terça-feira, 6 de agosto de 2019

A UNIVERSIDADE E A FALÊNCIA DO MUNDO MODERNO

XV Encontro Nacional do Proifes-Federação
Na foto Iago Montalvão, presidente da UNE,
fala na abertura do XV Encontro Nacional do

Proifes-Federaçãlo

O Brasil passa por momentos tensos, e poderia dizer que a sociedade está vivendo uma relação tóxica, marcada por um enebriamento que não tem sido causado por nenhum elemento químico, mas pela estratégia de massificação do ódio, de desconstrução da política, de negação da história e de afirmação de idéias e pensamentos que colidem com tudo que possa tornar nossa convivência social com um mínimo de civilidade.
O mundo já passou por situações semelhantes, e sempre o caminho seguido foi de governos totalitários, ditaduras, e a perversidade que levou a genocídios em regimes nazi-fascistas e/ou marcados pelo sectarismo religioso.
É preciso compreender que isso que vivemos aqui nesses momentos, e nessas situações que podem ser estabelecidas temporalmente a partir do ano de 2013, após as chamadas “Jornadas de Junho”, tem suas peculiaridades e especificidades nas relações políticas brasileiras. No entanto, não somos o único país a conviver com esses comportamentos, nem com a ascensão de governos autoritários e de perfis de extrema-direita. Existem outros países que seguem nessa mesma direção, ou já seguiram e se veem diante desses mesmos dilemas. Acirramento da intolerância, xenofobia, preconceito, negação da política, afirmação de poder para indivíduos de perfis e caracteres duvidosos e com atitudes fascistas.
Não é conveniente, contudo, que o combate a esses comportamentos deva seguir na mesma direção da intolerância que eles exalam. E, infelizmente, esse em sido o caminho que aquelas pessoas que se indignam com atitudes abjetas que comandam esses governos atualmente. Do confronto por meio de atitudes que em muito se assemelha aos seus oponentes, embora em outra direção.
Mas para onde estamos indo com essas atitudes e ações, que embora estejam carregadas de boas intenções, pecam por reforçar uma polarização que divide a sociedade e impede uma reflexão crítica sobre a essência daquilo que representam as mudanças que estão em curso? Quanto mais se reforçam esses embates, majoritariamente travados em redes sociais, mais as posições se cristalizam e torna-se difícil qualquer convencimento. Considerando, para agravar mais ainda a situação, que os comportamentos violentos, preconceituosos e intolerantes têm sido escorados numa base religiosa forte, e que tem crescido em meio à crise de desempregos, do medo e da violência, embora eivadas de hipocrisia considerando-se as distâncias das pregações e leituras sagradas que dizem seguir.
Nos últimos meses assistimos manifestações vigorosas contra as medidas tomadas pelo governo de bloqueio de recursos para as universidades e em oposição à reforma da previdência. Logo em seguida outras manifestações, embora de menor porte, mas de números consideráveis, levaram às ruas centenas de milhares de pessoas que ainda se comportam como uma manada, seguindo convocações que explicitam apoio a ações que afetam duramente a eles próprios, e a sociedade de uma maneira geral, principalmente os mais pobres. O que nos espera nos próximos anos, a seguir essa tendência, e comportamentos que se radicalizam no discurso de ódio que se espalhou perigosamente desde o golpe assestado contra uma presidente legitimamente eleita e à prisão de um ex-presidente em um processo acusatório frágil, com o claro intuito de impedi-lo de se recandidatar à presidência da república?
Creio que é perigoso menosprezar a capacidade do governo atual, e desses “ceguidores” que lhes apoia. E a palavra que usei aí não está errada no sentido que quero dar a ela. Na verdade um neologismo que criei, com a junção das palavras “cegos” e “seguidores”, pois, infelizmente, é essa a realidade que estamos vivenciando, em um quadro onde a possibilidade de se mudar de opinião tem sido muito difícil.
Vivemos um viés conjuntural ainda contaminado por uma crise econômica mundial que estourou em 2008 e teve seus momentos de ápices extremamente preocupantes, com a quase quebra do sistema financeiro mundial. Naquele momento os Estados salvaram diversas corporações financeiras, levando bancos e seguradoras a serem estatizadas, ou reestatizadas, a fim de evitar uma sangria maior no sistema. Ocorre que, por ser estrutural, em função do limite das contradições atingidas pelo capitalismo em sua fase neoliberal globalizante, com muito mais ênfase nas especulações e mercantilização do dinheiro do que propriamente no investimento na produção visando geração de empregos a situação não foi controlada, a não ser momentaneamente a altos custos para a sociedade. O que vimos, ao contrário disso, foi como saída para as grandes corporações o investimento acelerado em inovações tecnológicas que, se por um lado deu impulso às ciências, por outro acentuou o problema dramático do desemprego e da desigualdade social, tanto entre as pessoas como entre estados-nações. Conclusão disso: os estados quebraram e o sistema financeiro seguiu cada vez mais forte em meio às oscilações de uma economia claudicante.
Por um tempo a euforia da globalização ludibriou muitas pessoas, multidões se iludiram com a promessa de um mundo sem fronteiras, com mais facilidades de deslocamentos e acesso às novas tecnologias. Juntamente com tudo isso o que se viu também foi uma ampliação desmesurada da ganância, esse que é o elemento mais marcante no processo que move aqueles que controlam o sistema capitalista e tem acesso às riquezas. E, numa lógica que é de sua essência, quanto mais se tem, mais se deseja ter mais.
No entanto, nas brechas desse processo alguns governos foram eleitos paradoxalmente em meio a essa onda globalizante e na contramão daqueles discursos, visto que defendiam maior protagonismo do Estado na defesa tanto da sua soberania quanto na proteção das populações mais pobres. Com isso, e impulsionado por um fórum criado por ONGs, sindicatos, instituições sociais e segmentos de esquerda, o Fórum Social Mundial, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial que se reúne anualmente em Davos, na Suíça, reunindo a nata do capital mundial e as maiores economias estatais do mundo, novas políticas foram sendo implementadas e, ao mesmo tempo, diferentes articulações para alterar o rumo da geopolítica mundial. O surgimento dos BRICS acontece nesse contexto, e, como era de se esperar, começa a incomodar as grandes economias do mundo, em especial os EUA.
Não demorou para que as guerras híbridas, que aconteciam no Oriente Médio e nas fronteiras da Rússia, passassem a acontecer na América Latina. O Brasil, por todo o seu protagonismo na criação desse novo passo geopolítico mundial, assim como por sua tentativa de se imiscuir em assuntos tidos como sagrados pelo império, como no caso das questões relacionadas à algumas das potências possuidoras de enormes reservas de petróleo, como o Irã, e nas discussões sobre enriquecimento de urânio, se tornou alvo nesses movimentos que se articulam para desconstruir governos e manipular multidões para destruir a política e a democracia, e assim derrubar regimes políticos que lhes antagonizem. As Jornadas de Junho deram o “start” de todo esse movimento que levou o nosso país para um abismo de proporções inimagináveis, cujas consequências às vezes nem queremos pensar, no afâ de evitarmos pessimismos e aumento das desesperanças que nos cercam. Mas é preciso lidar com esse ambiente tóxico e com essa areia movediça na qual nos metemos e que nos assusta, porque quanto mais mexemos mais nos afundamos nela.
Aparentemente as nossas instituições estão funcionando. E isso dá um ar de existência de uma república democrática. Contudo, a “res publica”, que deu origem àquele regime que se opunha ao absolutismo e às monarquias centralizadoras do Poder, e que explicitamente representava a “coisa pública”, ou “coisa do povo”, está deixando de existir. Num primeiro momento pelas políticas neoliberais globalizantes, e agora pelo nacionalismo direitista entreguista, vinculado aos interesses das grandes corporações, principalmente aos grandes conglomerados controlados por grandes bancos e sua burguesia pérfida e desejosa de mais poder e dinheiro.
É uma onda, naturalmente, ocorre ao sabor dos descaminhos que acontecem como consequência das contradições na política, e pelo fato da crise econômica estrutural não dá sinal de tréguas. Se acentuando, do ponto de vista da disputa pela hegemonia do poder econômico global, num embate entre gigantes que controlam a produção e o comércio mundial, que se reflete como efeito colateral em todas as demais economias, ampliando o drama de um mundo ainda indefinido quanto aos rumos que deveremos seguir.
Mas, voltando à nossa realidade, independente (até onde seja possível) do que acontece no mundo, é preciso criar ou fortalecer movimentos que tragam luz às trevas que se apresentam nesses tempos. Os ataques ao setor da educação, em especial, merece uma preocupação central, pelo que eles possuem em termos de intenção, do ponto de vista estratégico de quem deseja inibir, cercear ou censurar comportamentos críticos e visões que se contraponham aos desmandos e devaneios do governo.
Temos conhecimento que se articula em nível nacional uma tentativa de criar uma associação de professores de direita. Como em todos os casos desse tipo de entidade, que refuta a ideologia (como se fosse possível viver sem uma), inserem a palavra liberdade em suas denominações, muito embora o que preguem seja exatamente o cerceamento à liberdade de crítica. Pois não devemos ver isso como algo grave que devamos nos preocupar. O que devemos nos preocupar é a falta de envolvimento de nossas entidades e organizações de uma parcela considerável da população, particularmente de nossa categoria, que termina por deixar um vácuo de participação e representatividade que nos impede de programar ações concretas que nos defendam de ataques que prejudicam nossa categoria e que possam vir a ameaçar as liberdades democráticas.
Não sairemos desse impasse atual fugindo do debate, pelo contrário, devemos fazer o inverso, provocar discussões, ampliar nossa capacidade de inserção na universidade, e a partir dela na sociedade.
Uma sociedade tanto mais estará vacinada contra os vírus do obscurantismo e do viés autoritário, quanto mais ela for capaz de compreender todas as contradições que a cerca e quais são os melhores caminhos para evitar um colapso social e a disseminação de conflitos, violências e marginalidades. Somente com uma capacidade crítica e com o despertar de um sentimento do que é ser, de fato, cidadão, pleno de direito e convicto de suas necessidades de participar do processo de transformação social é que podemos combater os ilusionistas, os charlatões que comandam templos e impedem as pessoas de terem uma percepção real das coisas, livres de medos, preconceitos e discriminações.
A universidade cumpre um papel ímpar. Ela não pode se acovardar com os ataques que sofre de setores autoritários e de viés ideológico que teme a liberdade de pensar. E na universidade as nossas organizações, de técnicos administrativos e estudantes, mas particularmente dos professores, devem mudar sua postura sem perder a combatividade necessária. Mas devemos patrocinar mais debates, chamar nossos colegas a participarem de discussões sobre a conjuntura e a necessidade de compreender que uma política decidida por quem não tem a real dimensão dos problemas sociais, poderá trazer consequências para as nossas atividades, mas também para o futuro da sociedade e dos nossos filhos. É um pleno exercício de cidadania, para além da necessidade de termos que trabalhar para usufruirmos de um salário e podermos sobreviver.
Por isso nossas entidades devem assumir um protagonismo mais eficaz, que vá além das palavras de ordem e das agitações para participação de manifestações. Isso é fundamental, importante, e tanto mais quanto maior sejam nossas presenças nesses lugares que demonstrem nossas indignações e representem nossa combatividade e luta. Mas construir uma mentalidade crítica em nossa categoria, na universidade de forma geral, é a mais eficaz vacina que podemos injetar na sociedade. Essa é a condição de impedirmos que o abismo se abra cada vez mais em nossa frente, criar anti-corpos para destruir os vírus que corroem nossa existência republicana e democrática.
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(*) Artigo escrito para o XV Encontro Nacional do Proifes-Federação, realizado na cidade de Belém-PA. Título original: NOSSA FORÇA ESTÁ NA ORGANIZAÇÃO E NA CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO CRÍTICO. Apresentado por mim, Romualdo Pessoa, professor da UFG e delegado ao encontro, eleito pela base da ADUFG-Sindicato.


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