“Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos
Me interessam
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam, me interessam”
(Cazuza)
O
que procuro abordar teste artigo não tem sido novidade em reflexões e
indagações por essa década deste século, em que o imponderável tem se imposto
mais do que em outros tempos. Isso dito até de forma um pouco provocativa,
porque sei, como historiador, o quanto é absolutamente impossível estabelecer
comparações entre épocas, não somente pela natureza dos fatos, mas pelas
próprias transformações que as sociedades passam.
Embora
no senso comum as pessoas repitam com frequência que a “história se repete”,
isso é uma bobagem que só demonstra o quanto se desconsideram as relações
temporais. Imaginam haver uma repetição de situações que são completamente
desvinculadas de realidades passadas, dentro de outros contextos e noutro
tempo. É a absoluta ausência de capacidade crítica sobre o que é a história e
como cada um de nós se situa no seu tempo. Em nosso tempo e na compreensão dos
tempos passados.
O objetivo aqui não é travar uma discussão de caráter acadêmico. Por
isso é importante uma exposição mais informal, procurando estabelecer um diálogo
não somente com quem está a fazer essa leitura, mas também como uma espécie de reflexão em voz
alta, para que possa também me ajudar a compreender tudo que acontece à nossa
volta, numa rapidez estonteante e num movimento de insanidade social, numa
época em que ser normal pode te deixar meio deslocado da realidade.
Tenho escrito diversos textos neste blog – Gramática do Mundo –
sobre esse tema desde que o criei, em 2010. Lá atrás o termo “pós-verdade”
ainda não havia se destacado como um neologismo[2]
que passaria a caracterizar uma era, marcada pela absoluta ausência de
critérios para definir um acontecimento, ou até mesmo uma notícia inverossímil,
desprovida de qualquer sentido ou que tendo sido inspirada em algum fato real.
Mais do que isso, uma era onde se desconstruía a verdade elaborada e se afirmava
a versão desejada. Nada mais importava para que se pudesse estabelecer a
verdade, já não havia mais critério. Verdade passaria a ser aquilo que a paixão, a fé, e o sentimento de cada um desejava que fosse. O racionalismo, imperioso
movimento iluminista que desbancou a era das trevas medievais, decaía em
descrédito juntamente com a filosofia, a história e a sociologia. Evidente que
isso foi estimulado por forças desejosas em
abominarem a crítica.
Em
2016 “pós-verdade” (“post-truth”), foi citada pelo Dicionário de Oxford como a
palavra do ano. Então não estamos falando de algo que decorre de uma conjuntura
especifica nossa, advinda de um processo político complicado que culmina em um
personagem que se torna presidente e foi beneficiário desse ambiente criado por
“fake News”, o instrumento que consolida a era da pós-verdade, em todas as suas
dimensões.
Esse
fenômeno é característico de uma época que só pode ser compreendida em toda a
sua dimensão histórica. É correto, a meu ver, afirmar que o auge desse tempo de desvio de rota na
forma como a sociedade se posicionava foi o momento em que estourou a crise
econômica, no ano de 2007, embora suas causas já viessem de bem antes. Mas
podemos recuar mais no tempo, e destacar um fato que, literalmente,
implodiu as mais ferrenhas convicções e abriu caminho para uma década de
instabilidade crescente, dentro de cada país e entre boa parte deles. O ataque
às Torres Gêmeas, o “World Trade Center”, à Casa Branca (esse ataque
fracassado) e ao Pentágono. O que se sucedeu nos anos seguintes abriu a caixa
de pandora, e libertou todos os males que poderiam gerar perversidades e
destruir a democracia e a política.
Façamos a junção dos dois momentos. O “Patriot Act” significou a ausência de
liberdades individuais e a completa perda de privacidade nos EUA e para o
mundo. O medo, gerado pelo ataque terrorista, e o uso desse sentimento a partir
de então, para justificar as mais perversas e inomináveis reações, transformou
o mundo e sinalizou uma mudança fundamental na maneira como as sociedades se comportavam
até então, a partir de toda a propaganda que se fez em torno da globalização.
A
mentira como arma sempre esteve presente ao longo da história da humanidade.
Mas a forma como ela se torna algo quase unânime decorre da exposição
permanente de uma versão fantasiosa, repetida infinitas vezes e “demonstrada”
por meio de informações não comprováveis, mas ditas enfaticamente por
autoridades que a repete incessantemente sem que o contraditório seja
apresentado. Pouco a pouco as pessoas vão assimilando aquilo que é dito com
insistência, e assim se forma a “opinião pública”. O grande momento disso foi
toda a propaganda feita para justificar a invasão do Iraque pelos EUA, com base
em informações falsas e adredemente construídas com o apoio da grande mídia.
Sim, a grande mídia é responsável pela origem das fake news.
Os fatos demonstram os
equívocos cometidos nessas ações, e a perversão gerada com a destruição de
países, ampliação do deslocamento de populações pelo mundo, insegurança,
aumento da violência, e... a crise econômica global, cujo ápice se deu entre
2007 e 2010, mas que segue gerando instabilidade na economia mundial.
No
entanto, as análises feitas pelos grandes jornais poucas relações fazem entre
esses atos e a crise mundial. É como se de repente, do nada, as pessoas
começassem a rever seus conceitos, aleatoriamente. E uma amnésia coletiva acometesse a maioria das pessoas, indistintamente.
Mas
nada é aleatório, tudo decorre de algum tipo de ação, não se pode falar em
acaso, mas em causas. Contudo, negar a verdade, como estratégia de ação e de
desconstrução do seu oponente, passou a assumir a condição de praticamente uma
arma, a partir desses fatos que eu acabei de citar. E, em meio à falta de
perspectivas, diante de uma grave crise que quase quebrou o sistema financeiro mundial,
o medo adquiriu uma nova conotação. Já não mais somente diante da guerra, ou da
violência cotidiana, mas diante da ausência de caminhos que indicassem as
melhores alternativas para que cada um pudesse acreditar que o futuro seria
melhor.
Passamos
a vivenciar, principalmente a partir de 2010 uma virada no comportamento das
pessoas, induzidas por discursos radicais, sectários, alimentados pela fé e
instrumentalizados por práticas ultra-conservadoras, disseminadas em um
ambiente tóxico que só piorava como consequência da crise econômica.
Dois
momentos foram marcantes para acentuar esses comportamentos, em meio a um mundo
que já não girava somente em uma direção, mas completamente sem rumo. O
primeiro foi a eleição de Barack Obama. A bem da verdade as “fake-news”, em
todas as suas dimensões, se amplificaram incontrolavelmente a partir de então.
Sua eleição despertou nos setores mais conservadores, estimulados pelo
fundamentalismo religioso, um ódio étnico-racial visceral e uma intolerância
inédita na relações políticas naquele país. O “Tea Party”, grupo que surgiu se
contrapondo ao Obama se encarregou de espalhar mentiras o envolvendo e isso
prosseguiu por todo o período em que ele foi presidente. Transformou-se numa
estratégia política que teve sua experimentação mais determinante no plebiscito
que aconteceu no Reino Unido, quando a população foi chamada para decidir sobre
a continuidade ou não na União Européia. O “Brexit” como esse movimento foi
chamado se constituiu no laboratório por excelência de uma nova prática
política, onde a mentira espalhada persistentemente pelas redes sociais passou
a adquirir ares de verdade, e os fatos eram desconstruídos por discursos
toscos, sem fundamentação na realidade, mas que se escoravam nas decepções,
frustrações, sentimentos de desprezo pelas instituições e pela política, e na
incapacidade das pessoas refletirem criticamente sobre realidades complexas, em
um ambiente em que as tecnologias dos smartfones reduz a capacidade de
compreensão, por meios de uma inundação de notícias. As desejadas, e tornadas
críveis, passavam a serem aquelas que melhor se inseriam nos desejos de cada
um. A verdade passa a ter, então, a conotação que cada um deseja dar a suas
escolhas. Isso pode representar o fim da democracia e uma plena derrota da
política.
A
partir do Brexit, e logo em seguida, com a eleição de Donald Trump, a palavra
“fake News” foi massificada por este que viria a ser o presidente dos EUA. E
passou a ser utilizada contra a imprensa toda vez que suas idéias eram
contrariadas ou que reportagens emitiam fatos pérfidos de sua trajetória de
rico empresário. Os ataques nas eleições contra Obama e a sua candidata Hilary
Clinton eram repetidas e compartilhadas celeremente por seus seguidores, sem
que houvesse a menor preocupação em checar os fatos. Ao mesmo tempo, e de forma
oportunista, a milhares de quilômetros de distância alguns jovens penetravam no
mundo digital e alimentavam as mentiras, a fim de atraírem para os seus sites o
maior número de visualizações e dessa forma faturarem dinheiro em cima de “fake
News”. A cidade de Velez, na Macedônia, ficou famosa por abrigar um grande
número de sites que se especializaram em interferir nas eleições dos EUA e em
outras partes do mundo. Mas isso não se deu somente de forma espontânea, houve
método nisso. Steve Bannon foi talvez o principal estrategista por trás desse
processo de difusão de fake News. Assim como teve também uma participação
importante no “Brexit” e nas eleições aqui no Brasil.
Mas
é preciso, diante disso, e eu procurei contextualizar para que pudéssemos
compreender como se dá esse fenômeno das fake News, e, principalmente, porque
entramos nessa “era da pós-verdade”, saber duas coisas: 1) o que é a verdade; e 2) porque as pessoas se dispõem a acreditar em mentiras.
Primeiro
é necessário compreendermos que a verdade não é, jamais, absoluta. Ela é sempre
relativa e possível de ser questionada, e até mesmo, revista. Nesse aspecto é
salutar saber que é a ciência e a capacidade crítica de investigar e avançar
para além do que se deseja demonstrar como definitivo quem pode colocar
qualquer fato sob questionamento. Uma verdade só poderá ser negada a partir da
investigação científica e da comprovação de elementos que, primeiro desconstrua
com comprovações aquilo que se estava afirmando até então, e que, em sequência,
se apresente as comprovações do que se deseja apresentar como algo a substituir
o que até então era verdade. Por isso que, em minha opinião, a dialética se
constitui como o melhor método de discussão e investigação. Na medida em que
propõe analisar qualquer fato a partir da identificação de contradições que
aponte a falseabilidade naquilo que se apresenta, e, ao mesmo tempo, se impõe
como uma antítese daquilo. Na impossibilidade de que essa antítese se apresente
como algo definitivo, de difícil questionamento, a síntese é o caminho para que se
possa fazer a junção do conhecimento anterior com as novas compreensões que
pretendem negá-lo.
O
que não se pode, jamais, é desconsiderar algo sem que se tenham elementos
comprobatórios para isso. A humanidade avançou exatamente estabelecendo esses
pressupostos, em que a cada novas descobertas se ampliavam o horizonte dos
conhecimentos e se avançava na produção de algo qualitativamente superior. Que não
é, jamais, definitivo.
O
que se pretende hoje, com alguns discursos obtusos, na desqualificação de áreas
importantes das ciências humanas, é erradicar essa possibilidade de
interpretação dialética, visando colocar determinadas visões de mundo, e compreensão da realidade, como sendo definitivas, ou imutáveis. Isso significa construir um
mundo totalitário, onde o pensamento crítico se tornaria algo marginal e
“perigoso”, como aliás funcionou em um tempo tenebroso, e por isso denominado
de trevas medievais. Cito muito o filme “O Nome da Rosa", que retrata um
tempo onde o conhecimento estava sob controle da igreja e os que ousassem
pensar de forma diferente seriam submetidos a julgamentos da inquisição e a
serem mortos por questionarem os dogmas religiosos.
A
outra questão, para além da verdade, que precisamos compreender é como e porque
as pessoas se dispõem a acreditar em coisas que são ditas sem que haja a menor
lógica por trás, ou sem que exista qualquer comprovação de que aquilo é fato
e/ou real. Daí a importância de entender a contextualização. O que vai poder
nos aproximar da compreensão do que faz isso ser possível é entender
historicamente as condições reais de existências dessas sociedades e dessas
pessoas, que as empurraram numa direção de cegueira e de crença radical em
versões de acontecimentos que não correspondem aquilo que entendemos ser a
verdade, porque possível de ser comprovada.
Naturalmente,
colocarei aqui essas versões como sendo as verdades vistas por esses segmentos.
Digamos que as fake news sejam para essas pessoas suas verdades. Para nós, que
trabalhamos com o raciocínio crítico, dialético, a dúvida e a necessidade de
comprovação é condição necessária para acreditarmos. O que move, por outro
lado, as pessoas que acreditam em fake news?
Creio que resumidamente eu poderia colocar como sendo a junção de
como a tecnologia tem sido usada para difusão da informação e como também tem
se constituído num componente forte do fortalecimento do poder das igrejas.
Isso, com o uso em larga escala das redes sociais e das mídias, disseminam
elaborações de fatos, versões ao sabor das conotações ideológicas (e aqui não
faço distinção, isso serve para as igrejas, mas serve também para quem segue
alguma ideologia, da esquerda à direita) que, repetidamente, se constitui como
aquela verdade que se enquadra no viés ideológico, ou no interesse dos dogmas
que se inspiram em outras verdades ditas como absolutas e imutáveis.
Com
esses componentes, aliado às questões conjunturais (crise econômica, crise
política, crise de valores, violência, xenofobia, intolerância... etc...) nos
situamos numa realidade em que as pessoas, a partir da própria situação de
radicalidade que ela foi construindo a partir dessas condições analisadas, usam
da seletividade para ler e acreditar somente naquelas notícias e fatos que lhes
interessam. Cada um passa, então, a fazer um filtro nas informações, e eliminam
assim, o contraditório. Dessa forma não conseguem identificar até onde aquilo
no qual elas acreditam pode ou não ser verdade. Não há essa possibilidade do
crivo quando eu elimino o contraditório, afasto-me do outro que pense
diferente, abomino qualquer outro tipo de ideia que se contraponha à minha, não
aceite um outro indivíduo pelo jeito dele ser, por sua condição social, de
gênero, de escolhas políticas. Assim, cada um passa a ter a sua verdade, e a
compartilhá-la somente com quem a aceite.
A nossa humanidade depende de
nossa capacidade de aceitação do outro, das nossas diferenças, a diversidade é
a nossa maior riqueza. As pesquisas científicas existem para demonstrarem se
aquilo que vemos, assistimos e acreditamos, merece ou não a nossa
credibilidade. E a filosofia, a história e a sociologia são áreas da ciência
que, juntamente com outras, tratam das relações humanas, das nossas condições
sociais, da forma como nos comportamos e vivemos em sociedade. Na medida em que
abominamos, primeiro, a necessidade de comprovarmos aquilo que nos é mostrado
como verdade, e depois, quando extraímos do rol das ciências aquelas que são
responsáveis pela compreensão de nossas condições humanas, estaremos nos
direcionando para um ambiente cada vez mais permissivo do ponto de vista das
relações sociais, intolerante e de não aceitação das diferenças. Isso
é um comportamento extremamente perigoso, e, guardando-se as devidas proporções, com o devido cuidado de evitar o anacronismo, vai na direção daquele formato de mundo que o nazi-fascismo
tentou fundar em meados do século XX e foi responsável pela morte de dezenas de
milhões de pessoas.
Vivemos
um tempo difícil, é verdade, mas devemos reafirmar a necessidade de estabelecermos
relações sociais, solidárias e tolerantes. Enquanto cientistas sociais sabemos
da nossa importância. Mas sabemos também que perfidamente existem mentes
reacionárias que agem de maneira sinistra, insensível, e visam criar um modelo
de sociedade onde a tirania e a ausência da crítica conduza as pessoas
cegamente em direção a abismos. Precisamos de um novo movimento iluminista.
Luz, e que a claridade impeça que nosso futuro seja de trevas.
O melhor é lutar para construirmos um mundo em que a verdade seja questionável, não
por meio de mentiras, mas por nossa capacidade de crítica, de dúvida e de
curiosidade sobre nós mesmos e os fenômenos que nos cercam.
Nossa máxima deve ser, hoje e sempre: duvidemos de tudo! A verdade estará mais próxima de
nós se formos questionadores da realidade. E fujamos das bolhas que as redes
sociais se tornaram.
Enquanto
é tempo.
[1] Esse artigo foi escrito originalmente para uma exposição durante o PINT OF SCIENCE[1] – GOIANIA, 22.05.2019. Um festival que ocorre simultaneamente em diversas cidades do
mundo e tem como objetivo aproximar a
ciência do cidadão, por meio de uma linguagem acessível e em locais de lazer. Revisto e adaptado em 21.04.2020, em plena quarentena, um isolamento social causado pela disseminação do vírus "Sars Cov-2". Em meio a essa pandemia, já que afetou todo o mundo, as fake news continuam a proliferar, mesmo que de forma macabra, envolvendo mentiras relativas a doença Covid19, demonstrando que se tornou uma arma para além da racionalidade humana.
[2] Neologismo é um fenômeno
linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na
atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente. Pode ser fruto de um
comportamento espontâneo, próprio do ser humano e da linguagem, ou artificial,
para fins pejorativos ou não (Wikipedia)
(*) Artigos já publicados neste blog, desde 2010, que abordam essa mesma temática:
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