domingo, 1 de janeiro de 2012

CRÔNICA DE UM MUNDO EM TRANSE – 1ª PARTE

A CRISE ECONÔMICA E AS REVOLTAS NO MUNDO – EUA, EUROPA E PAÍSES ÁRABES

Crises sempre acontecem em nossa vida, na sociedade, na natureza. Mas o capitalismo vive das crise. Aliás, ele depende das crises. Ele se retroalimenta delas, a expressão correta é essa, pois as crises são criadas pelas próprias e inevitáveis contradições do sistema, mas na maioria das vezes são nelas que são buscadas a sua salvação. Eu costumo citar muito o livro de uma jovem economista canadense, conhecida ativista contra as desigualdades sociais, chama-se Naomi Klein. O título é “A Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre”. Neste livro ela mostra como em determinadas circunstâncias a crise, que normalmente acontece no capitalismo, é potencializada para, a partir de determinada desgraça, ou um acontecimento muito complexo, as forças que agem no sistema, as grandes corporações e/ou os conglomerados financeiros, possam usufruir daquele desastre e obter dividendos financeiros e econômicos. Vamos pegar o exemplo do Iraque, havia um problema ali possível de ser resolvido politicamente, mas a opção foi de invadi-lo. Destrói-se por completo aquele país – e essa invasão foi decorrente da perda de espaços para investimentos econômicos –, então se arrasa um país e logo em seguida as corporações vem e o reconstrói. Elas estão todas lá reconstruindo o Iraque. Assim como no caso de desastres naturais, como aconteceu em Nova Orleans, que é um dos capítulos do livro de Naomi Klein. A crise, essa é uma grande contradição, termina sendo um instrumento de tentativa de reerguer essas potencias falidas. E é exatamente por isso que quando uma crise chega a um ponto quase que de difícil retorno, vem logo em seguida uma guerra. Então a guerra destrói por completo a economia de um país, e assim logo em seguida, após se encerrá-la é preciso recompor tudo. E tem sido sempre assim. Se nós analisarmos todas as grandes guerras, veremos que elas sempre foram antecedidas de uma grande crise de repercussão mundial.
Vemos isso acontecer nos dias de hoje com os fatos que estão sendo chamados de “Primavera Árabe”. Essa expressão tem sido usada para fazer uma comparação com a chamada “Primavera dos Povos”, no século XIX, na Europa, que foi a retomada do poder pela burguesia, com várias revoluções que aconteceram por quase toda a Europa. Não tem muito parâmetro de comparação, porque não estamos vendo nenhuma revolução ali. Mas isso se tornou uma expressão muito usada pela mídia, e por tanto ouvi-la faz com que até mesmo nós, que temos uma análise mais crítica, terminemos por repeti-la.
Mas se nós pegarmos esses acontecimentos que estão ocorrendo ali no Norte da África e Oriente Médio, vamos perceber que o pano de fundo deles também é a crise econômica. Porque esses países, e essas ditaduras, com algumas exceções, talvez da Síria e do Irã, o restante daqueles países sempre tiveram boas relações com o Ocidente, eram aliados, inclusive. Até mesmo o Kadafi. O Wikileaks recentemente divulgou que houve termos de cooperação entre a Líbia e os Estados Unidos, e a CIA usou prisões da Líbia para torturar presos suspeitos de participarem da Al Qaeda. Então houve uma reaproximação de Kadafi nos últimos anos com os Estados Unidos. Até mesmo o Iêmen. Mas o Iêmen tinha uma característica um pouco diferente, ao mesmo tempo que os EUA tinha uma relação forte ali, mas o governo era tão fraco que não conseguia impedir que a Al Qaeda mantivesse centro de treinamentos naquela país. Mas aqueles governos quase todos sempre tiveram boas relações com os EUA e com os países europeus. Ocorre que a crise econômica fez com que Estados Unidos e Europa reduzissem os investimentos que sempre fizeram. O Egito sempre recebeu milhões de dólares dos EUA. E vice-versa. Por exemplo, a Arábia Saudita, se não me engano no ano passado, assinou um acordo com os EUA para renovar por completo todo seu aparato bélico, uma forma de ajudar aquele país com a crise na qual ele está envolvido até o pescoço.
Quando veio essa crise, que já se estende desde 2006, 2007, e estourou em 2008, e aí travou por completo a economia de alguns países, e foi repercutir na Europa, trouxe enormes dificuldades. Esses não estão resolvendo nem seus problemas internos, de equilíbrio fiscal. Quanto mais garantir o nível de cooperação que eles tinham com outros países. E isso afeta alguns programas nesses países, e a escolha que eles fazem, claro, é sempre manter a sua elite bem protegida. As camadas populares, principalmente a juventude, são as mais atingidas. Boa parte, como conseqüência da crise, perde o emprego, e a parcela da juventude que está entrando naquela faixa economicamente ativa, e que vai precisar de emprego, não consegue. Assim vai aumentando o percentual de jovens desempregados, sem perspectivas, numa economia que não incentiva o consumo permanentemente. Um verdadeiro barril de pólvora.
Os governos perderam a capacidade de dar respostas a essas reclamações. Imediatamente, logo que começou a sequência de crises no Oriente Médio, a Arábia Saudita, por ter muito recurso do petróleo,  elevou alguns programas econômicos. Ou seja, Arábia, ampliou os benefícios, aumentou salários, para que? Para evitar que lá, pelo menos nesse momento, ocorressem rebeliões. Então, o que está acontecendo ali, na Europa, e já há muito tempo nos Estados Unidos, é resultado de uma mesma crise. É uma crise sistêmica. Ela afeta todo o mundo. O Japão está do outro lado, mas ele também está sofrendo as conseqüências da crise. É um país em desaceleração econômica, com uma crise ampliada pelos problemas ambientais. O que nós estamos vivendo, na verdade, é uma situação de crise sistêmica.
Essa situação potencializa outros tipos de crises, de natureza política, na sociedade. Por exemplo, na medida em que não resolve o problema do emprego para a juventude, isso a deixará arredia, revoltada, indignada, propensa a ir para o embate nas ruas. Aliás essa é uma característica da juventude, quando ela não faz isso, naqueles países onde existe uma situação de instabilidade na própria estrutura do regime, é cooptada pelo banditismo, pelo tráfico, pelas drogas. Então existem esses dois elementos que envolvem a juventude.
Quando analisamos uma ditadura, de qualquer um desses países árabes que abordei anteriormente, primeiro precisamos compreender que são sociedades diferentes, com características bem distintas das nossas, de estilos de vida que ainda mantém os vínculos tribais, e tem que ser bem entendido como historicamente elas sempre funcionaram, e muitas vezes, para manter o país unificado, sob um certo “manto nacionalista”, só através de um governo forte. De um governo bem impositivo, ditatorial. E não somente por esses valores carregados de tradição. Mas também pela maneira como se deu o processo de descolonização, de divisão territorial. A criação das nações, daqueles países, foi forçada, abrigou debaixo de um mesmo teto, tribos ou etnias completamente distintas e rivais entre elas. Essas diferenças se acentuaram após a descolonização, gerando caos e ampliando suas dificuldades na medida em que os países colonizadores, principalmente depois da segunda guerra mundial, abandonaram forçosamente pelas dificuldades econômicas, praticamente todos aqueles países que eles tinham explorados durante séculos. Deixaram-nos à beira da falência, sem condições para que eles pudessem seguir adiante com suas próprias forças.
As lutas étnicas se ampliaram a partir de então, até porque os colonizadores sempre usaram das etnias minoritárias para governarem, levando a duas situações: ou uma absoluta falta de um poder centralizado, com as guerras tribais se sucedendo ao longo de décadas, ou a instalação de governos ditatoriais. Ou então de monarquias, cujas características eram semelhantes, mas baseadas em determinados valores e costumes que tornavam normal a sucessão monárquica dentro de uma mesma linhagem, indefinidamente. Embora tenha também as características de um governo autoritário, torna-se mais aceitável, pela tradição. Aos poucos foi se impondo em alguns desses países um poder clerical, em certos casos com o livro sagrado do Islã sendo colocado até mesmo acima da Constituição que rege a Nação.
Enquanto a economia se mantém estável essas ditaduras não são incomodadas, mas quando ocorre uma crise e as condições econômicas começam a degringolar e eles perdem a capacidade de oferecer aquilo que a população se habituou a receber, se tornam incapazes de suportar a reação popular, o apoio anteriormente dado se esfumaça e a queda desse tipo de governo torna-se inevitável. Mas não somente desses, como de todos os outros que não garantirem estabilidade econômica e perspectiva de melhorias permanentemente para a população. Exceções existem, mas sob condições ideológicas firmes e que envolvam toda a população, como no caso de Cuba e da Coréia do Norte.
Na maioria, essas ditaduras demonstram forças sob as circunstâncias detalhadas anteriormente, mas transformam-se a qualquer momento em gigantes de pés de barros. E se porventura – mas quase sempre isso acontece quando a crise se intensifica – esses países perdem o apoio das grandes potências, que até então eles apoiavam, aí a tendência é que eles caiam muito rapidamente. A economia, a estabilidade econômica, independente de ser democracia ou não, termina por definir a durabilidade de um governo por mais tempo.
Há uma frase de muito repetida historicamente de um ex-governador mineiro, se não me engano Antonio Carlos de Andrada por época da Revolução de 1930: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Com ela eu quero fazer um paralelo com essa situação descrita, guardando-se as devidas proporções. Quando os Estados Unidos percebem que há um descontrole total em um país onde eles apóiam determinado tirano eles se apresentam como um país que tem sua democracia consolidada e apóia o povo em suas manifestações de democracia e sacrifica aquele ditador que eles apoiavam, que era seu aliado. Articulam estrategicamente as mudanças, para que tudo continue como está.
Nas novas circunstâncias eles se movimentam sorrateiramente para que quem assuma o poder mantenha as relações políticas com eles. Foi o que aconteceu recentemente no Egito, na Líbia, e eu poderia citar dezenas de outros exemplos.  Se nós pegarmos quem está no poder na Líbia atualmente nós vamos encontrar vários ex-ministros do Kadafi. No Egito, na verdade houve um golpe branco, um golpe militar silencioso, a mídia, inclusive, não apresentou os fatos como foi o acontecido. Os militares sempre foram muito fortes no Egito, mesmo sob o domínio de Mubarak, e controlam importantes setores da economia. Eles usaram de uma estratégia inteligente, enquanto Mubarak estava com força o apoio lhe era garantido, e quando perceberam que ou faziam um massacre na praça, ou cruzavam os braços, esperavam Mubarak cair e tomavam o controle do poder com o apoio dos Estados Unidos. E foi isto o que aconteceu. 
Mas, apesar da tentativa em ludibriar a população a evidência de um malogro ficou logo clara. Aconteceram novas revoltas, mas desta vez não somente com a participação dos “jovens indignados”, como também de grupos organizados, armados, mais sectários e dispostos ao enfrentamento com as forças repressivas militares. Aí a mídia não teve como não mostrar até porque as imagens de espancamentos e testemunhos de assassinatos passaram a ser mostradas por mídias sociais na internet. Mas as notícias mesmo com os fatos apresentados eram e são mostradas de forma diferente de quando Mubarak estava próximo a cair. Elas são mais amenas, basta fazer uma análise de como essas notícias são difundidas, tem uma diferença muito grande, para que não se demonize agora a junta militar. Mas eles não têm muita saída, e vão ter que entregar o poder e provavelmente quem vai fazer maioria no processo eleitoral que já segue para sua segunda etapa será a Irmandade Muçulmana, da mesma maneira que também na Líbia, provavelmente vai ser um poder vinculado ao Islã. Isso pode acontecer também na Síria, caso o governo ali também caia. Por todos os países em revolta no Oriente Médio e Norte da África a tendência é o fortalecimento do Islã na relação com o poder.
O SENTIDO DAS REVOLTAS
Essa discussão não deve girar em torno do que o ocidente propaga como sendo revoltas por democracia. Isso tem mais a ver com o sentido que se queira dar a palavra democracia, pois não podemos desconsiderar as diferenças que existem entre sociedades que são fundadas sobre valores completamente diferentes. Não vejo democracia como um valor universal, mas sim, histórico. Ela é determinada pelas circunstâncias criadas no tempo e no espaço, e obedecem ao sentido que a cultura de cada povo constrói ao longo de sua história.
Não se pode querer que as coisas aconteçam do mesmo jeito na Ásia, na África, na Europa, em qualquer lugar do mundo, de modo semelhante. Suas características são completamente diferentes e jamais reproduzirão a “democracia” e os valores ocidentais. Elas serão democráticas à suas maneiras. Pode até ser que algum dia isso venha a acontecer, mas irá demorar muito e não são esses movimentos que trarão essa aproximação entre os valores ocidentais e orientais.
No Oriente, especificamente por toda a região dos países árabes, incluindo o Norte da África, a divergência não é meramente política ou tão somente a disputa entre grupos pelo poder de controlar um Estado. Há também a questão religiosa, que potencializa as rivalidades, principalmente pelo comportamento de grupos sectários que entendem o Islã de forma mais dogmática do que normalmente se compreende os livros sagrados. O poder religioso é muito forte, é tradicional e histórico. Então é muito difícil que ali haja uma estabilidade política por meio de uma democracia, por exemplo, como nós vivemos aqui no Brasil ou como se imagina no Ocidente. Mas isso não os tornam necessariamente nem pior, nem melhor do que os países ocidentais, nem se deve estigmatizar os seus povos por essas escolhas.
Mas, é bom que se diga também que os Estados Unidos estão se enveredando por um fundamentalismo religioso, muito estimulado por Bush Jr. – que também se dizia um iluminado por Deus – e ampliado com a organização do Tea Party, uma facção do Partido Republicano que passa quase que a ter mais força do que o próprio partido.
Esse é outro aspecto que temos que analisar. Tanto nos EUA, Europa e Oriente Médio, toda essa crise não nos dá a mínima confiança de que as mudanças ocorrerão no sentido que se espera de mais democracia, distribuição de riquezas e de paz entre as nações. Ao contrário, a crise econômica empurra o mundo para atitudes mais conservadoras e intolerantes. E nos Estados Unidos uma vitória do Tea Party, caso consiga eleger uma bancada razoável de parlamentares, vai representar atitudes mais fundamentalistas do que durante o governo Bush. Na Europa, tanto na Grécia, como na Espanha, a crise guindou ao comando político do Estado governos conservadores. E na Itália se abomina a política para se buscar entre os técnicos burocratas e/ou economistas a saída para a crise. Mas o resultado é de um cinismo inacreditável, o primeiro-ministro escolhido faz parte da mesma escola daqueles que levaram os EUA à incrível bancarrota. A tentativa, portanto, não é de livrar as pessoas da crise, mas impedir a falência de grandes corporações financeiras. O resultado, portanto, é arrocho econômico para a população a fim de garantir que a elite econômica mantenha seus privilégios, como sempre, às custas do Estado, mediante planos econômicos que visam reduzir drasticamente os investimentos estatais, a fim de sobrar dinheiro para bancar os rombos gerados por ações especulativas e gananciosas de banqueiros e grandes financistas.
O PASSADO É QUE NOS ENSINA, O PRESENTE É REAL, O FUTURO UMA UTOPIA.
Nós nos habituamos a ficar sempre mirando o futuro, essa é uma característica das sociedades modernas, por questões religiosas, culturais, nós idealizamos algo inexistente. Mas o futuro não existe, o que existe é o presente construído no passado. O que se diz de futuro nada mais é do que a somatória do que fazemos no presente. Então é difícil prever o que pode acontecer. O que nós temos condições é de poder analisar o que acontece hoje e fundamentalmente o que nós conhecemos do passado. Porque não existe isso, de se dizer que aconteceu lá para trás e que pode vir a acontecer de novo. O passado nos ensina muita coisa, mas ele nunca se repete. A não ser como Marx dizia, exatamente para criticar aqueles que afirmavam poder os fatos históricos se repetirem. Ele dizia que a história se repete da primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. Isso ele afirmou para criticar o comportamento do sobrinho de Napoleão, no livro “O Dezoito de Brumário de Luiz Bonaparte”. E o levou como exemplo para construir sua noção de história, permanentemente em transformação, dialeticamente. Cujas mudanças se dão com base nas contradições, tanto na natureza como na sociedade.
Claro então que existem algumas possibilidades de haver semelhanças entre os fatos, ou seja, se nós não aprendemos com os erros eles se repetem, mas naturalmente em circunstâncias completamente diferente, porque como dizia Cazuza, para citar um poeta contemporâneo, “o tempo não pára”, e as mudanças são permanentes. Tentar imaginá-lo como algo de uma repetição mecânica é não compreender de maneira real que o tempo passa, como dizia Heráclito, dialeticamente, como as águas de um rio, que embora sendo o mesmo renova-se a todo instante, porque ele flui. Quando se insiste em afirmar que determinado acontecimento repete o passado é construir uma farsa para negar a própria história.
Assim devemos compreender os acontecimentos do mundo em 2011. Eles são parte de uma história de limites atingidos pela forma de funcionamento do sistema capitalista mundial. Não podem ser analisados isoladamente, estão todos enredados num processo gerado pelo auge de contradições motivadas pelas condições de uma escalada gananciosa de um mundo onde os donos do capital se deslumbraram com as facilidades de fabricarem dinheiro, não somente real, mas numa virtualidade de um jogo financeiro que não mede conseqüências. A usura os joga numa tarefa de produzirem ganhos cada vez mais ambiciosos, à custa do sacrifício da maioria população cada vez mais excluída do sistema, embora em algumas partes ainda seduzidas pelo vírus do consumismo e do estilo de vida construído pela ambição capitalista. Mas nada disso esconde a concentração absurda da riqueza e deixa a cada dia mais claro a impossibilidade de essa lógica representar a perspectiva do futuro da humanidade.

Continua...

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