O filme do Coringa
tem gerado muitas controvérsias. Mas observo algo que vejo passar despercebido
nas opiniões de boa parte daqueles que se dispõem a comentar sobre o impacto
gerado por um personagem que carrega em suas características pessoais os
sintomas de uma patologia social.
Há uma ausência de
percepção temporal nessas análises e nos comentários sobre o filme. No afã de
identificar esses sintomas ligados aos comportamentos dos dias atuais, muitos
não percebem que a Gotham City do Coringa vive os ares dos anos 1980.
Identifico essa
confusão no desejo de muitos de verem aquelas reações causadas pelo
comportamento violento, mas anti-sistema, que está por trás da história e do
personagem do filme, como se ocorrendo nos dias de hoje, marcados pelos mesmos
sintomas identificados naquela década: violência, desesperança, desemprego,
pobreza, intolerância, ridicularização do outro, falta de perspectiva da juventude,
individualismo, ódio e preconceito contra quem não se enquadra no perfil e no
padrão definido pelas camadas ricas da sociedade, ou dos que aspiram atingir
esse grau de riqueza, a classe média.
O Coringa surge
nos quadrinhos, como o grande vilão a infernizar a vida de Batman, no começo
dos anos 1940. Um período conturbado, tumultuado pela grande depressão que
assolou praticamente todos países na década anterior, cujas consequências levou o mundo a uma
guerra cruel e de uma perversão terrível. A década de 1930 e de 1940 foram
tensas e historicamente nefastas para a humanidade.
Mas, eliminado e
depois renascido, o personagem ainda reapareceu noutros tempos menos
desesperadores. No entanto, o enredo no qual o Coringa do filme atual transita,
e cujo perfil do personagem carrega as mazelas de mais um tempo de crise, é
aquela década que ficou conhecida como a década perdida, assim denominada pela
mídia e pelos economistas.
De quais maneiras foi
construído esse período, e o que ele pode nos dizer sobre como o Coringa
carrega os traumas dessa época?
Os anos 1980 são
reflexos da grave crise que afetou o mundo na década de 1970, conhecida como a
“crise do petróleo”. Momento em que os países produtores de petróleo, que
haviam tomam para si a produção e o controle da distribuição desse “ouro negro”
nos anos 1960, quando criaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(OPEP), deram um choque no preço elevando-o a patamares insuportáveis, com
aumentos superiores a 400%, levando a bancarrota uma série de países
dependentes desse produto.
A crise se
alastrou por todo o mundo, afetando principalmente os países menos
desenvolvidos e com altas taxas de desigualdades sociais. Outros fatores
geopolíticos não só contribuíram, mas foram os elementos causadores em larga
escala, oriundos no Oriente Médio. O resultado levou o mundo a uma recessão e a
um enorme déficit nas contas tanto dos países ricos como dos mais pobres. A
América Latina sofreu mais fortemente as consequências dessa crise.
Por outro lado, e
como acontece em todas as crises no capitalismo, a concentração de rendas
aumentou e, consequentemente, a desigualdade social. Essa equação deixa sempre
um resultado perverso, o desespero da população pobre. Mas, por incrível que
isso possa parecer, os ricos tornam-se mais insensíveis e ao invés de
defenderem políticas publicas para amenizar a situação de pobreza e miséria,
fecham-se em seus casulos e bradam ao estado o reforço da segurança pública
para protegê-los. E seguem acumulando riqueza em meio a uma intensa pobreza.
Ora, o que faz as
pessoas se confundirem ao assistirem o filme do Coringa é o fato de a situação
do mundo no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 ser muito parecida com
as condições econômicas e sociais que vivemos atualmente. Isso considerando a
situação de crise e de acumulação de riquezas de forma acentuada nas mãos de
poucos, com ampliação de desemprego e falta de perspectiva da juventude.
Desde o ano de
2008, momento em que estourou a crise financeira que por pouco não quebrou o
sistema, a instabilidade econômica e as fortes disputas comerciais se tornaram
frequentes. O mundo vive hoje a consequência da quebradeira dos Estados, em
função da necessidade de esses salvarem as corporações financeiras do desastre
gerado pela ampliação da ganância. De lá para os dias de hoje o que se vê é uma
crescente insatisfação social, e até por isso com a população fazendo escolhas
suicidas, elegendo governantes que vão na contramão de suas expectativas.
Naturalmente que a frustração tende a gerar um efeito previsível, de
descontentamento e revolta, com explosões sociais levando à grandes
manifestações e a cada vez mais a não aceitação da democracia, a refutação da
política e a desesperança em relação às suas próprias escolhas.
“No final dos anos 70, os
presidentes das 350 maiores companhias do mundo ganhavam, em média, 30 a 40
vezes mais que os funcionários de base. Hoje, a diferença de salário entre o
presidente e o peão passa de 300 vezes. Nos Estados Unidos, o salário médio dos
trabalhadores encolheu de US$ 4 mil para US$ 2.750 (em valores reais, descontando
a inflação do período) entre 1978 e 2010. Já a remuneração do 1% mais rico
disparou: foi de US$ 25 mil para US$ 83 mil”. (https://super.abril.com.br/comportamento/os-verdadeiros-donos-do-mundo/)
Esse quadro dos
dias de hoje é semelhante ao dos anos 1980, potencializado pela ampliação dos defeitos
do sistema e pela acentuação da riqueza cada vez mais controlada por menos
pessoas.
Agora como Coringa
se insere nisso tudo? Vou ter que dar spoiler, não tem jeito. Primeiramente eu
me preocupei em criticar o anacronismo presente em diversas análises. Feito
isso, preciso falar sobre o personagem que me inspira a escrever sobre esse
tema, e também procurar entender a razão de tantos manifestantes atualmente
usarem uma máscara de palhaço, a marca do Coringa. Substituindo a máscara de
“V”, personagem do filme (e dos quadrinhos) “V de Vingança”, muito usada a
partir das Jornadas de Junho, aqui no Brasil, como também em diversas
manifestações por outros países.
O Coringa é um
filme tenso. Brinco com alguns que para ir assistir é bom tomar Rivotril antes.
É tenso mesmo na primeira parte, quando a violência não explode explicitamente,
mas que está inserida nos comportamentos e na maneira das pessoas se
relacionarem, na negação do outro, na indiferença diante das complexidades
sociais e da miséria que torna a cidade fria e angustiante.
Há a
possibilidades de se extrair do filme diversas interpretações, tal qual a
parábola dos monges cegos e do elefante. Sem entrar no mérito de outras
análises apresentarei o meu olhar sobre o que eu considero a sociopatia que
para mim caracteriza o personagem (e, creio que há também uma esquizofrenia)
até a descoberta de que fora enganado por sua mãe, em uma história que deixa
dúvida no espectador (esse é um spoiler pela metade). A partir disso, e de
algumas outras situações nas quais a frustração dele se junta com a revolta por
se sentir estigmatizado e desprezado em seus desejos, sua patologia muda de
grau e torna-se psicopatia.
O riso, que
poderia interpretar uma insensibilidade diante da violência e do mal, e
certamente muitos viram assim ao longo da história de Batman e sua relação com
Coringa, representa tão somente uma dessas patologias. O riso foge do seu
controle, e representa aquilo que historicamente incomoda, a sensação que o
outro ri não por alguma coisa, mas de alguma coisa. Coringa não controla o seu
riso, e isso o torna potencialmente um alvo da fúria dos que veem nisso uma
forma de ironizar ou escrachar o outro. Com o tempo essa sua risada torna-se
marca registrada e se vinculará à sua história, de absoluta permissividade com
a sociedade que o afrontara e o humilhara.
O Coringa sai dos subterrâneos
para se tornar uma imagem no espelho. É essa imagem do espelho que reflete
também atrás de si todos os sintomas de uma sociedade doente, violenta,
insensível e intolerante. De repente ele vira um símbolo que carrega o desejo
de pessoas oprimidas, revoltadas, deprimidas, inseguras e sem esperanças. À espera
de um momento para explodirem.
A opressão, marca
de uma sociedade desigual, vem cercada de mecanismos que mantém as pessoas
submissas. Há uma estrutura perversa, em que micro-poderes estão dispersos e
envoltos em elementos repressivos violentos ou não-violentos. Seja a estrutura
policial ou do aparato de leis e costumes que perpassam eras e se consolidam às
custas de valores jurídicos, religiosos e outras formas visíveis ou invisíveis.
Isso tudo explode
quando algo realiza aquilo que no íntimo muitos desejam. Espalha-se rapidamente
um anseio de vingança, e da panela de pressão social os ressentimentos contidos
vê naquele que ousa romper essa lógica e atingir aqueles que representam a
perversão do sistema, pela exploração e condição social diferenciada em meio às
desgraças e infortúnios, se não um herói, pelo menos a representação de seus
desejos oprimidos.
A palavra de ordem
expressa pela multidão que se revolta e se deslumbra com a ousadia de alguém
vestido e fantasiado como um palhaço, desconhecido em sua identidade, é o
sintoma que não somente o personagem carrega uma patologia social. Toda a
sociedade demonstra estar corrompida e adoecida, pela pressão de um sistema
injusto, perverso, insensível e cego. “Morte aos ricos”, brada a multidão
sedenta de vingança, revanche, ódio, sabe-se lá quantos outros sentimentos
estiveram contidos. Pouco importa a identidade de quem friamente comete
assassinatos. Pela origem das vítimas tal ato corresponde a esses desejos, e é
aceito como bem feito.
E nesse momento
que o Coringa se descobre, comete mais desatinos agora já com a convicção do
que deseja, de fato. E o que ele quer é potencializado por aqueles sintomas
doentios que se espalha também pela sociedade: vingança. Seu ato final expressa
agora o perfil de um psicopata, mas não sem antes transmitir ao vivo e pela televisão,
para cada um que, com máscara ou sem máscara, se deslumbrava com seu
comportamento e ousadia, que aquele ali, nada mais é do que a imagem de cada um
expressa em um espelho.
O Coringa, seja no
começo dos anos 1980 do século XX, ou no final da segunda década do século XXI,
é a imagem no espelho de uma sociedade oprimida, de uma população cordata e
submissa em meio a uma desigualdade impressionante. Pelas periferias de cidades
pobres e de cidades ricas, humilhadas, desempregadas e sombrias, revoltadas
muitas vezes consigo mesmo por seus fracassos, porque assim são educadas a
crer, seja pela esperança da fé religiosa ou pela cegueira da crença no que é
transmitido pela grande mídia e no marketing bem preparado de especialistas meritocratas.
Tudo isso estruturado a serviço dos ricos, dos que acumulam riquezas
escandalosamente às custas da exploração desenfreada, da corrupção sistêmica e
das transmissões hereditárias de enormes fortunas.
Assim como a
máscara de “V”, a máscara de palhaço do Coringa também carrega um simbolismo
que reflete a realidade na ficção, e sai da ficção com toda virulência contida
em uma enorme panela de pressão. Explodiu em Gotham City... explode em
Santiago, em Barcelona, Em Bagdá, no Líbano, no Equador, em Hong Kong, no Haiti... e vai
explodir alhures. E como diz Caetano "o Haiti, é aqui". Vai explodir também no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, por outras razões, diferentes das Jornadas de Junho de 2013. Por essas razões contidas explicitamente no filme.
O Coringa está por
aí. Ele está na multidão. A qualquer momento seu riso se fará ouvir. O coringa
é cada um que carrega o sofrimento, a dor, a miséria, a humilhação e a vergonha
de se sentir culpado por ser pobre. Até que se descobre que a culpa de tudo
isso, não é sua. É daqueles que enriqueceram às custas de uma violenta e
degradante exploração.
O filme, O Coringa, é devastador. E a máscara de
palhaço, que se torna a sua marca registrada, vai assombrar cada vez mais os ricos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário