quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

ESTADO, AGRONEGÓCIO E MEIO-AMBIENTE – POLÍTICAS TERRITORIAIS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA BRASILEIRO

Nos últimos tempos o mundo tem se deparado com um desafio, muito além das preocupações malthusianas, mas que nos força a relembrar das teorias de Thomas Malthus.  A análise que indicava a impossibilidade da humanidade poder garantir produção de alimentos para uma população que crescia vertiginosamente, praticamente perde força quando passamos a conviver com a capacidade tecnológica que o mundo alcançou ao final do século XX, inclusive na possibilidade de produzir alimentos nas situações mais adversas. 

Técnicas de lidar com o solo, inovações tecnológicas que aceleram o ritmo do plantio e da colheita, insumos que aumentam a capacidade produtiva, e o crescimento da indústria química utilizada no combate às pragas (para o bem ou para o mal), colocaram por terra boa parte das questões postas por Malthus.

Mas, por outro lado, há uma lógica que impede essa capacidade tecnológica de vir suprir a contento a necessidade que existe em quase todos os continentes, principalmente África e Ásia, de reduzir o número de indivíduos que vivem na mais absoluta miséria e com boa parte deles, principalmente crianças, morrendo de desnutrição. Não tem acesso aos alimentos básicos que possam garantir suas sobrevivências.

Essa lógica é a maneira como o capitalismo transforma toda essa capacidade tecnológica em potencial produtivo visando exclusivamente a ampliação dos lucros. Assim, existe sim, uma enorme potencialidade decorrente de todas as inovações que revolucionaram incessantemente os meios de produção, mas toda essa capacidade termina servindo aos interesses mais gananciosos de acumulação e concentração de rendas.

Produzir alimentos, principalmente as chamadas commodities, mercadorias que tem os seus preços fixados no mercado internacional tem atraído muitos investidores. Traduzindo em miúdos, são mercadorias, principalmente minerais e produtos agrícolas, com pouca ou nenhuma industrialização, consequentemente com baixíssima agregação de valor, permanentemente monitoradas pelas bolsas de valores.

Esses produtos agrícolas têm seus preços fixados em dólares em nível internacional, com uma produção de larga escala, como característica principal o fato de serem produzidos em grandes propriedades e quase sempre monoculturas. Seus preços são, portanto, variáveis não somente em função da cotação do dólar, moeda padrão de referência internacional, mas também porque termina também sendo submetidas às oscilações das bolsas de valores, e, consequentemente, estão sujeitas às manipulações tradicionais que ocorrem no mercado financeiro. O Brasil tem se destacado nesse setor, como um dos maiores produtores de Soja, superando os EUA em 2017. A soja, assim, soma-se ao café, suco de laranja, açúcar e carne bovina.[1] Embora essas produções oscilem de acordo com as condições climáticas.

Obviamente, esses mecanismos que movem o sistema capitalista global, não possuem a menor preocupação em transformar toda a capacidade tecnológica em investimentos para conter o aumento da fome em várias partes do mundo, notadamente nessas que citei anteriormente. Em alguns lugares, como na região da Somália e todo o seu entorno, no chamado “Chifre da África”, a situação aproxima-se de uma enorme catástrofe, com milhões de pessoas deslocando-se para outras regiões e boa parte delas sucumbindo à fome e perdendo suas vidas nesses trajetos.

Portanto, o interesse é meramente especulativo, com base na ganância e na garantia de lucros crescentes, como de resto é a maneira como o sistema funciona. Isso significa dizer que os investimentos possíveis de serem feitos obedecem à lógica do mercado mundial, e, portanto, se a crise econômica já estava alterando os rumos do capital, isso tende a ser mais determinante no pós-pandemia, até mesmo por conta da intensificação da necropolítica, termo elaborado por Achille Mbembe, inspirado nas formulações de Michel Foucault com a biopolítica e biopoder. Uma atitude de negligência e de negação de um racismo estrutural contido nas instâncias do Estado e reforçado por uma política governamental que despreza a vida, principalmente das camadas mais pobres e desassistidas da sociedade.

Mas é sempre bom considerar que o mercado de alimentos é potencialmente lucrativo, ou, melhor dizendo, das commodities agrícolas, já não mais somente como produtos que visem atender apenas às necessidades alimentares da população, mas também porque boa parte deles passa a se constituir em matéria-prima para produção de energia, como no caso da cana-de-açúcar (embora o etanol não seja ainda uma commoditie, o açúcar o é), o milho e outros que podem passar também a serem produzidos com esse objetivo. Além de boa parte da produção de soja atender ao mercado de ração para alimentar o gado que em boa parte do mundo, principalmente Europa é criado em confinamento.

A crise econômica, que segundo a ONU levará o mundo em 2021 a maior crise humanitária desde a segunda guerra mundial,  tende a ampliar a crise alimentar em algumas partes do mundo, mas a tendência deve se manter, de os investimentos continuarem sendo feitos naqueles produtos marcados como commodities porque são os que garantem mais divisas para os países como o Brasil e possibilitam maiores lucros a quem investe no mercado de produtos agrícolas. Mesmo que isso signifique uma crescente concentração de rendas, por serem produtos de baixo valor agregado. Para o Estado Brasileiro o que mais importa é o fato de essa atividade ser a principal responsável pelo superávit na balança comercial. Além do poder político que possui esse setor do grande agronegócio, de grandes latifúndios, sustentados no Congresso Nacional por uma forte banca ultra conservadora, empoderados pelas bancadas do boi e da bala.

Como esse é um espaço com enorme potencial produtivo e com ainda uma área cultivável imensa a ser explorada, se for desconsiderado, como tem sido, a importância da biodiversidade, provavelmente poucas alterações acontecerão em relação ao crescente interesse pela aquisição de terras em áreas desse bioma, como também na Amazônia e na região de transição entre o Cerrado e a Caatinga. Essa nova fronteira agrícola já atende pelo nome de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia), que tende a se acelerar quando a ferrovia Norte-Sul entrar em funcionamento integralmente. Algum dia isso deve acontecer.

A delineação desse quadro, já em curso, tem levado à aquisição de grandes quantidades de terras por empresas, e suspeita-se que até mesmo governos estrangeiros através de “laranjas”, ou como chamávamos nos anos 1980, “testas-de-ferros”, e passa a se constituir em um excelente investimento, principalmente em regiões de expansão agrícola como o Cerrado.[2]

Consequentemente os impactos que decorrerão de tudo isso tende a ampliar o processo de degradação ambiental e de aceleração da devastação desse bioma. Por mais que as pesquisas desenvolvidas nas Universidades e por algumas ONGs e institutos focados na sustentabilidade ambiental, indiquem a existência de um rico potencial da biodiversidade do Cerrado, a resposta para investimentos e o quantitativo de lucro que advirá em atividades exploradas pelas populações tradicionais, não são suficientes para se contrapor a essa lógica gananciosa e destrutiva. Especulação, grilagem de terras e violência, tendem a aumentar, seguindo uma lógica perversa que afeta há décadas a população da Amazônia.

Nos dias de hoje assistimos estarrecidos aos desmatamentos impunes na Floresta Amazônica, avançando sobre áreas de proteção ambientais e reservas onde vivem populações indígenas, com o objetivo de espalhar gado por toda aquela região. À custa de um genocídio ambiental.

Cabe a todos aqueles que vivem nesses biomas sob perversos ataques criminosos e os que estudam sua riqueza natural e importância da sua biodiversidade, insistir em apontar os riscos que isso causa e a possibilidade de futuramente boa parte desses biomas se tornarem improdutivos e desertificados. O uso excessivo da água para irrigação, por exemplo, com a utilização de grandes pivôs centrais, a esgotarem rios, córregos e lençóis freáticos, é um bom exemplo dos desatinos que se cometem sem levar em conta os desgastes inevitáveis desses excessos, como por exemplo, a salinização do solo.

Acrescente-se a isso outros interesses que estão por trás desse modelo de produção agrícola. Refiro-me agora às essas disputas exercidas por corporações gananciosas, e criminosas, que inundam o campo com produtos químicos responsáveis pela ampliação dos casos de câncer, e outras doenças que causam deformidades, no Brasil e no mundo. São os agrotóxicos, venenos que eliminam pragas, mas que trazem junto um efeito perverso e profundamente destrutivo para as pessoas e toda a biodiversidade.[3] Agora que os representantes latifundiários tomaram o Congresso de assalto, já se realizam mudanças da legislação para facilitar a comercialização desses venenos.[4]

Essas corporações, a maioria multinacionais, ou transnacionais (porque o mercado de ações se globalizou), usam de todos os tipos de práticas delinquentes para burlar legislações e buscar apoio em setores políticos conservadores com o intuito de conter proibições – como ocorre em outros países – mesmo para certos produtos claramente comprovados como extremamente nocivos à vida humana. Calcula-se que cada brasileiro, em média, por ano consuma em torno de 5,2 litros de agrotóxicos, embora existam estudos que apontem para uma maior quantidade.[5]

E essas Corporações atuam não somente na área de alimentos, como é de suas características, mas em outros setores geradores de disputas internacionais e guerras como o petróleo, indústria farmacêutica e de produtos veterinários. São gigantes que possuem fortes influências em poderosos Estados-Nações, principalmente os de suas origens, como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. Muitas delas tem seus produtos também fabricados aqui no Brasil, como Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto.

Como defender o Cerrado e a Amazônia em um tempo em que todos os olhares gananciosos e geopolíticos estão voltados para esses imensos chapadões de uma paisagem que dá uma impressão de pobreza, mas que esconde uma enorme riqueza? Se todas as transformações que são visíveis nos Estados centrais, ou do imenso sertão brasileiro, se deram às custas de grandes investimentos agrícolas, e com isso possibilitou um forte crescimento econômico, como frear nos dias de hoje a continuidade de um processo que se agigantou e ameaça a riqueza natural de um importante bioma? Pois se foi exatamente isso que aconteceu com a Mata Atlântica, em toda sua extensão, desde o Nordeste brasileiro até o Sudeste? A diferença é somente temporal, pois enquanto a destruição da Mata Atlântica levou séculos para atingir esse percentual ínfimo de menos de 15% do remanescente original, o ímpeto e a celeridade com que se dá a destruição do Cerrado e da Amazônia é muito mais acentuado, decorrente de todos os avanços tecnológicos e levará apenas décadas para atingir esses mesmos índices.

Esse é um desafio que se apresenta para todos aqueles que são estudiosos do Cerrado e da Amazônia, mas que compreendem também todo o processo de desenvolvimento socioeconômico desse enorme sertão brasileiro, até a metade do século XX pouco valorizado. O progresso que se vê é conseguido às custas de uma enorme concentração de riqueza, como decorrência do modelo agrícola utilizado, que causa outros efeitos colaterais. Um deles, a expulsão de quase toda uma população rural para as cidades, potencializando um crescimento desordenado das mesmas e um cinturão de miséria em suas periferias responsáveis em grande parte pelo aumento da criminalidade e do consumo de drogas que destrói o futuro de boa parte da sua juventude e mantém as pessoas reféns da violência e do medo.

Assim, são as condições criadas pela acelerada penetração em direção ao heartland brasileiro, desde a marcha para o Oeste na época varguista, até a instalação da capital federal, seccionando o território goiano, e todo o projeto de integração nacional visando o controle estratégico da grande Amazônia posto em prática por Juscelino Kubitscheck no final da década de 1950 e consolidada pelos governos da ditadura militar.

Mas foi mesmo a revolução tecnológica na agricultura o principal responsável pela transformação acelerada de um solo seco em terreno de ótimo potencial produtivo. Aliado à característica climática sem muitas alterações, dividida em duas estações, a seca e a chuvosa, propícia à atividade agrícola e à pecuária.

Desfazer essa visão de um território somente adequado à instalação do grande agronegócio, e buscar outros caminhos alternativos de desenvolvimento, que se preocupe com a conservação da biodiversidade e de outros modelos sustentáveis de produção agrícola, é uma enorme tarefa, que cabe à universidade, aos pesquisadores e a todos aqueles que lutam pela exploração democrática e não destrutiva das riquezas que a natureza possui, em benefício da maioria e em prol da construção de um mundo com outra compreensão a respeito da vida.

É evidente que a conjuntura política torna muito difícil essa tarefa. Aliado a uma crise sanitária, decorrente dessa terrível pandemia que nos aprisiona. Infelizmente, a população brasileira, majoritariamente citadina e entregue às promessas divinas de prosperidades farsescas, tem feito escolhas políticas que alimentam políticos insensíveis para essas realidades e que incentivam todo o tipo de perversidades e práticas destrutivas sobre a natureza. O povo pobre das periferias nas metrópoles, e nas pequenas e médias cidades, que empoderam esses indivíduos, são os mesmos que sofrerão as mais perversas consequências, de políticas de estado concentracionistas e tendo como alvo a produção agrícola de commodities.

Ao apostar nesse tipo de investimentos o governo brasileiro, e da maioria dos estados, abdica de uma política econômica que valorize cadeias produtivas que possuam enormes valores agregados, com altos investimentos em ciência e desenvolvimento tecnológico. O incentivo ao grande agronegócio, além de perverso para a natureza e a biodiversidade dos biomas, expulsa do campo o pequeno produtor, não agrega valor aos produtos e alimenta uma desigualdade social criminosa, com a concentração de riqueza cada vez mais nas mãos de um percentual menor de pessoas. Além de enfraquecer o pequeno produtor, a agricultura familiar e o associativismo necessário para a sobrevivência do trabalhador rural e sua permanência no campo.

Isso representa um enorme atraso para o nosso país, para o nosso povo, e já se reflete nas estatísticas que apontam o crescimento da pobreza, do aumento do número daqueles que passarão fome nos próximos anos, mas, conforme tem sido divulgado amplamente, do crescimento da riqueza de um número restrito de bilionários sem nenhum compromisso com o desenvolvimento nacional brasileiro, e certamente possuidores de contas em paraísos fiscais, e de off shores, como denunciado nos escândalos recentes conhecido como “Panamá Papers”.

Nos cabe, conhecedores dessa realidade perversa, prosseguirmos apostando na ciência, no conhecimento, nas universidades, e no fortalecimento de diversas instituições não governamentais que são incansáveis em apontar essas políticas nocivas e defenderem os biomas que estão sendo destruídos e nos levando mais rapidamente, por conta dessas ações antropogênicas, para a sexta extinção, que afetará milhares de espécies em nosso planeta. Não é simples, mas requer disposição, compreensão e determinação para enfrentar esse momento muito complicado para o nosso país, para o planeta, para a natureza e a humanidade de maneira geral.


NOTAS:

(*) Esse texto é uma adaptação e atualização de artigos que já produzi e publiquei, inclusive aqui neste blog, preparado especialmente para o X MAF 2020, evento organizado pelo grupo PET GEO UFPE. A mesa redonda, da qual participei, ao lado da profª. Drª Monica Cox, foi intitulada: ESTADO, AGRONEGÓCIO E MEIO AMBIENTE: POLÍTICAS TERRITORIAIS E DESENVOLVIMENTO DO BRASIL, realizada por via remota em 02/12/2020. Pode ser acessada através do link: https://www.youtube.com/watch?v=kQ4XxWGuKTs


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/brasil-assume-lideranca-mundial-na-producao-de-soja-segundo-eua.shtml?loggedpaywall – Acesso em 10.05.2018

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