"Vim de longe vou mais longe, quem tem fé vai me esperar,
Escrevendo numa conta, prá junto a gente cobrar,
No dia que já vem vindo, que esse mundo vai virar”
AROEIRA – Geraldo Vandré (1967)
Esses versos, marcantes, de alguém que perdeu aquela sintonia por causa dos “anos de chumbos”, servem muito bem para ilustrar as mudanças que aconteceram no mundo nas três últimas décadas.
Geraldo Vandré, no auge dos protestos contra o regime militar, compôs músicas inesquecíveis para os que viveram intensamente aqueles anos marcados pela ideologização à flor da pele. Era visível, nítida, expunha-se a luta de classes em toda a sua realidade.
Claro, nem todos viviam tendo as referências políticas, e as ideologias que se digladiavam no mundo da guerra fria. A maioria, aliás, desconhecia quase que por completo toda a guerra que se desencadeava ao seu redor. A alienação era também marcante, imposta não somente aqui no Brasil, por ser uma ditadura militar, mas também, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a manifestação de simpatia ao socialismo, ou à União Soviética, era passível de punição. Desde exílio até a acusação de traição, tudo isso expresso no movimento denominado “macartismo”, alusão ao senador que aprovou uma lei que definia como crime a opinião e a simpatia por outro sistema que não o capitalismo.
Aqui a censura era brutal, e nas ruas a juventude batia-se corajosamente contra as crueldades e torturas de um país que vivia sob uma legislação fascista, baseada numa malfadada Lei de Segurança Nacional. A esperança de transformação social, naquele momento, era majoritariamente apegada à necessidade de uma revolução, inspirados que estavam os que divergiam dos militares, nas experiências revolucionárias chinesas, cubana e da vitória do Vietnã com a conseqüente derrota estadunidense.
O fracasso das ditaduras militares, que começam a ruir no final da década de 1970 e consolidam a decadência por meados da década de 1980, traziam a esperança de que uma mudança política e social abriria espaço para que o socialismo se tornasse uma alternativa concreta na América Latina.
O movimento social voltou com todas as forças e se impulsionou celeremente com a crise econômica que atingiu todo o mundo no final da década de 70. Foi a chamada crise do petróleo, poucos anos depois que os países produtores de petróleo criaram a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), em 1961 e estabeleceram reajustes elevados, sob o argumento que o preço do produto estava próximo aos custos de produção.
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O ápice dessa crise ocorre entre três conflitos no Oriente Médio, a guerra de Israel com os países árabes (1967 e 1973), a revolução iraniana (1979) e a guerra Irã-Iraque (1980). Além do fato de a aceleração do consumo afetar as principais reservas, acendendo uma luz vermelha para o risco de uma crescente escassez do produto.
O Brasil, cujo crescimento no período do chamado “milagre econômico” se dera à custa de um enorme endividamento externo, entrou em uma profunda crise econômica. Escondida o quanto foi possível pela manipulação dos índices e pelo controle quase que total da mídia. Restavam as vozes marcantes, mas de alcance limitado, dos jornais da chamada imprensa alternativa, que denunciavam com vigor as condições de decadência que vivia o nosso país.
Os anos 1980 refletiram os impactos gerados por essa crise. Desmoralizados, os militares gradativamente foram sendo condenados pela opinião pública, em movimentos que passaram a exigir eleições diretas e o fim das restrições políticas. Sem mais forças para suportar as pressões que vinham da rua, aliado com os rombos crescentes nas finanças do Estado e os aumentos exorbitantes do endividamento externo e interno, eles entregaram a contragosto o poder.
Mas a passagem do poder para as mãos civis, bem como a abertura, embora lenta, e o fim das perseguições políticas, não seriam suficientes para garantir que o país pudesse viver a sua “primavera”. Também isso acontecia em outros países latino-americanos. O que se conseguiu na transição política, embora através de eleições livres (apesar de restrições naturais na lógica da democracia capitalista), foi a ascensão de políticos conservadores.
Como no resto do mundo também as conseqüências econômicas decorriam dos problemas gerados pela crise do petróleo, o que se viu foram governos eleitos para administrar um enorme rombo nas contas públicas. E o endividamento externo fazia com que novos empréstimos a serem concedidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), viessem acompanhados de obrigações e compromissos firmados pelos governos que dependiam deles, e impunham fortes restrições aos investimentos do Estado, principalmente em programas sociais que pudessem reduzir as desigualdades.
Aproveitando-se da grave crise financeira que estrangulava os Estados latino-americanos, e de praticamente todos aqueles que haviam se endividado na década de 80, os países imperialistas passaram a impor determinadas políticas, executadas através dos chamados “organismos internacionais”, vinculando os possíveis empréstimos mediante a adoção de políticas desconcentracionistas, desregulamentando a economia.
Esses palavrões poderiam ser traduzidos simplesmente como a necessidade de não mais os Estados Nacionais imporem restrições à livre circulação de mercadorias, ao controle do capital financeiro e ao livre funcionamento do mercado. Assim, mediante essas políticas que passaram a ser chamadas de neoliberais, e para poder contrair esses empréstimos a fim de cobrirem os rombos e conter a escalada inflacionária, os Estados reduziram drasticamente seus investimentos, terceirizaram serviços e deixaram de financiar setores imprescindíveis para um crescimento nacional autônomo e independente.
Para países como os da América Latina a década de 80 tornou-se conhecida como a “década perdida”, mas pelo mundo adentro a farra era outra. Com os mercados livres e as economias dos países desregulamentadas as grandes corporações deleitaram-se e lambuzaram-se com o dinheiro alheio. Real ou virtual. Às custas de roubos astronômicos, nos processos escandalosos de privatizações de grandes empresas estatais, vendidas a preço de banana, essas corporações passaram a concentrar cada vez mais poder, atuando em todas os setores vistos como estratégicos dentro de suas lógicas ambiciosas e gananciosas de ampliarem seus lucros indefinidamente. Não importando se as conseqüências eram o aumento das desigualdades sociais e da usura
A concorrência foi sendo gradativamente eliminada pelas sucessivas fusões de grandes gigantes que competiam entre si, mas que a partir de então, com a junção de suas marcas, essa competição limitava-se a um grande engodo de marketing, na medida em que o apresentado aos consumidores representava na verdade uma disputa ao estilo do velho “telecath” ou aquela luta livre que nos divertia nos anos 70 mas que não passavam de grandes encenações. Afinal, os lucros dessas grandes disputas concorrenciais entre grandes marcas terminam por serem depositadas nas contas dos acionistas de uma mesma corporação.
Assim, a concentração do capital aumentou exponencialmente nas mãos de poucos elementos da burguesia, um número ínfimo de famílias, cada vez unindo-se mais entre elas como uma necessidade para que essa riqueza não se dispersasse. Para que não se detectasse essa forte contradição, de um mundo estagnado economicamente, e de um aumento da riqueza nas mãos de poucos, alguns intelectuais foram convocados a explicar o que ocorria no mundo.
Aproveitando-se da crise que atingiu o socialismo no final dos anos 80, também essa decorrente das conseqüências dos problemas advindos da década anterior, portanto teve a ver também com a crise da economia de mercado, além dos problemas antigos da concentração do poder do Estado e das limitações dos avanços tecnológicos, difundiu-se amplamente a tese do fim de tudo. Evidentemente tudo que dizia respeito à identificação de injustiças sociais como decorrentes do capitalismo e da concentração de riqueza.
Teóricos correram o mundo, e mesmo aqui em nossas universidades não faltaram “expertises” que retiraram seus paletós do fundo do baú e se apresentaram como coveiros de uma era, e afirmavam o capitalismo como único sistema escolhido a tornar-se infinito, ou até que a humanidade sucumbisse às suas extraordinárias mudanças tecnológicas que deslumbravam exploradores e alienados. Aqueles em números percentuais cada vez menores, estes sempre crescentes e bem mais acomodados aos desígnios divinos que os confortavam diante da possibilidade de, pelo trabalho, e com a força dos céus, poderem ascender a patamares superiores.
Mas não se falava das classes sociais. Até mesmo alguns sociólogos se encarregaram de enterrá-las. Consumou-se, diziam com a autoridade de boquirrotos, que não mais havia luta de classes. Também morrera a ideologia, alegremente enterrada por reacionários que não abriam mão dela, sorrateiramente. Enfim, conseguiram até mesmo difundir largamente a idéia do fim da História. Só sobrava (o cacófato faz sentido) o capitalismo, e teríamos que conviver com ele, com as imposições unilaterais dos Estados Unidos e com a certidão de legalidade da usura, ganância, corrupção, desvios de moral e a pobreza crescente da maioria da população mundial.
Mas, como profetizou Vandré, aos poucos foi se aproximando o dia em que o mundo ia virar. Se um onze de setembro em 1973, no Palácio de La Moneda, em que um golpe militar e a morte de um presidente, Salvador Allende, abriu espaço para transformar o Chile em cobaia do neoliberalismo; outro onze de setembro, em 2001, com o ataque no coração do império, abriu-se o caminho para a consumação de uma decadência prevista.
Só mesmo os tolos, os que desconhecem a História, imaginam ser eterno o poder de um império. Como tantos outros, que por épocas conseguiram impor seus domínios e assaltar as riquezas dos países mais pobres, também os EUA e as demais potências que com ele e seus instrumentos de controle dominaram e exploraram as demais nações, teriam o momento em que soariam para eles os dobres de finados.
Não se espere, contudo, que o enfraquecimento será acelerado. São nações ricas e poderosas, suas agonias têm mais a ver com a perda de hegemonia, não necessariamente deixarão de fazer parte dos banquetes dos mais ricos. Mas perderão a condição de impor perante as demais nações suas vontades imperiais, a menos que recorram a uma guerra de proporção mundial, para tentarem reerguer-se das cinzas seguindo-se a lógica macabra do capitalismo de desastre.
Sucumbem, no entanto, diante de circunstâncias criadas por elas próprias, como a confirmar a lição da dialética que afirma ser a negação da negação o elemento fundamental a levar adiante as transformações na vida, na natureza e na sociedade, com base no choque das contradições.
Ver o povo nas ruas, a protestar com veemência contra crise financeira, desemprego, inoperância do Estado em solucionar os problemas econômicos e sociais, fazia parte do cotidiano dos países do chamado terceiro mundo. Nesses, persistem ainda muitas desigualdades, mas o vento mudou de lado. Embora ainda existam insatisfações, desigualdades sociais, lutas de classe visível e presente nas manifestações públicas, já não são somente esses países a conviverem com essa situação.
Espalha-se pelos países ricos centrais, por toda a Europa e nos Estados Unidos, a insatisfação da população pelo desequilíbrio fiscal desses países, contra a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria responsável por toda a situação crítica da economia, contra o desemprego crescente, a falta de perspectiva da juventude e a corrupção que afeta todo o sistema político e financeiro. Enfim, todas as pragas escondidas dessa população, e que são como vírus e bactérias que acompanham o capitalismo, se disseminam agora à vontade, diante da baixa imunidade que joga o sistema na unidade de terapia intensiva.
De outro lado, a força que impulsionou toda a expansão das finanças mundiais, modernizou as relações interpessoais e entre as nações, garantiu rapidez na comunicação entre as empresas e facilitou o deslocamento rápido de suas mercadorias, a tecnologia que apontava o capitalismo como vitorioso frente a outro sistema que parou no tempo, voltou-se contra seus criadores. A globalização trouxe os países pobres para o banquete dos ricos.
A internet, e com ela as redes sociais, potencializaram revoltas e facilitaram as comunicações entre aqueles que trocavam entre si opiniões que se disseminavam rapidamente, dando conta de que determinadas situações não são ocorrências do acaso. Aos poucos as pessoas foram tomando coragem e buscaram soltar seus protestos não somente pelos caminhos virtuais. Muito embora elas não consolidem mudanças, porque lhes faltam organicidade. Mas isso não ocorre apenas nesses dois últimos anos, em que se intensificou a crise econômica mundial. Uma grande revolta ocorrida no final da década de 1990, em Seattle, por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio, já havia sido convocada pela internet, celulares e redes sociais.
Após as rebeliões nos países árabes, e como eu já escrevi em outros textos, isso aconteceu também como decorrência da própria crise que impediu as grandes potências de continuarem mantendo esses regimes ditatoriais e que lhes serviam, essa prática foi se acentuando nos países ricos, onde se anunciavam situações críticas, quebra do sistema financeiro como decorrência de falência de bancos e desemprego gerado por medidas políticas rigorosas para conter o aumento do déficit fiscal.
Grécia, Irlanda, Islândia, Espanha, Portugal, Itália, Inglaterra, França... Agora Estados Unidos, e sabe-se lá quantos mais estarão submetidos à pressão popular de um lado e às dificuldades de darem respostas à falência econômica de seus países. Certamente, ainda teremos muito a escrever sobre o andamento desses conflitos. Eles estão apenas começando e nos dão a impressão de que o século XXI não será diferente do que foram os dois últimos séculos.
Transformações sociais aceleradas e a troca do poder hegemônico entre as grandes potências, ou a substituição delas nesse jogo de xadrez da geopolítica mundial, indicam que o novo século não será o da catástrofe ambiental, como querem alguns para desviar as atenções da podridão capitalista. Mas de uma profunda alteração do poder mundial, com a entrada em cena de nações que por muito tempo foram colocadas na condição de servidão para os países europeus e os Estados Unidos.
O jogo apenas começou. É a volta do cipó de aroeira, no lombo de quem mandou dá!
Na minha opinião, o mundo caminha para o multilateralismo,uma maior distribuição de forças já que os países dependem cada vez mais uns dos outros e neste cenário não espaço para potências isoladas.
ResponderExcluirÉ findo o tempo dos ídolos, o novo tempo não se organiza entorno da vontade de um homem, um país, uma empresa, mas de vários homens, países e empresas.
Devemos parar de pensar em termos bipolares.
Abraços
O questionamento da forma de direito legitimadora de poderes das sociedades concentradoras, tanto de riqueza material quanto simbólica, não é questionamento da Democracia autêntica.
ResponderExcluirÉ questionamento dos mecanismos e espaços ocupados nas democracias atuais - de formato imperialista – que atravancam os avanços e conquistas sociais, que criam barreiras contra a autenticidade de valores de humanidade e que ainda obstacularizam a autonomia dos povos em todos os rincões do mundo. É realidade mundana e compartilhada, cada vez mais e intensamente.
E isto é um espetáculo imperdível, pois conclama a atividade organizada dos povos, que ainda reúnem energia e lutam pela liberdade e igualdade, solidariedade e justiça!
Meus parabéns, Romualdo, pela síntese crítica!