sexta-feira, 20 de maio de 2011

O CÓDIGO FLORESTAL - A DIALÉTICA DA NATUREZA E A SOBREVIVÊNCIA HUMANA

“Quode magis cogito magis dubito” - 
Quanto mais penso, mais duvido
(Francisco Sanches, pensador português, sec. XIV-XV)

Não é a primeira vez que abordo essa temática aqui neste blog. Logo ao final vou inserir os links para todos os textos que tem os problemas ambientais como tema. Mas, diferentemente dos fundamentalismos e maniqueísmos que conduzem a luta ecológica, e dos interesses oportunistas e políticos de algumas (poucas, mas bem estruturadas) ONGs internacionais, não abdico em meus artigos de considerar a dialética como elemento essencial para que possamos entender toda a situação que nos envolve.
A discussão do momento gira em torno do relatório do novo Código Florestal, elaborado pelo deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, a pedido das lideranças e do governo, à época tendo à frente o presidente Lula. Equilibrado, e bem racional, a meu ver, o relatório do deputado é um texto que antes de ser combatido deveria ser estudado e discutido.
Nas universidades, como percebo e tenho informações, aqueles que são críticos do texto deixam-se conduzir pela maneira como a mídia dá o enfoque e como as entidades ambientais constroem seus argumentos.
No primeiro caso não se distribui o relatório em sua íntegra para que todos tomem conhecimento, e paralelo a isso, as várias opiniões a respeito, contrárias e favoráveis. Enfim, essa não é uma prática, infelizmente, na universidade. Alguns colegas limitam-se a construir um discurso e assim convencerem seus alunos daquilo que ele defende. Parece que há um medo do contraditório, como a tentar impedir aquilo que é incontrolável: nossa vida transforma-se dialéticamente, e o seu impulso, o que possibilita essas transformações são as contradições. Negar-se, e afirmar-se, no choque das forças que se opõem. Não há, na vida, nada que se construa, sem que isso implique algum tipo de destruição. Ao que Engels chamava de “negação da negação”.
No segundo caso, o maniqueísmo presente nos argumentos ambientalistas e o discurso do medo, que têm sido a tônica no mundo nas últimas décadas, transformam um tema que deveria ser conduzido pela racionalidade em uma espécie de dogma fundamentalista, para o qual todos que vierem a defender o progresso social deveriam ser queimados no fogo do inferno. Muito embora tenhamos também consciência que o significado dessa palavra, “progresso”, pode ter vários sentidos. Mais uma vez a contradição.
Particularmente, eu tenho plena noção dos problemas ambientais. E aqui não confundo a palavra “ambiental” com natureza, como muitos fazem. O ambiente (ou o meio-ambiente) inclui não somente a natureza natural, mas também todo o habitat, o espaço onde se inserem animais, plantas, o ser humano, e tudo que por eles tenha sido construído.
Alguns desses “problemas” decorrem da própria maneira como a vida evolui, e como o espaço vai se transformando para se adaptar às necessidades dos seres vivos, e, obviamente às mudanças geradas por eles próprios. Mas também outros fatores abióticos impõem algumas transformações que fazem com que, permanentemente, o nosso planeta, a terra, altere sua configuração, eixo, rotação e outros aspectos aparentemente imutáveis. O espaço transforma-se permanentemente, com ou sem a ação humana. E isso, dialeticamente, reage sobre nós, provocando todos os tipos de alterações e de necessidade de nos readaptarmos. Assim, o organismo vivo se adapta e se altera, como uma condição para sua própria sobrevivência. Ave, Darwin!
A maneira de não transformarmos idéias em dogmas é exatamente partirmos do princípio que a vida é marcada por contradições. E não há contradição maior, no mundo que o ser humano construiu, do que nos depararmos com uma população de mais de 6 bilhões de pessoas, em muitos casos vivendo em cidades que ultrapassam 10 milhões de habitantes. Isso mais do que triplica se incluirmos também no ambiente citadino os demais bichos que nos fazem companhia. Alguns dos quais nos dias atuais são melhores cuidados do que gente.
Ocorre, também, que nos movemos por interesses. O jogo desses interesses transformou-se ao longo de nossa história na base política que construiu a nossa sociedade, a cultura, a indiosincrasia, a religião etc. A disputa econômica pelo controle dos meios de produção, da riqueza, da terra, e... do Poder! Assim, como nos ensina Raffestin(1), inspirado em Michel Foucault(2), com “P” maiúsculo, para se diferenciar de outros poderes, com “p” minúsculo. Aqueles pequenos poderes que nos acompanham em nossas relações cotidianas, desde a família, até a escola, o trabalho etc.
Então, para entendermos que por trás dos discursos existe “muito mais coisas do que imagina nossa vã filosofia” (parafraseando Shakespeare), precisamos ir além das palavras e frases, muitas delas com forte impacto, como das orações que afetam a fé e faz com que as pessoas as tomem por verdades absolutas, porque são carregadas de simbolismos e, pela repetição, tornam-se dogmas inquebrantáveis. Os que discordarem são transformados em entes do mal, seguindo-se o princípio maniqueísta do gnosticismo primitivo do filósofo persa Mani: a luz e as trevas, o bem e o mal.
Vade retro, maniqueus!
Assim, melhor inspirar-se nas idéias de Voltaire e lembrar-se de uma frase a ele atribuída: “discordo do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo”. Dessa forma nos aproximamos daquele sentido dado pelos filósofos antigos, pelo qual somente pelo embate das idéias e das contradições que as mesmas carregam, é possível se atingir o conhecimento em plenitude. Evidentemente jamais como uma verdade tida como absoluta.
Todo esse rodeio filosófico que fiz decorre das dificuldades em se analisar os problemas ambientais do mundo contemporâneo, sem ser rotulado pelos mais engajados ativistas ecológicos como um ente do mal, preparando-se para tocar fogo sobre a terra e transformá-la em um deserto, pela hecatombe que se aproxima em razão das ações maléficas causadas por nós mesmos.
Tudo pode acontecer, ou vai acontecer, pois também a terra não é eterna. Mas precisamos entender que isso que está sendo citado como uma possibilidade, de uma aceleração no processo de destruição de nosso meio-ambiente, decorre na maneira como nós, seres humanos, construímos o nosso habitat. E todos nós, mesmo os mais ácidos críticos ecologistas, não abrimos mão de usufruir das regalias construídas por nossa imensa capacidade criativa. E tudo isso às custas da natureza.
Principalmente a partir do século XIX, quando se consolida o sistema capitalista, fundado na irrefreável sofreguidão em produzir mercadorias a uma velocidade cada vez maior, e transformar as nossas necessidades em ânsia de consumo. Transformamos-nos ao longo dos séculos seguintes em animais consumistas. Consumir e curtir as novidades mercadológicas e os novos produtos cada vez mais sofisticados tornou-se mais do que uma vaidade, passou a representar um vício que em alguns casos atingem a condição de uma verdadeira dependência. Em outras situações, essa lógica baseada no consumo empurrou aquelas pessoas deprimidas, doentes pelo stress causado pelas loucuras da vida moderna, a ir com sofreguidão aos shoppings, templos que passam também a ser uma espécie de depositório da catarse coletiva da cidade grande.
Claro, além disso, o estilo de vida construído dentro dessa lógica de consumo, inspirado naquilo que nos Estados Unidos passou a se chamar “american way of life”, acentuou a obsessão nos indivíduos em buscar permanentemente a ascensão social. De forma a atingir um padrão de vida que se caracterizasse pela garantia de possuir, sempre, os produtos que surgem como novidades no mercado. Acontece que o mecanismo que faz girar o capitalismo impede que isso tenha um limite, é preciso ter cada vez mais para não somente usufruir desses produtos sofisticados, mas também se apresentar na sociedade como vitorioso, porque capaz de poder comprar o que existe de melhor e mais sofisticado.
Tudo nos empurra para as cidades, e foi nelas que o capitalismo se realizou. Enquanto ali se aglomeravam exércitos cada vez maiores de pessoas, em sua maioria pobre, com condições econômicas sofríveis, fora delas consolidou-se um sistema concentrador baseado no latifúndio, na posse da grande propriedade e na utilização dessas terras para produção de monocultura. Principalmente de commodities, cujo preço vem a ser determinado pela moeda de referência internacional nos mercados mundiais.
Sem subsídios do Estado, e com financiamentos parcos também concentrados nas grandes propriedades, os pequenos agricultores abandonaram gradativamente suas terras, seguindo os passos dos filhos que em muitos casos já se dirigira para as cidades em busca de melhores oportunidades.
Assim, enquanto nas cidades concentravam-se uma enorme população de despossuídos, no campo uma quantidade pequena de proprietários concentrava infindáveis hectares de terras, produzindo não somente o que é necessário – como na antiga produção agrícola – mas fundamentalmente aquilo que vai possibilitar um lucro maior. Nas cidades, os milhões de citadinos vão a busca de empregos, conseguem salários, tentam ganhar cada vez mais para consumir as mercadorias que lhes seduzem, e, logicamente precisam para se alimentar. Já não mais produzem para si, mas para aqueles que possuem os meios de produção e determinam o que deve ser produzido.
As cidades modificaram-se espetacularmente em formas e linhas que comprovam a capacidade ilimitada do ser humano em transformar objetos e criar maravilhas tecnológicas. Só que para alimentar esses bilhões de pessoas, e saciar a necessidade de consumir mercadorias, o sistema capitalista acelerou de forma monumental a sua capacidade de inovar, de forma a tornar obsoleta o mais rapidamente possível a sua última invenção.
Ora, mas porque nos espantamos? Ao analisarmos as condições de vida nas sociedades em volta do mundo, e em nosso país particularmente, veremos que há um percentual ainda muito elevado de pessoas que estão fora desse mercado consumidor. No entanto, quando somamos a população daqueles países que somente agora estão acelerando seu desenvolvimento, chegamos a um número que corresponde a mais da metade da população mundial.
Estaremos próximo do limite dessas contradições? Essa é uma pergunta de difícil resposta, já que enquanto há vida a tendência é de sempre ampliarmos nosso grau de contradição. Mas o que fazer se na humanidade mais da metade de sua população ambiciona atingir a condição de vida semelhante à daqueles que vivem nos chamados países desenvolvidos? Porque todo esse alarmismo catastrófico, e ameaças de hecatombes, se intensificaram nos últimos anos, no momento em que os países ricos entraram em uma grave crise econômica e quando outros que estavam fora do "clube" iniciam uma escalada de crescimento e de desenvolvimento social?
De repente soam os sinos a indicar a hora em que a terra explodirá. E nos propõem, os que vêm dos trópicos, que por aqui devemos manter nossas matas, florestas e rios, para que por lá eles possam produzir mercadorias, agregar valor, vender suas mercadorias para nós, os velhos “subdesenvolvidos” e, assim, continuar enriquecendo a eles mesmos. Agora mediante uma nova forma de dominação: o colonialismo verde.
A palavra é CONSERVAÇÃO. Mas o que mais se fala é preservação. Há uma diferença substancial entre essas duas palavras quando o tema é a natureza. O conservacionismo possibilita que utilizemos da natureza os produtos necessários para a nossa sobrevivência, compreendendo que seu esgotamento impede que a vida humana possa prosseguir por mais tempo adiante. Esse é o desafio diante da contradição em que nos encontramos. São milhões de novas pessoas que adentram o mercado de consumo, ascendem a outras classes sociais e adquirem a capacidade de consumir mais e viver melhor. Não se pode negar a essas pessoas terem acesso a produtos que facilitem suas vidas nas cidades, mas isso implicará em mais e mais degradações à natureza.
Então, quando levantamos uma bandeira, por exemplo, de cuidados com a água, devemos ter em conta que a luta não é somente para manter a água límpida e perene. Mas garantir que mais pessoas possam usufruir de um bem que é condição essencial para a manutenção da vida. Devemos olhar para os dois lados da moeda, e não somente imaginar que o discurso de preservar a natureza encerra-se em si só. A natureza sempre vai servir ao ser humano, como serve a todos os outros seres vivos que a compõe e forma um equilíbrio que se sustenta em contradições.
O Código Florestal deve carregar essa compreensão. Num mundo em que um dos maiores problemas que se aproxima é a produção de alimentos, e a especulação em torno disso já produz inflação por todo o mundo, criar dificuldades para que pequenos e médios produtores possam produzir mais é consolidar o modelo concentracionista latifundiário, na medida em que esses agricultores continuarão a abandonar suas terras, deixando-as serem incorporadas pelo grande fazendeiro. Este interessado em produzir apenas commodities.
Ah, mas argumenta-se, os grandes latifundiários estão a defender o relatório do Código. Sim, eles se beneficiarão também. Mas esses sempre encontraram meios para isso e continuarão fazendo, independente do que o código determinar. Melhor seria, e acredito que isso é o mais justo, insistir no questionamento que motivou os movimentos sociais até esse modismo verde entrar em cena, combater o sistema de latifúndios, por fim a essa estrutura agrária arcaica e concentracionista. Não será através de uma legislação ambiental que isso acontecerá, mas com mais luta pela reforma agrária e pelo fim desse modelo. Gostaria de ver quantos se engajariam sinceramente nessa luta, principalmente as grandes ONGs, muitas delas financiadas por grandes corporações que investem fortemente na aquisição de mais terras em nosso país e inundam a produção agrícola com toneladas de venenos agrotóxicos.
Espero ter sido entendido, mas saberei me defender dos fundamentalistas, e não tenho receio em repetir uma frase do filósofo esloveno, Slavoj Zizek: “a ecologia é o ópio do povo”. Diz ele, numa entrevista à revista Magis(3): “É precisamente no terreno da ecologia que podemos delinear a demarcação entre a política da emancipação e a política do medo na sua forma mais pura. De longe, a versão predominante da ecologia é a da ecologia do medo – medo da catástrofe, humana ou natural, que pode perturbar profundamente ou mesmo destruir a civilização humana. Essa ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas que sucede o da religião”.
A gritaria maior em relação ao código se dá, e aí com justa razão, pela provável anistia que isentará todos aqueles que desmataram ilegalmente até o ano de 2008. Mas é absolutamente irreal a possibilidade dessas ações, que atingiram inclusive áreas de reservas florestais, virem a ser punidas com multas. Sabe-se muito bem que isso não acontecerá, e se acontecer recairá sobre os mais fracos, os pequenos e médios agricultores. Melhor será lutar para que o novo código seja efetivamente cumprido, e isso passa em primeiro lugar pela ampliação da estrutura que garante a fiscalização de um território que tem a 5ª maior extensão entre todos os países do mundo. Talvez decuplicar o número de fiscais e ampliar consideravelmente os recursos financeiros para que esse trabalho possa ser feito, com infraestruturas modernas e tecnologias avançadas, investimentos plenamente possíveis se houver vontade política para tal.
Caso contrário, seja qual for o relatório aprovado ele se tornará letra morta, como no caso da lei que pune crimes do colarinho branco, e, no entanto, não se vê nenhum grande executivo preso, a começar pelo banqueiro Daniel Dantas. Ele também proprietário de grandes extensões de terras no Estado do Pará e segundo a investigação comandada pelo delegado Protógenes Queiroz, na operação Satiagraha, culpado por vários crimes. Mas do que uma lei é necessário a determinação para fazê-la funcionar.


NOTAS:

1. RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993
2. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal, 2007
3. ZIZEK, Slavoj. A Ecologia é o Ópio do Povo. In: Mágis - Revista da Unisinos, no. 05, dez 2009-jan 2010

Links:

2 comentários:

  1. Prof. Romualdo,

    Belo exercício do método dialético. Teu texto enfrenta com coragem lugares comuns que giram em torno dessa discussão. O problema é esse teu método de análise leva o uma leitor a uma conclusão um fatalista: nada impede as coisas de aconteceram do jeito que tem de acontecer. Afinal, novos fiscais não serão contratados e banqueiros não serão presos, logo, "não importa o que for aprovado, a nova lei nascerá morta". Essa tese é reforçada pela idéia de as multas não resolverão. Em um sentido sim, pois madeira derrubada não volta pra floresta. Mas, anistiar as multas é dar sinal verde ao desmatamento.

    ResponderExcluir
  2. Renato, acho sinceramente que as multas jamais serão pagas. Mas acredito que seja possível criar um sistema de compensação pelo que foi desmatado, bem como também subsidiar pequenos e médios produtores para que partes de suas terras possam ser preservadas, principalmente às margens de riachos. Quanto a daqui em diante, sim, é verdade, a lei só terá validade se houver um sistema rígido de fiscalização. Como é atualmente, sabemos que não funcionará. Não precisa ser nenhum especialista para saber disso. É real. Então, tem que investir em mais estrutura e número (bem) maior de fiscais. Se isso não acontecer, meu caro, não é profecia, é fato, a lei funcionará tanto quanto outras semelhantes. Inclusive o atual código que não foi devidamente respeitado. Abç e obrigado por participar do Blog.

    ResponderExcluir