Nos últimos tempos o mundo tem se
deparado com um desafio, muito além das preocupações malthusianas, mas que nos
força a relembrar das teorias de Thomas Malthus. A análise que indicava a
impossibilidade da humanidade poder garantir produção de alimentos para uma
população que crescia vertiginosamente, praticamente perde força quando
passamos a conviver com a capacidade tecnológica que o mundo alcançou ao final
do século XX, inclusive na possibilidade de produzir alimentos nas situações
mais adversas.
Técnicas de lidar com o solo,
inovações tecnológicas que aceleram o ritmo do plantio e da colheita, insumos
que aumentam a capacidade produtiva, e o crescimento da indústria química
utilizada no combate às pragas (para o bem ou para o mal), colocaram por terra
boa parte das questões postas por Malthus.
Mas, por outro lado, há uma
lógica que impede essa capacidade tecnológica de vir suprir a contento a
necessidade que existe em quase todos os continentes, principalmente África e
Ásia, de reduzir o número de indivíduos que vivem na mais absoluta miséria e
com boa parte deles, principalmente crianças, morrendo de desnutrição. Não tem
acesso aos alimentos básicos que possam garantir suas sobrevivências.
Essa lógica é a maneira como o
capitalismo transforma toda essa capacidade tecnológica em potencial produtivo
visando exclusivamente a ampliação dos lucros. Assim, existe sim, uma enorme
potencialidade decorrente de todas as inovações que revolucionaram
incessantemente os meios de produção, mas toda essa capacidade termina servindo
aos interesses mais gananciosos de acumulação e concentração de rendas.
Produzir alimentos,
principalmente as chamadas commodities, mercadorias que tem os seus preços
fixados no mercado internacional tem atraído muitos investidores. Traduzindo em
miúdos, são mercadorias, principalmente minerais e produtos agrícolas, com
pouca ou nenhuma industrialização, consequentemente com baixíssima agregação de
valor, permanentemente monitoradas pelas bolsas de valores.
Esses produtos agrícolas têm seus
preços fixados em dólares em nível internacional, com uma produção de larga
escala, como característica principal o fato de serem produzidos em grandes
propriedades e quase sempre monoculturas. Seus preços são, portanto, variáveis
não somente em função da cotação do dólar, moeda padrão de referência
internacional, mas também porque termina também sendo submetidas às oscilações
das bolsas de valores, e, consequentemente, estão sujeitas às manipulações
tradicionais que ocorrem no mercado financeiro. O Brasil tem se destacado nesse
setor, como um dos maiores produtores de Soja, superando os EUA em 2017. A
soja, assim, soma-se ao café, suco de laranja, açúcar e carne bovina.[1]
Embora essas produções oscilem de acordo com as condições climáticas.
Obviamente, esses mecanismos que
movem o sistema capitalista global, não possuem a menor preocupação em
transformar toda a capacidade tecnológica em investimentos para conter o
aumento da fome em várias partes do mundo, notadamente nessas que citei
anteriormente. Em alguns lugares, como na região da Somália e todo o seu
entorno, no chamado “Chifre da África”, a situação aproxima-se de uma enorme
catástrofe, com milhões de pessoas deslocando-se para outras regiões e boa
parte delas sucumbindo à fome e perdendo suas vidas nesses trajetos.
Portanto, o interesse é meramente
especulativo, com base na ganância e na garantia de lucros crescentes, como de
resto é a maneira como o sistema funciona. Isso significa dizer que os
investimentos possíveis de serem feitos obedecem à lógica do mercado mundial,
e, portanto, se a crise econômica já estava alterando os rumos do capital, isso
tende a ser mais determinante no pós-pandemia, até mesmo por conta da
intensificação da necropolítica, termo elaborado por Achille Mbembe, inspirado
nas formulações de Michel Foucault com a biopolítica e biopoder. Uma atitude de
negligência e de negação de um racismo estrutural contido nas instâncias do
Estado e reforçado por uma política governamental que despreza a vida,
principalmente das camadas mais pobres e desassistidas da sociedade.
Mas é sempre bom considerar que o
mercado de alimentos é potencialmente lucrativo, ou, melhor dizendo, das
commodities agrícolas, já não mais somente como produtos que visem atender
apenas às necessidades alimentares da população, mas também porque boa parte
deles passa a se constituir em matéria-prima para produção de energia, como no
caso da cana-de-açúcar (embora o etanol não seja ainda uma commoditie,
o açúcar o é), o milho e outros que podem passar também a serem produzidos com
esse objetivo. Além de boa parte da produção de soja atender ao mercado de
ração para alimentar o gado que em boa parte do mundo, principalmente Europa é
criado em confinamento.
A crise econômica, que segundo a
ONU levará o mundo em 2021 a maior crise humanitária desde a segunda guerra
mundial, tende a ampliar a crise
alimentar em algumas partes do mundo, mas a tendência deve se manter, de os
investimentos continuarem sendo feitos naqueles produtos marcados como
commodities porque são os que garantem mais divisas para os países como o
Brasil e possibilitam maiores lucros a quem investe no mercado de produtos
agrícolas. Mesmo que isso signifique uma crescente concentração de rendas, por
serem produtos de baixo valor agregado. Para o Estado Brasileiro o que mais
importa é o fato de essa atividade ser a principal responsável pelo superávit
na balança comercial. Além do poder político que possui esse setor do grande
agronegócio, de grandes latifúndios, sustentados no Congresso Nacional por uma
forte banca ultra conservadora, empoderados pelas bancadas do boi e da bala.
Como esse é um espaço com enorme
potencial produtivo e com ainda uma área cultivável imensa a ser explorada, se
for desconsiderado, como tem sido, a importância da biodiversidade, provavelmente
poucas alterações acontecerão em relação ao crescente interesse pela aquisição
de terras em áreas desse bioma, como também na Amazônia e na região de
transição entre o Cerrado e a Caatinga. Essa nova fronteira agrícola já atende
pelo nome de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia), que tende a se
acelerar quando a ferrovia Norte-Sul entrar em funcionamento integralmente.
Algum dia isso deve acontecer.
A delineação desse quadro, já em
curso, tem levado à aquisição de grandes quantidades de terras por empresas, e suspeita-se
que até mesmo governos estrangeiros através de “laranjas”, ou como chamávamos
nos anos 1980, “testas-de-ferros”, e passa a se constituir em um excelente
investimento, principalmente em regiões de expansão agrícola como o Cerrado.[2]
Consequentemente os impactos
que decorrerão de tudo isso tende a ampliar o processo de degradação
ambiental e de aceleração da devastação desse bioma. Por mais que as pesquisas
desenvolvidas nas Universidades e por algumas ONGs e institutos focados na
sustentabilidade ambiental, indiquem a existência de um rico potencial da
biodiversidade do Cerrado, a resposta para investimentos e o quantitativo de
lucro que advirá em atividades exploradas pelas populações tradicionais, não
são suficientes para se contrapor a essa lógica gananciosa e destrutiva.
Especulação, grilagem de terras e violência, tendem a aumentar, seguindo uma
lógica perversa que afeta há décadas a população da Amazônia.
Nos dias de hoje assistimos
estarrecidos aos desmatamentos impunes na Floresta Amazônica, avançando sobre
áreas de proteção ambientais e reservas onde vivem populações indígenas, com o
objetivo de espalhar gado por toda aquela região. À custa de um genocídio
ambiental.
Cabe a todos aqueles que vivem
nesses biomas sob perversos ataques criminosos e os que estudam sua riqueza
natural e importância da sua biodiversidade, insistir em apontar os riscos que
isso causa e a possibilidade de futuramente boa parte desses biomas se tornarem
improdutivos e desertificados. O uso excessivo da água para irrigação, por
exemplo, com a utilização de grandes pivôs centrais, a esgotarem rios, córregos
e lençóis freáticos, é um bom exemplo dos desatinos que se cometem sem levar em
conta os desgastes inevitáveis desses excessos, como por exemplo, a salinização
do solo.
Acrescente-se a isso outros
interesses que estão por trás desse modelo de produção agrícola. Refiro-me
agora às essas disputas exercidas por corporações gananciosas, e criminosas,
que inundam o campo com produtos químicos responsáveis pela ampliação dos casos
de câncer, e outras doenças que causam deformidades, no Brasil e no mundo. São
os agrotóxicos, venenos que eliminam pragas, mas que trazem junto um efeito
perverso e profundamente destrutivo para as pessoas e toda a biodiversidade.[3]
Agora que os representantes latifundiários tomaram o Congresso de assalto, já
se realizam mudanças da legislação para facilitar a comercialização desses
venenos.[4]
Essas corporações, a maioria
multinacionais, ou transnacionais (porque o mercado de ações se globalizou),
usam de todos os tipos de práticas delinquentes para burlar legislações e
buscar apoio em setores políticos conservadores com o intuito de conter
proibições – como ocorre em outros países – mesmo para certos produtos
claramente comprovados como extremamente nocivos à vida humana. Calcula-se que
cada brasileiro, em média, por ano consuma em torno de 5,2 litros de
agrotóxicos, embora existam estudos que apontem para uma maior quantidade.[5]
E essas Corporações atuam não
somente na área de alimentos, como é de suas características, mas em outros
setores geradores de disputas internacionais e guerras como o petróleo,
indústria farmacêutica e de produtos veterinários. São gigantes que possuem
fortes influências em poderosos Estados-Nações, principalmente os de suas
origens, como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. Muitas delas
tem seus produtos também fabricados aqui no Brasil, como Basf, Bayer, Syngenta,
DuPont e Monsanto.
Como defender o Cerrado e a
Amazônia em um tempo em que todos os olhares gananciosos e geopolíticos estão
voltados para esses imensos chapadões de uma paisagem que dá uma impressão de
pobreza, mas que esconde uma enorme riqueza? Se todas as transformações que são
visíveis nos Estados centrais, ou do imenso sertão brasileiro, se deram às
custas de grandes investimentos agrícolas, e com isso possibilitou um forte
crescimento econômico, como frear nos dias de hoje a continuidade de um
processo que se agigantou e ameaça a riqueza natural de um importante bioma?
Pois se foi exatamente isso que aconteceu com a Mata Atlântica, em toda sua
extensão, desde o Nordeste brasileiro até o Sudeste? A diferença é somente
temporal, pois enquanto a destruição da Mata Atlântica levou séculos para
atingir esse percentual ínfimo de menos de 15% do remanescente original, o
ímpeto e a celeridade com que se dá a destruição do Cerrado e da Amazônia é
muito mais acentuado, decorrente de todos os avanços tecnológicos e levará
apenas décadas para atingir esses mesmos índices.
Esse é um desafio que se
apresenta para todos aqueles que são estudiosos do Cerrado e da Amazônia, mas
que compreendem também todo o processo de desenvolvimento socioeconômico desse
enorme sertão brasileiro, até a metade do século XX pouco valorizado. O
progresso que se vê é conseguido às custas de uma enorme concentração de
riqueza, como decorrência do modelo agrícola utilizado, que causa outros
efeitos colaterais. Um deles, a expulsão de quase toda uma população rural para
as cidades, potencializando um crescimento desordenado das mesmas e um cinturão
de miséria em suas periferias responsáveis em grande parte pelo aumento da
criminalidade e do consumo de drogas que destrói o futuro de boa parte da sua
juventude e mantém as pessoas reféns da violência e do medo.
Assim, são as condições criadas
pela acelerada penetração em direção ao heartland brasileiro,
desde a marcha para o Oeste na época varguista, até a instalação da capital
federal, seccionando o território goiano, e todo o projeto de integração
nacional visando o controle estratégico da grande Amazônia posto em prática por
Juscelino Kubitscheck no final da década de 1950 e consolidada pelos governos
da ditadura militar.
Mas foi mesmo a revolução
tecnológica na agricultura o principal responsável pela transformação acelerada
de um solo seco em terreno de ótimo potencial produtivo. Aliado à
característica climática sem muitas alterações, dividida em duas estações, a
seca e a chuvosa, propícia à atividade agrícola e à pecuária.
Desfazer essa visão de um
território somente adequado à instalação do grande agronegócio, e buscar outros
caminhos alternativos de desenvolvimento, que se preocupe com a conservação da
biodiversidade e de outros modelos sustentáveis de produção agrícola, é uma
enorme tarefa, que cabe à universidade, aos pesquisadores e a todos aqueles que
lutam pela exploração democrática e não destrutiva das riquezas que a natureza
possui, em benefício da maioria e em prol da construção de um mundo com outra
compreensão a respeito da vida.
É evidente que a conjuntura
política torna muito difícil essa tarefa. Aliado a uma crise sanitária,
decorrente dessa terrível pandemia que nos aprisiona. Infelizmente, a população
brasileira, majoritariamente citadina e entregue às promessas divinas de
prosperidades farsescas, tem feito escolhas políticas que alimentam políticos
insensíveis para essas realidades e que incentivam todo o tipo de perversidades
e práticas destrutivas sobre a natureza. O povo pobre das periferias nas
metrópoles, e nas pequenas e médias cidades, que empoderam esses indivíduos,
são os mesmos que sofrerão as mais perversas consequências, de políticas de
estado concentracionistas e tendo como alvo a produção agrícola de commodities.
Ao apostar nesse tipo de
investimentos o governo brasileiro, e da maioria dos estados, abdica de uma
política econômica que valorize cadeias produtivas que possuam enormes valores
agregados, com altos investimentos em ciência e desenvolvimento tecnológico. O
incentivo ao grande agronegócio, além de perverso para a natureza e a
biodiversidade dos biomas, expulsa do campo o pequeno produtor, não agrega
valor aos produtos e alimenta uma desigualdade social criminosa, com a
concentração de riqueza cada vez mais nas mãos de um percentual menor de
pessoas. Além de enfraquecer o pequeno produtor, a agricultura familiar e o
associativismo necessário para a sobrevivência do trabalhador rural e sua
permanência no campo.
Isso representa um enorme atraso
para o nosso país, para o nosso povo, e já se reflete nas estatísticas que
apontam o crescimento da pobreza, do aumento do número daqueles que passarão
fome nos próximos anos, mas, conforme tem sido divulgado amplamente, do
crescimento da riqueza de um número restrito de bilionários sem nenhum
compromisso com o desenvolvimento nacional brasileiro, e certamente possuidores
de contas em paraísos fiscais, e de off shores, como denunciado nos escândalos
recentes conhecido como “Panamá Papers”.
Nos cabe, conhecedores dessa
realidade perversa, prosseguirmos apostando na ciência, no conhecimento, nas
universidades, e no fortalecimento de diversas instituições não governamentais
que são incansáveis em apontar essas políticas nocivas e defenderem os biomas
que estão sendo destruídos e nos levando mais rapidamente, por conta dessas ações
antropogênicas, para a sexta extinção, que afetará milhares de espécies em
nosso planeta. Não é simples, mas requer disposição, compreensão e determinação
para enfrentar esse momento muito complicado para o nosso país, para o planeta,
para a natureza e a humanidade de maneira geral.
(*) Esse texto é uma adaptação e atualização de artigos que já produzi e publiquei, inclusive aqui neste blog, preparado especialmente para o X MAF 2020, evento organizado pelo grupo PET GEO UFPE. A mesa redonda, da qual participei, ao lado da profª. Drª Monica Cox, foi intitulada: ESTADO, AGRONEGÓCIO E MEIO AMBIENTE: POLÍTICAS TERRITORIAIS E DESENVOLVIMENTO DO BRASIL, realizada por via remota em 02/12/2020. Pode ser acessada através do link: https://www.youtube.com/watch?v=kQ4XxWGuKTs
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/brasil-assume-lideranca-mundial-na-producao-de-soja-segundo-eua.shtml?loggedpaywall – Acesso em 10.05.2018
[2] https://fpabramo.org.br/2018/02/22/expansao-do-capital-estrangeiro-no-agronegocio-da-regiao-matopiba/ - Acesso em 14.05.2018
[4] https://www.fne.org.br/index.php/todas-as-noticias/4834-fiocruz-lanca-alerta-contra-mudar-lei-do-agrotoxico – Acesso em 14.05.2018
[5] http://autossustentavel.com/2018/04/brasileiros-7-litros-de-agrotoxicos.html. Acesso em 30.04.2018
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