(Crônica publicada no livro: DEPOIS
QUE VOCE PARTIU)[1]
A morte
de minha filha mexeu demais comigo e ainda me deixa confuso. Sinto-me
diferente, embora mantendo as marcas que me caracterizaram ao longo de minha
vida, meu jeito de ser. Mas desde o dia 13 de dezembro carrego no peito um
coração abalado, fragilizado e bem mias sensível. Na mente as lembranças não
são mais as mesmas, os projetos já não tem tanta importância quanto antes, a
vida segue perdendo um pouco do sentido que tinha até o dia em que a Carol
partiu.
Dentre
todas essas sensações, e que tenho procurado relatar ao longo das crônicas que
escrevi, uma que mais chama a minha atenção foi o retorno ao passado. Desde a
morte da Carol tenho dificuldades para ouvir as músicas que invariavelmente as
colocava para tocar. Selecionadas ao meu gosto, milhares de músicas fazem parte
de um repertório que me acompanha e que me alivia do desgastante estresse do
dia-a-dia dentro de meu carro. Mas não consigo mais ouvir as mesmas músicas de
antes, aquelas que sempre carrego, sem sentir uma forte dose de emoção.
Invariavelmente eu choro, sempre que as ouço. Por isso não tenho insistido e
evito, por enquanto, ouvir esses cds. Pelo menos até o momento em que escrevo
esta crônica, ainda não consegui romper este bloqueio.
Há uma
explicação para isso. Minha filha era uma grande companheira de “viagem”. Para
qualquer lugar que eu fosse, em qualquer momento, ela imediatamente corria para
se arrumar, e insistia para sair comigo. Sentava-se quietinha no banco
traseiro, sempre colocava o cinto de segurança que aprendeu a usar desde bem
novinha, e ali ficava, às vezes impaciente com os meus impropérios no trânsito.
Quando eu me excedia, ou notava que ela estava muito caladinha, por entre os
bancos estendia meu braço e agarrava uma de suas pernas carinhosamente. Quase
todas as vezes que ela saía comigo eu repetia esse gesto. E ali, em sua
companhia eu ficava a ouvir minhas músicas preferidas. Ela só reclamava quando
às vezes eu aumentava demais o volume. Por isso, essas músicas me fazem muito
lembrar minha pequena Carol.
Estranhamente, o
mesmo não acontece com aquelas músicas dos anos 70. Tenho uma vasta seleção de
músicas daquela época, centenas delas gravadas em MP3, que retratam um período
importante de minha vida, a minha adolescência. São essas as músicas que quase
sempre tenho ouvido depois que a Carol partiu. O que me faz olhar mais o
passado do que o futuro.
Não que elas não me
emocionem. Também ao ouvir algumas delas, por várias vezes, chorei sozinho
dentro de meu carro, pensando em minha filha e sempre estabelecendo relações
entre o que no passado pensávamos do futuro. Dos sonhos, dos amores, das
fantasias, da vontade de ter filhos. E o presente, um tanto vazio, causado por
uma perda que nos bloqueia agora uma visão de futuro. Mas essas músicas me
atraem, sinto vontade de ouvi-las, me apego agora muito mais ao passado do que
às construções mentais que fazemos idealizando nossas vidas alguns anos à
frente.
Isso me preocupa,
claro. Tanto que já comentei algumas vezes com minha esposa e companheira,
Celma, sobre o quanto eu acho estranho não sentir vontade em planejar o futuro.
Minha preocupação não é propriamente comigo, mas com meu filho, que permanece
vivo, saudável, e agora somente ele representa esse elo entre passado e futuro.
A ele devemos dedicar todos os esforços que garantam que sua vida não será
sofrida, para que ele possa viver de forma prazerosa e satisfeito em estar
conosco. Se não apontamos para ele a importância de lutar por um futuro
tranqüilo, alegre e proveitoso, ele pode perder-se no presente. Afinal, a falta
de perspectiva de boa parte da juventude é, sem dúvida, responsável pelo
aumento da criminalidade entre os adolescentes, o que tem feito aumentar o
índice de mortes nessa faixa etária. Mas ao mesmo tempo precisamos demonstrar
para ele que o mais importante é viver bem o presente.
Como lidar com essa
dificuldade tem sido para mim um desafio. Ao perder uma filha na idade da
Carol, 10 anos, não consigo deixar de racionar dentro de uma lógica que me diz
que o presente vale mais do que tudo. Tanto mais quanto tenha sido sofrido
nosso passado. Essa perda me indica que nossas vidas devem ser vividas
intensamente, de forma positiva, livres das mesquinharias que marcam nosso
cotidiano. Apesar de ter dedicado um bom tempo de minha vida à meus filhos, ter
viajado, passeado muito com eles, depois da morte da Carolina ficou a sensação
de que eu poderia ter me dedicado mais, aproveitado mais os momentos, brigado
menos com ela. Como nos instiga sempre que a ouvimos a música de Silvio Brito
cantada pelos Titãs, embora o acaso não tenha nos protegido como eles cantam,
dessa enorme perda.
Tudo isso tem feito
com que eu tenha mais presente as lembranças do passado do que uma imaginária
construção do futuro. Sei que não posso viver dessas recordações, mas isso de
certa maneira tem me aliviado nos momentos de solidão, principalmente quando
sozinho em meu carro me lembro da companhia da minha “Bela”. Isso me instiga a
“viajar” por entre meus absortos pensamentos e a indagar sobre como nos motivamos
sempre construindo imagens idílicas do futuro. É inegável que a humanidade
chegou ao patamar de desenvolvimento movido por esses sentimentos, pela utopia,
por uma lógica que nos arrancava do presente e nos impunha a obrigação de
trabalhar pelo futuro. Muito embora muito disso esteja ligado à ganância, a se
produzir sem necessidade, motivando um consumo descontrolado, baseado na usura.
Mas, penso que isso
levou ao limite de nossa frieza emotiva, relacional, comunitária. Passamos a
viver um cotidiano perturbador, cuja obrigação sempre é de sermos competentes
ao máximo a fim de podermos produzir o suficiente para garantir ganhos, lucros,
tanto quanto possa ser suficiente para construir um futuro para nós. “Nós”,
aqui entendamos bem, o “Eu” e os que fazem parte da família. Mesmo que o
cotidiano perverso marcado pela obrigação de trabalhar ao extremo nos obrigue a
nos afastarmos cada vez mais do que deveria ser um prazeroso convívio com
nossos filhos e filhas, e parceiras, ou parceiros.
E assim seguimos
construindo nosso presente. Pela lógica, nos afastamos dele a cada dia, mas não
o vivemos como deveríamos. Carregamos sempre uma emotiva lembrança pelo passado
e imaginamos sempre como será nosso futuro, ou como deverá ser. Entre eles o
presente é uma mera passagem, fria, distante, forçada, pois sempre reclamamos
de nossas atribulações, estamos sempre a rememorar o passado e a lamentar o
presente, repetindo absurdamente que nada muda, que a rotina é estressante, que
estamos cansados do que fazemos. Quase nunca, nos dias atuais, o presente é
indicado como um momento prazeroso. Muito embora nos habituamos a responder
sempre ao “como vai?” às pessoas que nos cumprimentam com um aparentemente
otimista “vou bem, e você?”, tudo não passa de formalidades. Tão logo nos encontremos
com outras pessoas e passemos a conversar sobre nossas vidas, principalmente no
trabalho, e a analisarmos os acontecimentos à luz das imagens que a mídia nos
transmite de informações, o presente torna-se sombrio, violento, injusto.
Enxergamos tão somente as coisas ruins e assim vamos construindo um cotidiano
em que o presente torna-se irrelevante e o que nele fazemos significa somente a
construção do futuro. O resultado disso são momentos amargos, volúveis,
insignificantes. Quando optamos por nos distrair, participar de algum momento
festivo, e de encontro com os amigos consideramos isso como uma necessidade de
relaxar, sair da rotina. Numa clara inversão do que deveria ser nossa lógica de
viver.
Deveríamos construir
em nosso cotidiano momentos aprazíveis, e não somente buscar o prazer em raros
instantes que passam a significar um flash,
uma fotografia que retrata uma sensação de alívio em fugir do presente para
lugar nenhum. O sistema, claro, reforça-se em seu caráter mutante em nos
oferecer os lugares, alguns dos quais vistos como santuários, quase sempre
ligados à natureza, ou ao que resta daquilo que destruímos para construir o
futuro.
Vejo-me, assim, numa
encruzilhada e o dilema é tentar descobrir qual o caminho a seguir, na medida
em que ao olhar em frente não vislumbro o horizonte. Passo, portanto, a
analisar com muito mais rigor do que antes o terreno em que estou pisando,
melhor dizendo, estudo melhor o presente, o que nos cerca, as nossas relações.
Corro por outro lado o risco de permanecer estático em um presente mutante,
apegado a uma perda inestimável, que para mim ainda é presente, embora eu
devesse vê-la como passado.
Entre a ausência de
uma perda que representou uma dilaceração em minha carne e a presença de
pessoas que ainda me completam, para os quais eu deveria viver mais o presente
encontra-se um vazio, melhor dizendo, um lapso de tempo, que eu não consigo
traduzi-lo. Não sei o que é, nem o que pode significar para mim. Sei que devo
vivê-lo, atravessar essa tempestade e encontrar um porto seguro para ancorar, e
aprender a ver sempre a imagem de minha filha sem sofrimento, sem culpas, mas
mantendo sempre presente o amor que imensamente eu sentia por ela. E até mesmo
acostumar-me a dizer, “o amor que eu sinto por ela”, pois se seu corpo já não
se faz presente, seu nome, sua lembrança, sua meiguice, a Carol que tanto
amamos, permanecerá sempre viva em nossos corações, em nossas mentes.
Tudo que passou no
tempo, morreu. Ficou em nossas lembranças. Um artista, que imortalizou sua obra;
um líder revolucionário que deixou um legado ao seu povo; um pai, ou uma mãe, que nos deixou
ensinamentos e lições. Mas também uma árvore que se foi, um animal de estimação
que perdemos, uma oportunidade que passou, nossa infância, tantos amigos,
momentos que não voltam. Tudo representa agora, afinal, momentos passados, que
se foram. Morreram. Mas mesmo assim nos lembramos com alegria, apesar de não
compreendermos jamais como lidar com a morte, eterna certeza a nos acompanhar.
Como lembrar de minha
filha reforçando as boas lembranças de sua presença por dez maravilhosos anos
em que ela esteve conosco? Em transformar meu riso em alegria e recuperar essa
sensação que não sinto mais? Sorrir não necessariamente é estar alegre, não me
basta sorrir, preciso sentir a alegria de poder me lembrar da Carolina, o que
significa trazer o passado como lembrança a fim de motivar o presente, e assim,
encontrar alguma razão para imaginar que ainda é possível sonhar, em ver o
futuro e um horizonte, em transformar as lembranças de minha filha num
incentivo para viver com alegria ao lado de pessoas que eu amo e que a Carol
gostaria de vê-las sempre felizes.
Olho no retrovisor
para buscar, no passado, exemplos que me ajudem a seguir no presente por
caminhos que me façam novamente sorrir com alegria, tendo sempre comigo a
lembrança da minha eternamente pequena Carol.
[1] CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Depois que você partiu. Goiânia: Editora
Kelps, 2014. 2ª edição, ampliada. Pp. 73-78.
(Nota: A primeira edição do livro
foi publicada em dezembro de 2008. Um ano depois da morte de Ana Carol, em 13 de dezembro de 2007. Essa
crônica faz parte da primeira edição)
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