quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A MÁSCARA DO CORINGA E O QUE SE VÊ NO ESPELHO


O filme do Coringa tem gerado muitas controvérsias. Mas observo algo que vejo passar despercebido nas opiniões de boa parte daqueles que se dispõem a comentar sobre o impacto gerado por um personagem que carrega em suas características pessoais os sintomas de uma patologia social.
Há uma ausência de percepção temporal nessas análises e nos comentários sobre o filme. No afã de identificar esses sintomas ligados aos comportamentos dos dias atuais, muitos não percebem que a Gotham City do Coringa vive os ares dos anos 1980.
Identifico essa confusão no desejo de muitos de verem aquelas reações causadas pelo comportamento violento, mas anti-sistema, que está por trás da história e do personagem do filme, como se ocorrendo nos dias de hoje, marcados pelos mesmos sintomas identificados naquela década: violência, desesperança, desemprego, pobreza, intolerância, ridicularização do outro, falta de perspectiva da juventude, individualismo, ódio e preconceito contra quem não se enquadra no perfil e no padrão definido pelas camadas ricas da sociedade, ou dos que aspiram atingir esse grau de riqueza, a classe média.
O Coringa surge nos quadrinhos, como o grande vilão a infernizar a vida de Batman, no começo dos anos 1940. Um período conturbado, tumultuado pela grande depressão que assolou praticamente todos países na década anterior, cujas consequências levou o mundo a uma guerra cruel e de uma perversão terrível. A década de 1930 e de 1940 foram tensas e historicamente nefastas para a humanidade.
Mas, eliminado e depois renascido, o personagem ainda reapareceu noutros tempos menos desesperadores. No entanto, o enredo no qual o Coringa do filme atual transita, e cujo perfil do personagem carrega as mazelas de mais um tempo de crise, é aquela década que ficou conhecida como a década perdida, assim denominada pela mídia e pelos economistas.
De quais maneiras foi construído esse período, e o que ele pode nos dizer sobre como o Coringa carrega os traumas dessa época?
Os anos 1980 são reflexos da grave crise que afetou o mundo na década de 1970, conhecida como a “crise do petróleo”. Momento em que os países produtores de petróleo, que haviam tomam para si a produção e o controle da distribuição desse “ouro negro” nos anos 1960, quando criaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), deram um choque no preço elevando-o a patamares insuportáveis, com aumentos superiores a 400%, levando a bancarrota uma série de países dependentes desse produto.
A crise se alastrou por todo o mundo, afetando principalmente os países menos desenvolvidos e com altas taxas de desigualdades sociais. Outros fatores geopolíticos não só contribuíram, mas foram os elementos causadores em larga escala, oriundos no Oriente Médio. O resultado levou o mundo a uma recessão e a um enorme déficit nas contas tanto dos países ricos como dos mais pobres. A América Latina sofreu mais fortemente as consequências dessa crise.
Por outro lado, e como acontece em todas as crises no capitalismo, a concentração de rendas aumentou e, consequentemente, a desigualdade social. Essa equação deixa sempre um resultado perverso, o desespero da população pobre. Mas, por incrível que isso possa parecer, os ricos tornam-se mais insensíveis e ao invés de defenderem políticas publicas para amenizar a situação de pobreza e miséria, fecham-se em seus casulos e bradam ao estado o reforço da segurança pública para protegê-los. E seguem acumulando riqueza em meio a uma intensa pobreza.
Ora, o que faz as pessoas se confundirem ao assistirem o filme do Coringa é o fato de a situação do mundo no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 ser muito parecida com as condições econômicas e sociais que vivemos atualmente. Isso considerando a situação de crise e de acumulação de riquezas de forma acentuada nas mãos de poucos, com ampliação de desemprego e falta de perspectiva da juventude.
Desde o ano de 2008, momento em que estourou a crise financeira que por pouco não quebrou o sistema, a instabilidade econômica e as fortes disputas comerciais se tornaram frequentes. O mundo vive hoje a consequência da quebradeira dos Estados, em função da necessidade de esses salvarem as corporações financeiras do desastre gerado pela ampliação da ganância. De lá para os dias de hoje o que se vê é uma crescente insatisfação social, e até por isso com a população fazendo escolhas suicidas, elegendo governantes que vão na contramão de suas expectativas. Naturalmente que a frustração tende a gerar um efeito previsível, de descontentamento e revolta, com explosões sociais levando à grandes manifestações e a cada vez mais a não aceitação da democracia, a refutação da política e a desesperança em relação às suas próprias escolhas.
“No final dos anos 70, os presidentes das 350 maiores companhias do mundo ganhavam, em média, 30 a 40 vezes mais que os funcionários de base. Hoje, a diferença de salário entre o presidente e o peão passa de 300 vezes. Nos Estados Unidos, o salário médio dos trabalhadores encolheu de US$ 4 mil para US$ 2.750 (em valores reais, descontando a inflação do período) entre 1978 e 2010. Já a remuneração do 1% mais rico disparou: foi de US$ 25 mil para US$ 83 mil”. (https://super.abril.com.br/comportamento/os-verdadeiros-donos-do-mundo/)
Esse quadro dos dias de hoje é semelhante ao dos anos 1980, potencializado pela ampliação dos defeitos do sistema e pela acentuação da riqueza cada vez mais controlada por menos pessoas.
Agora como Coringa se insere nisso tudo? Vou ter que dar spoiler, não tem jeito. Primeiramente eu me preocupei em criticar o anacronismo presente em diversas análises. Feito isso, preciso falar sobre o personagem que me inspira a escrever sobre esse tema, e também procurar entender a razão de tantos manifestantes atualmente usarem uma máscara de palhaço, a marca do Coringa. Substituindo a máscara de “V”, personagem do filme (e dos quadrinhos) “V de Vingança”, muito usada a partir das Jornadas de Junho, aqui no Brasil, como também em diversas manifestações por outros países.
O Coringa é um filme tenso. Brinco com alguns que para ir assistir é bom tomar Rivotril antes. É tenso mesmo na primeira parte, quando a violência não explode explicitamente, mas que está inserida nos comportamentos e na maneira das pessoas se relacionarem, na negação do outro, na indiferença diante das complexidades sociais e da miséria que torna a cidade fria e angustiante.
Há a possibilidades de se extrair do filme diversas interpretações, tal qual a parábola dos monges cegos e do elefante. Sem entrar no mérito de outras análises apresentarei o meu olhar sobre o que eu considero a sociopatia que para mim caracteriza o personagem (e, creio que há também uma esquizofrenia) até a descoberta de que fora enganado por sua mãe, em uma história que deixa dúvida no espectador (esse é um spoiler pela metade). A partir disso, e de algumas outras situações nas quais a frustração dele se junta com a revolta por se sentir estigmatizado e desprezado em seus desejos, sua patologia muda de grau e torna-se psicopatia.
O riso, que poderia interpretar uma insensibilidade diante da violência e do mal, e certamente muitos viram assim ao longo da história de Batman e sua relação com Coringa, representa tão somente uma dessas patologias. O riso foge do seu controle, e representa aquilo que historicamente incomoda, a sensação que o outro ri não por alguma coisa, mas de alguma coisa. Coringa não controla o seu riso, e isso o torna potencialmente um alvo da fúria dos que veem nisso uma forma de ironizar ou escrachar o outro. Com o tempo essa sua risada torna-se marca registrada e se vinculará à sua história, de absoluta permissividade com a sociedade que o afrontara e o humilhara.
O Coringa sai dos subterrâneos para se tornar uma imagem no espelho. É essa imagem do espelho que reflete também atrás de si todos os sintomas de uma sociedade doente, violenta, insensível e intolerante. De repente ele vira um símbolo que carrega o desejo de pessoas oprimidas, revoltadas, deprimidas, inseguras e sem esperanças. À espera de um momento para explodirem.
A opressão, marca de uma sociedade desigual, vem cercada de mecanismos que mantém as pessoas submissas. Há uma estrutura perversa, em que micro-poderes estão dispersos e envoltos em elementos repressivos violentos ou não-violentos. Seja a estrutura policial ou do aparato de leis e costumes que perpassam eras e se consolidam às custas de valores jurídicos, religiosos e outras formas visíveis ou invisíveis.
Isso tudo explode quando algo realiza aquilo que no íntimo muitos desejam. Espalha-se rapidamente um anseio de vingança, e da panela de pressão social os ressentimentos contidos vê naquele que ousa romper essa lógica e atingir aqueles que representam a perversão do sistema, pela exploração e condição social diferenciada em meio às desgraças e infortúnios, se não um herói, pelo menos a representação de seus desejos oprimidos.
A palavra de ordem expressa pela multidão que se revolta e se deslumbra com a ousadia de alguém vestido e fantasiado como um palhaço, desconhecido em sua identidade, é o sintoma que não somente o personagem carrega uma patologia social. Toda a sociedade demonstra estar corrompida e adoecida, pela pressão de um sistema injusto, perverso, insensível e cego. “Morte aos ricos”, brada a multidão sedenta de vingança, revanche, ódio, sabe-se lá quantos outros sentimentos estiveram contidos. Pouco importa a identidade de quem friamente comete assassinatos. Pela origem das vítimas tal ato corresponde a esses desejos, e é aceito como bem feito.
E nesse momento que o Coringa se descobre, comete mais desatinos agora já com a convicção do que deseja, de fato. E o que ele quer é potencializado por aqueles sintomas doentios que se espalha também pela sociedade: vingança. Seu ato final expressa agora o perfil de um psicopata, mas não sem antes transmitir ao vivo e pela televisão, para cada um que, com máscara ou sem máscara, se deslumbrava com seu comportamento e ousadia, que aquele ali, nada mais é do que a imagem de cada um expressa em um espelho.
O Coringa, seja no começo dos anos 1980 do século XX, ou no final da segunda década do século XXI, é a imagem no espelho de uma sociedade oprimida, de uma população cordata e submissa em meio a uma desigualdade impressionante. Pelas periferias de cidades pobres e de cidades ricas, humilhadas, desempregadas e sombrias, revoltadas muitas vezes consigo mesmo por seus fracassos, porque assim são educadas a crer, seja pela esperança da fé religiosa ou pela cegueira da crença no que é transmitido pela grande mídia e no marketing bem preparado de especialistas meritocratas. Tudo isso estruturado a serviço dos ricos, dos que acumulam riquezas escandalosamente às custas da exploração desenfreada, da corrupção sistêmica e das transmissões hereditárias de enormes fortunas.
Assim como a máscara de “V”, a máscara de palhaço do Coringa também carrega um simbolismo que reflete a realidade na ficção, e sai da ficção com toda virulência contida em uma enorme panela de pressão. Explodiu em Gotham City... explode em Santiago, em Barcelona, Em Bagdá, no Líbano, no Equador, em Hong Kong, no Haiti... e vai explodir alhures. E como diz Caetano "o Haiti, é aqui". Vai explodir também no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, por outras razões, diferentes das Jornadas de Junho de 2013. Por essas razões contidas explicitamente no filme.
O Coringa está por aí. Ele está na multidão. A qualquer momento seu riso se fará ouvir. O coringa é cada um que carrega o sofrimento, a dor, a miséria, a humilhação e a vergonha de se sentir culpado por ser pobre. Até que se descobre que a culpa de tudo isso, não é sua. É daqueles que enriqueceram às custas de uma violenta e degradante exploração.
O filme, O Coringa, é devastador. E a máscara de palhaço, que se torna a sua marca registrada, vai assombrar cada vez mais os ricos!

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