sexta-feira, 1 de julho de 2011

ANOS 1980: O renascimento do Movimento Estudantil em uma “década perdida”.


Fui convidado a fazer uma palestra sobre o Movimento Estudantil nos anos 80, para o I Curso de Formação Política dos Estudantes de História, organizado pelo Centro Acadêmico daquele curso na UFG. Como eu já tinha um texto que elaborei para a Revista UFG Afirmativa, publicada em 2009, resolvi postá-lo aqui no Blog. Para aqueles que viveram essa época fica um pouco de nostalgia, para os que nasceram dos anos 80 para cá registramos uma parte de uma intensa luta, que deve ser vista, claro, considerando-se todas as diferenças existentes entre o ontem (década de 1980, sec. XX) e o hoje (começo da segunda década do sec. XXI). Para a nossa geração fica a certeza de que "fizemos história" , combatemos o bom combate. Não cito nomes, para não cometer a injustiça de esquecer alguns, mas o documentário que fizemos e que será apresentado no curso pode também ser visto no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=-cWCQtsVD94 

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Em março de 1980 eu entrei na Universidade, no curso de História. Recém-chegado à Goiânia, vindo da cidade de Morrinhos, onde morei por quatro anos depois que cheguei da Bahia em 1974, eu não possuía nenhum histórico anterior de participação no movimento estudantil. Ao contrário, eu era mais um jovem alienado, como a maioria daqueles da minha idade, e ainda não compreendia bem o que acontecia no país.
Mas tudo mudaria a partir de então. E posso dizer, antecipando a conclusão que virá a seguir, que me tornei protagonista de um período de intensas lutas, e pude vivenciar de corpo e alma o renascimento do movimento estudantil e, ao mesmo tempo, contribuir com uma geração que pode se orgulhar de ter conduzido o nosso país ao processo de redemocratização política.
No antigo ICHL, Instituto de Ciências Humanas e Letras, concentravam-se os Centros Acadêmicos mais atuantes, mas não os únicos. Os demais espalhavam-se por várias outras unidades: Agronomia, Veterinária, Medicina, Engenharia, Farmácia, Odontologia etc. A concentração de quatro importantes Centros Acadêmicos àquela época (História, Ciências Sociais, Letras e Jornalismo – outros se destacariam nos anos seguintes), fez daquele instituto o centro das manifestações. De onde partiam, quase sempre, centenas de estudantes bradando palavras-de-ordens, em direção à reitoria ou a algum ponto onde se encontrasse alguma personalidade política que se tornasse alvo de nossas revoltas.
Ainda em 1980 entrei na diretoria do Centro Acadêmico de História e ascendi três anos depois à presidência do mesmo.  Em 1981, já como Secretário Geral do C.A. pude participar de uma das maiores greves da História do Movimento Estudantil pós-reconstrução da UNE (1979), e fizemos em Goiânia, durante o desfile de sete de setembro, uma manifestação que ganhou as manchetes de todos os telejornais e jornais impressos da capital. Uma foto, em que quatro policiais disputavam minhas partes em plena Avenida Tocantins, tornou-se capa dos três diários. E enquanto as manchetes de capa eram preparadas eu e mais dezenas de outros colegas éramos fichados no DOPS e na Polícia Federal. 
Mas a par dessa repressão, conseguimos fazer uma greve com intensa participação por mais de cem dias, e no final, desgastado pela inflexibilidade, derrubamos o ministro da Educação Eduardo Portela, que foi substituído pelo General Rubem Ludwig. Embora militar, este conseguiu estabelecer um diálogo com  as lideranças da greve e algumas reivindicações foram atendidas. A greve cumpriu seu objetivo, e foi um momento importante dentro do processo de desgaste que passava o governo ditatorial dos militares.
 1982 foi o ano em que retomamos nosso direito de eleger diretamente o governador de Goiás e no ano seguinte pudemos demonstrar que esse fato só colocava mais ímpeto em nossas lutas. Levantando a bandeira do meio-passe estudantil realizamos um dos mais espetaculares movimentos da história do movimento estudantil goiano e encurralamos um governo democraticamente eleito, demonstrando que a voz das ruas e dos movimentos sociais é quem define a importância da democracia. Por mais de quatro meses, de intensas mobilizações, manifestações, pulas-catracas – boicote ao pagamento de passagens nos coletivos -, e desvios das rotas dos ônibus para nos levarem à manifestação em frente ao Palácio do Governo, criamos um verdadeiro caos no sistema coletivo urbano de Goiânia e desesperamos as principais autoridades do governo de Goiás.
Entre ônibus depredados (a maioria por ações fora do nosso controle, dado à dimensão que o movimento tomou), queimados e lideranças presas, ameaçadas de processos, passaram-se praticamente seis meses de intensas lutas. Partíamos quase sempre em manifestações que saíam do ICHL, onde instalamos um QG. Quase todos os dias tinham, revezando-se, várias lideranças do Movimento Estudantil, gritando palavras de ordem e conclamando os estudantes a manterem o movimento do pula-catraca. Sabíamos que a condição para conseguirmos negociação com os representantes do governo era a manutenção de uma luta com grande participação dos estudantes. E, à custa do sacrifício de aulas, e de perda de semestre, como no meu caso, conseguimos o compromisso do governador, à época Ìris Rezende, de enviar mensagem para a Assembléia Legislativa garantindo esse nosso direito.
A desmobilização era inevitável depois disso. Estávamos satisfeitos com o resultado, um pouco cansados por tanto tempo em luta, e o tombo veio a seguir. De meio-passe vimos nossa reivindicação reduzida para um terço de desconto nas passagens. Conquistamos esse desconto e no ano seguinte retomamos a luta até chegar a um momento memorável, quando desviamos alguns coletivos e paralisamos todo o centro de Goiânia, parando ônibus e bloqueando três principais avenidas de Goiânia: Araguaia, Goiás e Tocantins. Mais de uma centena deles ficaram parados, porque no início só liberávamos carros pequenos, e à noite pudemos ver a dimensão do nosso ato, quando os telejornais transmitiram imagens tomadas de um helicóptero e um mar de ônibus parados em toda a praça cívica tornaram-se a imagem principal das manchetes daquela noite e dos jornais do dia seguinte.
Naquele mesmo dia poderíamos ter fechado acordo com as autoridades que foram até ao coreto para negociar conosco, não fosse uma extensão da revolta que começara na avenida anhanguera, e o povo, também revoltado com os constantes aumentos das passagens e a péssima qualidade dos coletivos, começou a depredar os ônibus, e seguiu-se uma turba incontrolável que subiu pela Goiás e Araguaia até onde os ônibus estavam parados. Não pudemos controlar e a maioria desses ônibus teve seus vidros quebrados. Perdemos ali momentaneamente a condição de negociação, mas não o pique do movimento. Seguimos em frente e conseguimos o desconto de 50%: o meio-passe que todos os estudantes hoje podem usufruir.
 Esses dois momentos apenas ilustram o que foi o movimento estudantil nos anos 80, mas não somente eles, muitos outros, pois a marca dessa época foi de permanente mobilização social e atividades culturais. Tínhamos também pela frente, ainda em vigor, embora já em processo de desgaste, uma ditadura militar, que nos negava, inclusive, o direito de escolhermos o presidente da República. E essa foi mais uma batalha da qual essa geração participou intensamente. Desde o primeiro comício das diretas, que ao contrário do que se imagina não ocorreu na Praça da Sé em São Paulo nem no Espírito Santo, mas sim em frente ao Ginásio da UCG, para onde havia sido marcado o ato que contou com a presença dos senadores Teotônio Vilela e Ulisses Guimarães e foi organizado pelo Diretório Central  dos Estudantes da UCG com o apoio de outras entidades. O espaço ficou pequeno e o ato foi transferido para o meio da rua, em frente ao ginásio. Iniciávamos, assim, mais uma frente de batalha, que perdurou até o momento da votação da Emenda Dante de Oliveira, e após termos vivenciados multidões percorrerem praças e avenidas, somando-se em alguns casos a mais de um milhão de pessoas. Apequenado e medrado o Congresso, ainda sob o controle dos militares e de setores conservadores, negou-se a garantir o direito de termos eleições diretas para presidente. Rejeitada a emenda uma aparente frustração e uma visível revolta transpareciam um sentimento de derrota.
Mas nossa geração ainda tinha pela frente duas lutas importantes. Derrotar os militares e escolher um congresso constituinte. Não nos restou outro caminho a não ser apoiar o senador Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Em 1984, tendo sido vice-presidente regional Centro-Oeste da UNE, pude representar a UNE na Comissão Nacional da Juventude Pró-Tancredo, ao lado de Aécio Neves, Roseana Sarney, Guel Arraes, Delcimar Pires (goiano e então presidente da UBES) e uma filha de Jorge Amado, que não me recordo o nome. Pudemos assim, por caminhos transversais, derrotar os militares e abrir caminho para um novo tempo em nosso país. Muito embora a eleição de alguns presidentes “pós-tudo” isso tenha nos deixado um pouco frustrados, pelo que representou em termos de força ideológica e popular aquelas lutas.
A década de 1980 terminaria enterrando alguns dos sonhos de sua geração, embalada que era pela bandeira do socialismo e da liberdade, o oposto a tudo aquilo que vivíamos havia décadas em nosso país. Mas derrotados os militares aqui no Brasil e em boa parte da América Latina, vimos assumirem ao poder governos que não representavam o nosso discurso, e, ao seu final, outros desmoronavam nos países onde acreditávamos estarem plantadas as sementes de um sistema que deveria sagrar-se vitorioso no embate com o capitalismo. O socialismo entrou em crise nos países do leste europeu e na União Soviética e embalou de outra maneira os sonhos de uma nova geração. A nossa, buscando capitalizar as intensas lutas, deixou a universidade e mergulhou na nova onda que seguia o mundo, preocupada em garantir junto ao novo deus, o mercado, as melhores posições. Outros voltaram à universidade na condição de professores, mas já contaminados pelo novo discurso que suplantara ideologicamente as utopias socialistas.
Aqueles, que como eu, permaneciam fiéis a um ideal já visto como ultrapassado, eram tratados jocosamente como dinossauros, jurássicos, para repetir a palavra holywoodiana da moda, embalada pelo sucesso dos filmes de Spielberg. Era in ser neoliberal, embora ninguém aceitasse a pecha. Eram esses os chamados para comentar os rumos da economia mundial. A década de 1980 passou a ser vista como a “década perdida”, embora a responsabilidade por isso não fosse assumida por quem verdadeiramente tornara-a assim, mas sim àqueles que lutavam contra tudo que a transformara em uma década absolutamente improdutiva. O discurso nacionalista, estatista, e da defesa da soberania, foi dado como o responsável por todos os erros, quando na verdade não passara de discurso. A prática entreguista, submissa aos interesses imperialistas, responsável pelo caos político e econômico, safava-se aderindo ao novo estilo neoliberal de ser: da competência, da expertise, da hipocrisia. Deu no que deu: crises econômicas mundiais, aumento da desigualdade social e da marginalidade.
Vivemos dias intensos. Combatemos, como costumávamos dizer, o bom combate. Divergíamos com rigor, mas respeitando nossos adversários no movimento estudantil, caminheiros de uma mesma direção. Muito embora por meio de outras idéias, tínhamos objetivos parecidos. E éramos duros com os defensores da ditadura militar, e isso nos custou muitas prisões e espancamentos, apesar de já no fim do período das torturas, mas ainda éramos forçados a freqüentar os DOPS e DOI-CODIS.
Pudemos recentemente, em dois encontros que realizamos para juntar aquela geração, nos reencontrar com o passado, mas receosos de discutir o presente. Naturalmente, muitos de nós nos encontramos em posições diferentes dentro do espectro político e ideológico, e alguns daqueles que divergiam naquela época hoje se encontram ao mesmo lado, como a reforçar o sentimento real, de que a vida é plenamente repleta de contradições. Mas foram reencontros marcados por sentimentos saudosistas, repletos de lembranças de uma época que marcou no século XX a última geração embalada pelo ambiente da guerra fria. Soubemos e sabemos nos respeitar, principalmente, porque tínhamos plena convicção que nossos objetivos eram pautados por sentimentos humanistas, solidários e contrários a toda e qualquer opressão.
Não, definitivamente, a década de 1980 não foi uma década perdida. A nossa geração também deixou plantadas nela as sementes de um novo Brasil, que vemos agora germinar.

(*) Romualdo Pessoa Campos Filho, foi Secretário de Imprensa e Divulgação (1980), Secretário-Geral (1981) e presidente (1982) do Centro Acadêmico de História; Diretor de Imprensa do DCE (1982); Diretor de Imprensa da UEE-GO (1983); Vice-presidente Regional Centro-Oeste da UNE (1984-1986); Vice-presidente da UEE-GO (1987);

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