Desenho de Sarah Ottoni |
No dia 13 de
dezembro, para nós de um fatídico ano, 2007, perdi uma parte de minha vida. Aos dez
anos de idade, a nossa pequena Carol, Ana Carolina Oliveira Campos, deu seu
último suspiro, após um breve sofrimento causado por hemorragias internas como
consequência de um tipo raro de leucemia (leucemia mielomonocítica juvenil),
tardiamente diagnosticada. Por cinco longos anos, tentei entender essa
relação entre vida e morte, mas, principalmente, as dificuldades de aceitarmos
a morte de um filho, ou filha. Por esse tempo, travei um monólogo silencioso
comigo mesmo, e expus o resultado disso em crônicas, publicadas em um livro[1]
lançado quando se completou um ano de sua morte.
Em algumas vezes
os meus textos tinham o formato de uma carta, em que eu travava um impossível
diálogo com minha querida filha. Pelas minhas concepções eu procurava falar direto ao meu coração, pois nele reside o amor e as emoções, transmitidas pelo cérebro em uma relação de causa e efeito. Elas convertem-se em ordens ao nosso corpo, e disso tudo emanam os comportamentos que adotamos no mundo real. Agora, seis anos depois, tento racionalizar melhor essa perda, muito embora o sentimento que trago dentro do meu peito, grudado em meu coração seja o mesmo.
O
CÉTICO, O ESTOICISTA E O MATERIALISTA
Não sou pessimista,
embora por um tempo me mantive cético. Mesmo com toda a mágoa da vida, pela
perda de minha filha. Às vezes sinto raiva, exprimo alguns impropérios.
Palavrões mesmo. Sem direção, ao vento, como para me aliviar da dor. Por
muito tempo, na condução do meu carro, sozinho, disparei gritos, berros, no
limite da capacidade de meus pulmões, como forma de aliviar a revolta pela
fatalidade perversa que nos atingiu. Carregarei esses sentimentos para o resto
da vida. Mas tenho feito algumas reflexões desde que criei o meu blog, até com
o objetivo de preencher o vazio, principalmente das tardes de sábado, quando eu
mais ficava com minha filha.
De início, me vi
envolvido pelos ensinamentos dos antigos filósofos estoicistas, quando fui a
eles direcionado a partir da leitura de Luc Ferry, “Aprender a Viver”[2]. Fazia-me necessário,
diante de momentos de absoluta perda de perspectiva da vida. Depois com a
leitura de um filósofo antigo (estoicista), Sêneca, em seus pequenos opúsculos,
tanto em “Sobre a brevidade da vida”[3], como, principalmente, em
“Aprendendo a viver”[4],
cujo título Ferry seguramente se inspirou, e a mim também.
Ferry (2006)
procura trazer para os dias atuais o sentido de filosofias antigas que busque
tanto se livrar dos apegos excessivos materiais quanto espirituais, de maneira
que as pessoas possam se deparar mais tranquilamente com o seu destino, a
morte. Isso dentro de um pressuposto de que é preciso aprender a viver, e que
não é possível viver sem esperança. Mas ciente de que a vida é breve, e que “a
acumulação de todos os bens materiais possíveis e imagináveis, por mais
imprescindíveis que sejam, não resolve o essencial”. (FERRY, 2006:p63)
“Vivemos
continuamente na dimensão do projeto, correndo atrás de objetivos propostos
para o futuro, mais ou menos distante e pensamos, ilusão suprema, que nossa
felicidade depende da realização completa de fins medíocres ou grandiosos,
pouco importa, que estabelecemos para nós mesmos. (...) esquecemos que não há
outra realidade além da que é vivida aqui e agora, e que essa estranha fuga
para adiante nos faz com certeza falhar.
As dificuldades de viver e o trágico da condição humana não são modificados e,
segundo a própria expressão de Sêneca, ‘enquanto se espera viver, a vida
passa’”. (FERRY, 2006:pp62-63).
Mas, ao final de
seu livro, ao ressaltar a “grandeza do estoicismo, do budismo, do spnozismo, de
todas as filosofias que nos convidam ‘a esperar um pouco menos e amar um pouco
mais’”, reconhece também a importância do materialismo: “Compreendi também o
quanto o peso do passado e do futuro estraga o gosto do presente e até gostei
mais de Nietzsche e de sua doutrina da inocência do devir. Nem por isso me
tornei materialista, mas não posso mais dispensar o materialismo para descrever
e pensar algumas experiências humanas”. (FERRY
2006:P300) E é com base nessa concepção materialista, e à luz do
estoicismo, que tenho também procurado abordar os temas de meus textos. Os que
se referem ao meu sofrimento, em particular, e ao turbilhão de contradições que
atingem a sociedade.
ENTRE
O SONHAR E O VIVER
Nessa dimensão
entre o viver e o pensar construímos nossos sonhos. Nele cabe tudo, mas pouco
pode se realizar. Insistimos em sonhar, porque é a condição de nossa força para
podermos construir o que denominamos de futuro, o que virá depois que o hoje se
encerra. Até acreditamos que o sonho coletivo é a possibilidade da sua
realização, conforme cantado por Raul Seixas[5],
em uma estranha música de uma única estrofe, mas com uma mensagem profundamente
positiva. Pois assim a humanidade conseguiu atingir os patamares atuais, com
todos os seus problemas e virtudes.
Celma e Carol na Praça Vinícius de Morais, em Itapuan - Salvador/Ba |
Mas esse sonhar
não pode se materializar quando se desmaterializa a vida. Será eternamente um
sonho. Ele nos ajuda, contudo, a acreditar que é importante continuar vivendo,
quando perdemos uma parte de nós, em nosso caso, uma filha. As lembranças, às
vezes doídas, porque reforçam as saudades, se constituem em instantes de
realizações etéreas, que se confundem entre o profundamente abstrato, de uma
realidade passada e a objetividade de um presente onde procuramos construir,
pela imaginação, uma presença irrealizável.
Tudo isso só é
possível porque temos um desejo em ebulição, correndo por nossas veias,
comandado pelo nosso coração. É dele que saem todas as sensações e sentimentos,
de amor e de ódio. Conforme construímos nossa história de vida, o coração vai
moldando nosso caráter e definindo nosso caminho. Perdemos a condição de nos
assenhorarmos do nosso destino em decorrência dos impactos causados em nossas
vidas pelo ambiente no qual estamos inseridos, e pelo acaso que nos tolhe a possibilidade
de fazermos nossas escolhas. Mas até onde é possível, nossa vontade segue
comandada pelo coração, que direciona nossos atos e dá sentido às nossas
emoções.
Não importa,
contudo, se sonhar e se viver, quando os sentimentos que transbordam nossos
corações estimulam um amor incontido, mesmo desmaterializado, configurado na
imagem eterna de alguém que trouxe alegria e prazer às nossas vidas.
A presença passa
a ser um desejo, um sonho impossível, mas a vida vivida demonstra uma
vitalidade infinita. É uma sensação aprisionada no coração, transposta para a
nossa memória que se prende, como água-viva.
O amor por minha
filha é infinito. Ele permanecerá para sempre em meu coração alimentando minha
memória com os momentos prazerosos que vivemos. Aprendi a viver com esse
sentimento, por esses curtos cinco anos que dão a sensação de ser uma
eternidade. Mas ao mesmo tempo transbordam lembranças como se ela estivesse
permanentemente ao meu lado. E nesses momentos tento lutar incansavelmente para que as
imagens que veem à minha cabeça não sejam de seus últimos dias, do sofrimento
silencioso de uma unidade de terapia intensiva em meio a uma incontrolável
hemorragia. Tento, mas não consigo. É difícil para mim, e para qualquer pai ou
mãe que vê impotente uma filha, ou um filho, em um leito já praticamente com um
diagnóstico que indica ali o fim de uma vida por nós gerada.
Mas mesmo diante
da dor, do sofrimento por ver uma parte de si se esvaindo, da saudade que
permanece nas lembranças doloridas desses momentos, o amor é o sentimento que
nos conforta. Amamos nossa filha pelos dez anos que ela esteve conosco
intensamente. Mas sabemos que o tamanho dessa intensidade é infinito,
poderíamos tê-la amado mais, ter vivido mais ao seu lado. Como na belíssima
música eternizada pelos Titãs, “devia ter complicado menos, trabalhado menos,
ter visto o sol se pôr. Devia ter me importado menos, com problemas pequenos,
ter morrido de amor...” [6].
Por me sentir sempre podendo ter dado mais de
mim para minha filha, é que tenho insistido em muitos textos que já escrevi,
sobre a necessidade de se dar maior valor aos instantes em que nossos filhos
estão aos nossos lados. Como qualquer outro ser presente na natureza, eles
“criarão asas”, seguirão seus próprios caminhos. Não necessariamente significa
um afastamento físico, ou um distanciamento nesse sentimento de amor, mas tudo
passa a ser de forma diferente, e já dividimos isso com outros pelos quais eles
se entregarão ao amor, à paixão.
São esses
momentos, até a adolescência que nossos filhos mais precisam de nosso carinho e
amor. Mas são exatamente os períodos em que a própria vida impõe, pela lógica
do mundo em que vivemos, uma maior dedicação ao nosso trabalho, na ânsia de
tentar construir o futuro onde imaginamos inserir nossos filhos. Então, vivemos
para o futuro, e perdemos um tempo importante que poderia estar sendo melhor dividido
com nossos filhos no presente. Sinto isso, mesmo com todo amor que dediquei a
minha filha.
Carol, em outubro de 2007, em apresentação na escola do Caiçara |
Sempre fui
obcecado pela ideia de ter filhos. E um desejo maior ainda de ter uma filha.
Quando tive um casal me senti na maior das felicidades. Gostaria de ter tido
três, pois creio ser esse o número ideal. Não tenho explicações porque disso.
Mas o que não consigo entender é o fato de alguém ter sido gerado para o mundo
e negar-se a aceitar aquela que é a lógica da perpetuação da nossa espécie. É
bem verdade que isso se deve às contradições de um mundo em permanente
transição, e em crise. A lógica da sociedade impõe às pessoas determinadas escolhas
que estão relacionadas à necessidade que cada um tem de buscar um estilo de
vida sofisticado, os filhos seriam um empecilho para tal objetivo. Mas a
ausência deles representará também um vazio na velhice.
Mas não era
preocupado com o futuro que sempre desejei ter filhos, mas em poder construir
uma família, constituir uma herança genética e viver isso de maneira altruísta,
viver a minha vida repartindo meus genes, dividindo meus sentimentos,
compartilhando meu amor e gerando uma descendência que sempre ansiamos ser
melhores do que nós mesmos. Embora sentimentos individuais, sempre transmiti
para eles uma visão solidária e coletiva de mundo.
Uma das primeiras fotos |
Quando minha
filha nasceu o meu filho já tinha quatro anos. Foi um dos momentos mais
maravilhosos da minha vida. Julguei, claro, que aquilo seria eterno, a
realização de um sonho então completo: um filho, uma filha. Ainda hoje, quando
passo em frente à maternidade em que ela nasceu olho demoradamente. “Ela” é o nome da maternidade. Ela, Ana Carolina Oliveira Campos, nossa
pequena Carol, viria para
definitivamente mudar por completo nossas vidas. Pelos dez anos que vivemos... Por
todos os anos do resto de nossas vidas.
Quando
recentemente conversamos, eu e minha companheira Celma Grace, sobre a
necessidade de produzirmos camisetas para o Instituto Ana Carol, tive a ideia
de que algumas fossem moldadas especialmente. Nelas inseri a frase de uma
música pela qual sou apaixonado, e que sintetiza todo o sentimento que carrego
dentro do meu coração: POR TODA A MINHA VIDA EU VOU TE AMAR.[7]
Por todos os
anos que a minha vida se prolongar carregarei esse amor dentro do peito e a sua
imagem bem viva na minha memória. Não posso negar que meu coração será, por
isso, para sempre amargurado. Claro, gostaria de tê-la em vida. E assim, cada
vez que lembrar-me dela, de sua meiguice, do seu carinho, de uma frase que
jamais deixarei de ouvir e que era como uma senha para um beijo a seguir – “oi,
pai!” – meu coração não poderá sentir alegria. Talvez eu consiga exprimir outro
sentimento, resignação. Mas do fundo do meu coração, além do amor que terei por
ela pelo resto de minha vida, ficará represado um sentimento expresso em uma
das músicas mais belas que conheço, de autoria de Paulinho da Viola: “solidão,
palavra cavada no coração, resignado e mudo no compasso da desilusão...”.[8]
NOTAS:
(*) Fiz pequenas alterações, já que estou reeditando esse texto um ano depois (Dezembro de 2013)
(*) Fiz pequenas alterações, já que estou reeditando esse texto um ano depois (Dezembro de 2013)
[1] DEPOIS QUE
VOCÊ PARTIU, crônicas escritas no ano de 2008, um ano depois do falecimento de
Ana Carolina.
[2] FERRY,
Luc. Aprender a viver. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2007. Adquiri-o em 01.08.2008, e escrevi uma
dedicatória a mim mesmo: “Para aprender a
viver com a ausência da minha pequena Carol. E como sentir sua presença diante
dos mistérios da vida e da morte. Seis meses e dezoito dias depois que Carol
partiu”.
[3] SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. São Paulo:
Editora LP&M, 2006.
[4]
______. Aprendendo a viver. São
Paulo: Editora LP&M, 2008.
[5]
“Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha
junto é realidade”. Raul Seixas: Prelúdio.
[6]
Titâs: Epitáfio. Música de Sérgio Brito.
[7]
Vinicius de Morais e Antonio Carlos Jobim (Tom Jobim): Por toda a minha vida eu
vou te amar.
[8]
Paulinho da Viola: Dança da Solidão
Querido amigo Romualdo,
ResponderExcluir"Então, vivemos para o futuro, e perdemos um tempo importante que poderia estar sendo melhor dividido com nossos filhos no presente" (RP).
Compartilho com você a sua dor meu caro amigo, envio um abraço fraterno e agradeço pelas lições de vida que são explicitadas nos seus textos.
Renato Maurício
Não estarei em Goiânia sexta. Mas quero transmitir meu fraterno abraço à família.
ResponderExcluirMarco Antônio
Primo Romualdo,
ResponderExcluirNesses últimos contatos que felizmente tivemos, observei que você demonstra a grande
dor pela perda de Carol. Imagino quanto deve doer a perda de um filho(a).
Divido com você esta saudade que de tão grande se torna infinita. Envio-lhe um grande abraço extensivo á sua familia juntamente com nossos sentimentos.
Como são dolorosas estas datas, ao contrário do senhor quem me faz falta todos os dias é meu pai. As vezes penso que não vou aguentar, parece que a saudade sufoca, leva a alegria de dias felizes. Muitos me falam que o tempo faz passar a tristeza, mas acho que não tem funcionado muito comigo...
ResponderExcluirTathiana