quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A SERVIDÃO HUMANA MODERNA

“A desgraça deste mundo reside no fato de ser muito mais fácil abandonar os bons hábitos do que os maus”.
William Maugham

O livro “A Servidão Humana”, um clássico da literatura mundial, foi lançado há quase exatos cem anos, em 1915, e o seu autor Wiliam Somerset Maugham, vivia também, pessoalmente, frente a dilemas que ainda nos dias de hoje são corriqueiros. Assumir a sua homossexualidade. Mas o conteúdo dessa obra-prima não está centrada nisso, mas em um forte questionamento sobre as escolhas feitas pelo indivíduo, diante dos problemas que a vida lhe apresenta. O amor, a família, o destino, a riqueza, a morte, as deficiências físicas e morais. E os desejos e angústias que permeiam as nossas decisões, fundamentais para definir nossos destinos. Era o retrato do ser humano em uma época marcada por transformações cruciais. O início da segunda guerra mundial impunha ao mundo novas realidades, marcadas pela brutalidade da guerra, e pelo embate ideológico que redefiniria o mundo. Mas, ainda se discutia sentimentos como bondade, paixão e amor, com sensibilidade, muito embora a hipocrisia, traço de caráter coletivo da sociedade, já se manifestasse em atos e comportamentos.
Cem anos depois, o que me proponho aqui é discutir outro tipo de servidão, que tem definido comportamentos, hábitos e vícios, gerados por uma impressionante dependência tecnológica em um novo tipo de sociedade, onde nos tornamos consumistas compulsivos, e nos consumimos pelo grau de escravidão que nos impõem os objetos cada vez mais sofisticados que nos cercam.
Servidão e escravidão podem carregar elementos conceituais diferentes, quando analisamos as estruturas sociais ao longo de séculos de transformações da história humana. Mas, são palavras que podem tornar-se sinônimas quando procuramos estabelecer as relações construídas pelo sistema capitalista e o grau de dependência criada entre os indivíduos e as mercadorias.
Esse fenômeno foi estudado e identificado por Karl Marx já no século XIX. Segundo ele, nas relações sociais que são estabelecidas na sociedade capitalista o indivíduo ao consumir uma mercadoria desconhece, em absoluto, todo o processo de produção, no qual está embutida a exploração da força de trabalho, principal elemento a acarretar a acumulação de riquezas nas mãos dos poucos que controlam os meios de produção.
As mercadorias foram adquirindo, ao longo da consolidação do sistema capitalista, por sua lógica entranhada, de garantir por ela os lucros aos comerciantes e à burguesia, o caráter de um fetiche. Por um lado, à medida em que cada vez mais ela cria uma vida própria, deixando de ser adquirida simplesmente porque advinda de uma necessidade, tornando-se um objeto de desejo irrefreável pelo qual os indivíduos se tornam dependentes; e por outro lado porque nesse processo perde-se a percepção de que ela é fruto da exploração do trabalho alheio, e por ele se garante o lucro, e o seu valor passa a extrapolar sua significância real, adquirindo um valor artificial ao sabor das manipulações criadas pelo mercado, deixando de ser vista como algo criado pelo trabalho humano e pelo qual devesse ser medido.
Por esse processo, a vontade do ser humano sucumbe ao que Marx denominou como o “fetichismo da mercadoria”, invertendo-se a ordem natural das coisas, com as pessoas sendo subsumidas nessa lógica sistêmica e aceitando serem dominadas pelos objetos. Perde-se, pela dependência criada em relação às coisas, a capacidade de refletir criticamente sobre o processo de exploração na produção da mercadoria e substitui a necessidade real, pelo desejo de consumir, afetando duramente a capacidade do ser humano de controlar de forma consciente a maneira como se dá o processo da produção.
Dessa forma o dilema se nos apresenta como no enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”[1]. Na incapacidade do ser humano decifrar todo o processo produtivo, responsável pela ampliação desmedida de mercadorias, e a consequente destruição da natureza, torna-se impossível realizar seus desejos objetivado na frase que já se tornou muito mais o foco de marketing do que de realizações efetivas para sua concretização: o desenvolvimento sustentável.
Essa dependência, contudo, assume nos dias atuais (muito embora perpassando isso por épocas passadas desde o surgimento do capitalismo) um estágio preocupante, porque se aproxima do limite possível de ser tolerado pela natureza, e porque culturalmente consome a juventude, principalmente, transformando-a em zumbis modernos, espécie de seres inanimados cuja capacidade de comunicar-se por vias de tecnologias sofisticadas afasta-a do contato e do convívio natural.
Paradoxalmente, essa escravização aos objetos, notadamente os de forte atração tecnológica, distanciam as pessoas, quando essas estão próximas, e as aproximam quando estão distantes. A proximidade passa a ser um empecilho porque impede de usufruir dos desejos doentios de se comunicar pelos aparelhos sofisticados. Isso pode fazer com que a capacidade de dialogar presentemente torne as novas gerações frias no convívio social e insensíveis aos contatos humanos, que tendem a tornar-se fúteis e passageiros.
Não há dúvidas que a tecnologia facilita a vida humana, reduz as distâncias e coloca as pessoas mais próximas. Mas o preço a pagar por isso tem sido bastante elevado quando se fala das relações humanas. O mesmo objeto de deslumbre que nos lança no mercado em busca de novidades, não necessárias, mas desejáveis, torna-se também alvo da marginalidade, quase sempre oriunda de camadas sociais mais baixa. Cada vez mais aparelhos celulares e tabletes são visados em assaltos e roubos. Repassados e vendidos no mercado paralelo o baixo preço dessas mercadorias faz com que ela seja disputada também por pessoas pobres. Com isso, não somente a classe média e os mais ricos ficam reféns dessas tecnologias, e de mercadorias que não deveriam ser as mais importantes em suas vidas, cujas necessidades mais prementes são relegadas a planos inferiores. Some-se a isso as facilidades de créditos que garantem acesso fácil às mercadorias e instigam o consumo. A alienação gerada por essa lógica consumista e os vícios que dela advém, passam a se fazer presente também entre os mais pobres, que se veem em um mundo distante daquilo que é a realidade vivida.
Por todas as classes sociais a dependência tecnológica assume ares de uma epidemia. E aquilo que deveria ser algo facilitador das relações sociais, torna-se um enorme impedimento para que se tenha a clara noção dos mecanismos reais de produção e do processo de manipulação da realidade a fim de tornar cada jovem um consumista em potencial.
Podemos argumentar que tais tecnologias, e as redes sociais que elas criam, tem ultimamente contribuído para aglutinar milhares de jovens em manifestações que tem azucrinado a vida de governantes. Mas nessas redes sociais vê-se também o lado selvagem, estúpido e odiento de muitas pessoas, que passam a frequentar um ambiente onde podem tudo, ou pensam que podem, e o desrespeito passar a se constituir em uma regra que se dissemina numa velocidade impressionante.
Alimentada pela mídia, estamos construindo via esses mecanismos uma geração marcada pelo ódio. Mas nesse sentimento não há, infelizmente, uma capacidade crítica suficiente para distinguir a origem de suas frustrações. O fetichismo, embutido na mercadoria, espalha-se pela sociedade, e a coragem de se manifestar via redes sociais, bem como a virulência em que essa rebeldia se transforma em alguns casos, não tem objetividade. Esses jovens, em sua maioria, não se disporiam a enfrentar os seus piores demônios, pois são eles que produzem seus objetos de desejos. São alienados e, com esses comportamentos, não causam nenhum medo naqueles que controlam toda a riqueza, os meios de produção e a cada um deles, por intermédio das mercadorias que desejam.
Não defendo nenhum manifesto Ludista, anti-tecnologia. Mas me preocupa o caminho que estamos trilhando em direção ao futuro. Como sempre digo, o futuro não existe. Ele é uma construção idealizada. Quando imaginamos, contudo, aquele tempo que ainda virá, e no qual nos imaginamos nele, a menos que a morte nos tolha a vida, devemos olhar para o presente. Ele é que dirá que tipo de mundo estamos construindo.
Faltando um ano para o prazo estabelecido a fim de se resolver os principais problemas da humanidade, porque é tão difícil se atingir os “objetivos do milênio”?[2] Porque tudo isso depende do rompimento com as estruturas vigentes no sistema capitalista, cuja prioridade é produzir a uma meta lunar (ou lunática), sem limites, cada vez mais mercadorias.
Somos arrastados por um turbilhão midiático, de propaganda, que invade cada casa, indistintamente, a martelar em nossos desejos e a nos impor uma vontade. Sucumbimos a esse fetichismo, agora ampliado pelo marketing, e deixamos para depois a preocupação com os destinos da humanidade. Eles deixam de ser nossos quando atingimos essa capacidade consumista e passamos a querer resolver um problema somente quando ele nos incomoda particularmente. Somente a crítica, a capacidade de identificar as origens desses males, e rompendo com o fetichismo (o que não significa abrir mãos dos desejos, mas ter a consciência crítica de seus limites), pode-se corrigir o rumo que tem nos encaminhado em direção a um abismo.
Certamente essas poucas palavras não surtirão efeito, porque tem alcance limitadíssimo. E muitos daqueles que lerem isso que escrevo, já possuem essa consciência crítica formada, e sentem a mesma impotência diante desses problemas. Mas consigo assim me aliviar das culpas, visto ser um indivíduo do meu tempo, e também algumas vezes cego pelos desejos consumistas.
Exprimo dessa forma um sentimento que demonstra o quão contraditório é o mundo em que vivemos. Contudo, tenho a consciência da necessidade de mudar o mundo não pela cultura, pelos hábitos, mas rompendo com as relações sociais de produção que nos escraviza e limita nossa capacidade de construirmos um mundo mais solidário e menos egoísta. Somente assim, e destruindo essa tradição que está enraizada em nossas entranhas e acompanha a cada nova geração, poderemos criar outros valores que nos levem a consumir aquilo que é estritamente necessário para vivermos bem e com dignidade, com o olhar voltado para o passado, os pés firmes no presente e nossos sonhos utópicos realizáveis a desenhar nossos destinos.
Quem sabe a partir daí possa ser possível falar em desenvolvimento sustentável?
Vejam este vídeo. Fala sobre a maneira como estamos substituindo nossa maneira de interagir, nos submetendo à dominação dos objetos e da tecnologia. 




[1] “Diz uma antiga lenda grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (uma besta com cabeça de mulher, asas e corpo de animal) para atormentar os moradores da cidade de Tebas. A Esfinge cruzava o caminho de todos os que se aproximavam da cidade e formulava um enigma para o viajante. Quem errava o enigma era devorado pelo monstro. Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “O que durante a manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e à noite tem três”. Édipo respondeu corretamente* e a Esfinge ficou tão furiosa que se lançou num precipício. Graças à façanha de derrotar a Esfinge, Édipo tornou-se rei de Tebas e ganhou a mão da rainha enviuvada, sua própria mãe.”.
(*) Resposta ao enigma: O ser humano. Representado em suas fases de recém-nascido, adulto e na velhice, quando necessita ser apoiado em uma bengala ou cajado.
[2] Em 2000, a ONU – Organização das Nações Unidas, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu 8 Objetivos do Milênio – ODM, que no Brasil são chamados de 8 Jeitos de Mudar o Mundo – que devem (deveriam) ser atingidos por todos os países até 2015. 1. Acabar com a fome; 2. Educação básica de qualidade para todos; 3. Igualdade entre os sexos e valorização da mulher; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a saúde das gestantes; 6. Combaer a Aids, a malária e outras doenças; 7. Qualidade de vida e respeito ao meio-ambiente; 8. Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. (http://www.objetivosdomilenio.org.br/)

(*) Originalmente publicado em 2014, este artigo foi reeditado para correção do link. Mas, pela própria temática, ele mantém a sua atualidade. E por essa razão não foi modificado.

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