“A cegueira também é isto,
viver num mundo onde se tenha
acabado a esperança”[1]
Uso essa expressão do título (em parte inspirado na obra de Carl Sagan, "O mundo assombrado pelos demônios") como
uma metáfora, naturalmente. Inferno é um ambiente criado, tal como os demônios,
para justificar a existência dos deuses, que, em tese, viriam para salvar os
viventes das desgraças a que estivessem submetidos.
Mas o inferno sintetiza o caos, a
perversão, a absoluta ausência de qualquer respeito pelo outro. Seja homem,
mulher ou criança. Importa somente o poder de quem se impõe pela força, pela
brutalidade, que desrespeita regras e que não dá o mínimo valor pela vida. Isso
seja de quem tem o grande Poder, e que possa estar na condução de um Estado
falido moralmente, ou dos micros-poderes, que se espalham perversamente na
ausência de autoridade e numa situação gestada pela mediocridade de figuras
ásperas, ávidas de poder impossibilitados de serem conquistados
democraticamente.
Nada disso surgiu por acaso, esse
“inferno” não se fez por geração espontânea, como num passe de mágica. Houve
intenção, arquitetura, comando, decisão e ação, por meio de diversos atos que
destruíram, e desconstruíram outras possibilidades de se viver com dignidade,
mesmo numa sociedade desigual. A ganância, obsessão pelo poder, hipocrisia,
desprezo pelos pobres e, acima de tudo, uma luta de classes que se mantinha
submersa e emergiu perversamente diante da impossibilidade desse poder ser
alcançado pelas urnas.
A chamada guerra híbrida, termo já
por muito tempo usado por especialistas em geopolítica para identificar as
sabotagens feitas por agentes estrangeiros infiltrados em ONGs, empresas, ou
até mesmo por quintas-colunas cafajestes que não tem o menor sentimento pela
nação, pois que espalham suas riquezas por paraísos fiscais mundo afora, foi
aplicada aqui no Brasil, como já acontecera em diversos outros países. E continua
a acontecer numa conjuntura mundial marcada por essa característica de disputa
do grande poder. A bola da vez, neste momento, é a Nicarágua. Tudo indica
que a próxima será a Turquia.
Não está em jogo o caráter de um
governo. Se ele é progressista, ou não. Simplesmente importa o fato de não
rezar na cartilha do império, ousar bater de frente com forças que se julgam
donas do mundo e/ou se atrever a construir alternativas que tirem a hegemonia
geopolítica das mãos daquelas potências que desde a segunda-guerra mundial
fortalecem podres-poderes e corporações que comandam a riqueza mundial.
As condições nas quais o nosso país
se meteu a partir de 2015 não tem nada a ver com problemas fiscais. Essa farsa
de “pedaladas” criadas para justificar ações golpistas e destruidoras de um
modelo de democracia que já era limitado, e tornou-se absolutamente falso,
farsesco, hipócrita, desmoralizado, foi somente pretexto para assaltar o Poder
e dominar o Estado à revelia dos desejos do povo. As medidas para resolver
problemas fiscais estavam postas, até mesmo com a inclusão do imposto sobre
movimentação financeira. Mas este pegaria os sonegadores, pequenos e grandes
marginais, os “laranjas”, doleiros, muita gente que tem lojas/empresas de
fachadas utilizadas para lavar dinheiro, os ricos desse país que se
enriqueceram com mérito. Mérito de terem a habilidade de explorar a força de
trabalho de uma maioria de pobres, que historicamente foram colocados na
condição de estúpidos, de adoradores dos “diabos”, de puxa-sacos dos ricos como
se esses fossem iluminados pelos deuses para ajudá-los em suas via-crucis em
busca de empregos. Desgraçadamente muitos acreditam assim, e oram em suas
igrejas pela fidelidade de um deus que está encarnado em cada um desses grandes
milionários. Pois que sim, foram iluminados. Por mérito. E cabe aos pobres
miseráveis espelharem-se neles, e, quem sabe algum dia venham a ocupar seus
lugares, nem que sejam depois da morte.
E, quando a máquina destrambelha, e
no caso, o país entra no caos, em crise, os iluminados enviam seus dinheiros
para os paraísos fiscais. Quanto aos pobres, uma parte adquire consciência de
classe, sabem reconhecer que o inferno em que vivem é uma construção de mentes
perversas, e desejam o embate com as trevas. Outros, alienados, desprovidos de
qualquer capacidade de compreensão da realidade, senão pelo que lhes são ditos
dos púlpitos e das máquinas que lhes alienam do mundo real, sucumbem às
manipulações e escolhem entre seus representantes, mesmo que orando a seu deus,
a figura estampada, farsesca, do belzebu. Ou de outros diabos menos
qualificados para torná-los uma manada de estúpidos que seguem como gado em
direção a um enorme lamaçal de areia movediça.
As tecnologias atuais os guiam.
Cegamente repetem cantilenas fascistas que a história já condenara, e buscam se
guiar por profetas do caos, justiceiros de uma imoralidade que lhes pariu.
“Coisas ruins” que se alimentam das desgraças e as transformam numa hecatombe
social. Esses “demônios” pregam cinicamente o faroeste moderno, a opacidade do
ambiente em que vivemos, a desconstrução das gentes, e a cegueira para impedir
que o mundo real seja desnudado, e descoberto as vilanias que lhes
caracterizam. E, pior, se apresentam como enviados de deus, evangelizam-se, e
saem a pregar o extermínio dos pecadores, independente dos crimes, sem
julgamentos e sem condenação, num oposto radical do que serviu para fazer
surgir algumas religiões. Mas numa equiparação ao pior dos marginais, esses
cujas vidas já não valem quase nada e “só tem suas cadeias a perder”. Já esses
“poderosos podres pecadores”, demoníacos e hipócritas, tem um mundo a proteger.
Seu mundo, corrompido e degenerado.
O que esperar de um mundo dominado
por esses demônios? Onde a cegueira os fazem serem confundidos com enviados de
deus? Onde pobres se imaginam ascender ao paraíso burguês e desejam serem
conduzidos por milionários que assim se tornaram à custa das suas desgraças,
das suas misérias, de suas pobrezas?
Não! O inferno não é, assim, uma
metáfora. É o mundo que se deseja construir, entregando as chaves para os mais
pérfidos canalhas. E haverão de se arrepender, e não encontrarão paz, se essa
estupidez se consumar. Repetirão cananeus e filisteus que por milênios disputam
paz numa vida de guerra pela cegueira da visão. Ou da “ilusão de que um
super-homem possa vir nos restituir a glória”.[2] Se
derem asas ao demo ele reinará sobre o caos.
É certo que esse caos foi gerado
por um golpe que saiu pela culatra! Os demônios infiéis foram rifados do jogo, e o
grande belzebu foi escolhido pelo discurso mais perverso, encaixado no ambiente
fétido criado por essas criaturas demoníacas.
Há saídas, não tenhamos dúvidas,
nem percamos a esperança. Pode-se enfiar uma “estaca” no peito dessa perversão.
Essa “estaca” tem nome e endereço fixo. Sabe-se que foi transformado no “bode
expiatório” a ser ofertado no altar para saciar os desejos estúpidos de uma
classe média boçal. Está trancafiado numa condenação moderna, caso contrário
seguiria o exemplo que nos traz a antiguidade, e seria crucificado, quem sabe de
cabeça para baixo, diante de uma massa acrítica e pusilânime. A mesma que foi
beneficiada por suas ações políticas anos atrás.
Ou, na ausência dessa “estaca”,
sempre usada nas lutas contra os demônios e vampiros perversos, poder-se-ia pela esquerda se tentar o exemplo de que a união faz a força, e tornaria mais firme a resistência, recompondo a força enfraquecida pela desconstrução feita pela mídia nos últimos anos. Mas,
tudo indica que essas possibilidades estejam enfraquecidas. A força da
perversidade demoníaca contaminou algumas mentes boas, e as iludiu com a
possibilidade de que sós, separados e com discursos bondosos, pudessem
converter os incautos e que cada uma dessas possibilidades se tornassem
alternativas aos belzebus, pequenos demônios e diabinhos com chifres
escondidos. É triste ver que os nomes desses demônios são repetidos
diuturnamente pelos seguidores dessas alternativas, dando-lhes mais
visibilidades do que já possuem.
Se essas alternativas derrapam, não
conseguem iluminar as mentes convertidas dos pobres e miseráveis (e aqui não há
referência explícita a condição financeira, mas a pobreza de inteligência e
sagacidade) alienados, então teremos que nos preparar para vivermos muito mais
do que numa metáfora: esse país se tornará um inferno!
É claro que essa crônica quase
irônica de uma realidade cruel, é uma construção de quem tem uma visão sobre
essa conjuntura de um dos lados da história, e por quem não acredita em
demônios. Só que ela é, infelizmente, inspirada em fatos reais. Mas que eles,
esses demônios existem, parece não haver muitas dúvidas. Já Deus, ou deuses...
Se existirem, para onde estarão olhando?
Resta-nos lutar e torcer para que
nessas eleições o número de exorcistas seja maior do que daqueles que estão
possuídos pelo vírus demoníaco da perversão, da intolerância, da xenofobia, da
homofobia e do feminicídio. Contra esses, nosso brado forte, retumbante! O
Brasil, a Nação, é o povo brasileiro! “Liberdade, liberdade, abre as asas
sobre nós”![3]
[1]
José Saramago: “Ensaio sobre a cegueira”.
[2] Trecho da música de Gilberto
Gil, “Super-Homem”
[3] Trecho do “Hino da República” do
Brasil.
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