas vigentes no sistema
capitalista, cuja prioridade é produzir a uma meta lunar (ou lunática), sem
limites, cada vez mais mercadorias.
Somos arrastados por um turbilhão
midiático, de propaganda, que invade cada casa, indistintamente, a martelar em
nossos desejos e a nos impor uma vontade. Sucumbimos a esse fetichismo, agora
ampliado pelo marketing, e deixamos para depois a preocupação com os destinos
da humanidade. Eles deixam de ser nossos quando atingimos essa capacidade
consumista e passamos a querer resolver um problema somente quando ele nos
incomoda particularmente. Somente a crítica, a capacidade de identificar as
origens desses males, e rompendo com o fetichismo (o que não significa abrir
mãos dos desejos, mas ter a consciência crítica de seus limites), pode-se
corrigir o rumo que tem nos encaminhado em direção a um abismo.
Certamente essas poucas palavras
não surtirão efeito, porque tem alcance limitadíssimo. E muitos daqueles que
lerem isso que escrevo, já possuem essa consciência crítica formada, e sentem a
mesma impotência diante desses problemas. Mas consigo assim me aliviar das
culpas, visto ser um indivíduo do meu tempo, e também algumas vezes cego pelos
desejos consumistas.
Exprimo dessa forma um sentimento
que demonstra o quão contraditório é o mundo em que vivemos. Contudo, tenho a
consciência da necessidade de mudar o mundo não pela cultura, pelos hábitos,
mas rompendo com as relações sociais de produção que nos escraviza e limita
nossa capacidade de construirmos um mundo mais solidário e menos egoísta.
Somente assim, e destruindo essa tradição que está enraizada em nossas
entranhas e acompanha a cada nova geração, poderemos criar outros valores que
nos levem a consumir aquilo que é estritamente necessário para vivermos bem e
com dignidade, com o olhar voltado para o passado, os pés firmes no presente e
nossos sonhos utópicos realizáveis a desenhar nossos destinos.
Quem sabe a partir daí possa ser
possível falar em desenvolvimento sustentável?
Vejam este vídeo. Fala sobre a maneira como estamos substituindo nossa maneira de interagir, nos submetendo à dominação dos objetos e da tecnologia.
[1] “Diz uma antiga
lenda grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (uma besta com cabeça de mulher,
asas e corpo de animal) para atormentar os moradores da cidade de Tebas. A
Esfinge cruzava o caminho de todos os que se aproximavam da cidade e formulava
um enigma para o viajante. Quem errava o enigma era devorado pelo monstro. Um
dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “O que
durante a manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e à noite tem três”.
Édipo respondeu corretamente* e a Esfinge ficou tão furiosa que se lançou num
precipício. Graças à façanha de derrotar a Esfinge, Édipo tornou-se rei de
Tebas e ganhou a mão da rainha enviuvada, sua própria mãe.”.
(*)
Resposta ao enigma:
O ser humano. Representado em suas fases de recém-nascido, adulto e na velhice,
quando necessita ser apoiado em uma bengala ou cajado.
[2] Em 2000, a ONU – Organização das
Nações Unidas, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu 8
Objetivos do Milênio – ODM, que no Brasil são chamados de 8 Jeitos de
Mudar o Mundo – que devem (deveriam)
ser atingidos por todos os países até 2015. 1. Acabar com a fome; 2. Educação
básica de qualidade para todos; 3. Igualdade entre os sexos e valorização da
mulher; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a saúde das gestantes;
6. Combaer a Aids, a malária e outras doenças; 7. Qualidade de vida e respeito
ao meio-ambiente; 8. Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. (http://www.objetivosdomilenio.org.br/)
Professor, que texto magnífico! E, ainda, tratamos a temática voltada ao desenvolvimento sustentável nas escolas de educação básica como algo facilmente possível! Trata-se, antes de tudo, de uma ruptura com as práticas, quase que obrigatórias, do consumo. Quase obrigatórias pelo fato da mídia pregar aos consumidores (por ela somos assim denominados) da necessidade (irreal) de se repor ou, mesmo, de substituir mercadorias! Por isso, a tamanha importância dos estudos da Geopolítica em meio à Academia. Tudo se trata de uma lógica de submissão e dependência! Dei gargalhadas da resposta ao enigma, principalmente no trecho da bengala!!!! Abraços professor!!! Muita vontade de participar dos encontros da Geopolítica!!!!
ResponderExcluirEsse texto é tudo que tenho pensado nos últimos tempos, e não consegui exprimir em palavras aos meus pares, muito menos escrever. Parabéns pela maestria das palavras.
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