sexta-feira, 17 de novembro de 2017

OLHANDO O FUTURO PELO RETROVISOR

(Crônica publicada no livro: DEPOIS QUE VOCE PARTIU)[1]

A morte de minha filha mexeu demais comigo e ainda me deixa confuso. Sinto-me diferente, embora mantendo as marcas que me caracterizaram ao longo de minha vida, meu jeito de ser. Mas desde o dia 13 de dezembro carrego no peito um coração abalado, fragilizado e bem mias sensível. Na mente as lembranças não são mais as mesmas, os projetos já não tem tanta importância quanto antes, a vida segue perdendo um pouco do sentido que tinha até o dia em que a Carol partiu.
Dentre todas essas sensações, e que tenho procurado relatar ao longo das crônicas que escrevi, uma que mais chama a minha atenção foi o retorno ao passado. Desde a morte da Carol tenho dificuldades para ouvir as músicas que invariavelmente as colocava para tocar. Selecionadas ao meu gosto, milhares de músicas fazem parte de um repertório que me acompanha e que me alivia do desgastante estresse do dia-a-dia dentro de meu carro. Mas não consigo mais ouvir as mesmas músicas de antes, aquelas que sempre carrego, sem sentir uma forte dose de emoção. Invariavelmente eu choro, sempre que as ouço. Por isso não tenho insistido e evito, por enquanto, ouvir esses cds. Pelo menos até o momento em que escrevo esta crônica, ainda não consegui romper este bloqueio.
Há uma explicação para isso. Minha filha era uma grande companheira de “viagem”. Para qualquer lugar que eu fosse, em qualquer momento, ela imediatamente corria para se arrumar, e insistia para sair comigo. Sentava-se quietinha no banco traseiro, sempre colocava o cinto de segurança que aprendeu a usar desde bem novinha, e ali ficava, às vezes impaciente com os meus impropérios no trânsito. Quando eu me excedia, ou notava que ela estava muito caladinha, por entre os bancos estendia meu braço e agarrava uma de suas pernas carinhosamente. Quase todas as vezes que ela saía comigo eu repetia esse gesto. E ali, em sua companhia eu ficava a ouvir minhas músicas preferidas. Ela só reclamava quando às vezes eu aumentava demais o volume. Por isso, essas músicas me fazem muito lembrar minha pequena Carol.
Estranhamente, o mesmo não acontece com aquelas músicas dos anos 70. Tenho uma vasta seleção de músicas daquela época, centenas delas gravadas em MP3, que retratam um período importante de minha vida, a minha adolescência. São essas as músicas que quase sempre tenho ouvido depois que a Carol partiu. O que me faz olhar mais o passado do que o futuro.
Não que elas não me emocionem. Também ao ouvir algumas delas, por várias vezes, chorei sozinho dentro de meu carro, pensando em minha filha e sempre estabelecendo relações entre o que no passado pensávamos do futuro. Dos sonhos, dos amores, das fantasias, da vontade de ter filhos. E o presente, um tanto vazio, causado por uma perda que nos bloqueia agora uma visão de futuro. Mas essas músicas me atraem, sinto vontade de ouvi-las, me apego agora muito mais ao passado do que às construções mentais que fazemos idealizando nossas vidas alguns anos à frente.
Isso me preocupa, claro. Tanto que já comentei algumas vezes com minha esposa e companheira, Celma, sobre o quanto eu acho estranho não sentir vontade em planejar o futuro. Minha preocupação não é propriamente comigo, mas com meu filho, que permanece vivo, saudável, e agora somente ele representa esse elo entre passado e futuro. A ele devemos dedicar todos os esforços que garantam que sua vida não será sofrida, para que ele possa viver de forma prazerosa e satisfeito em estar conosco. Se não apontamos para ele a importância de lutar por um futuro tranqüilo, alegre e proveitoso, ele pode perder-se no presente. Afinal, a falta de perspectiva de boa parte da juventude é, sem dúvida, responsável pelo aumento da criminalidade entre os adolescentes, o que tem feito aumentar o índice de mortes nessa faixa etária. Mas ao mesmo tempo precisamos demonstrar para ele que o mais importante é viver bem o presente.
Como lidar com essa dificuldade tem sido para mim um desafio. Ao perder uma filha na idade da Carol, 10 anos, não consigo deixar de racionar dentro de uma lógica que me diz que o presente vale mais do que tudo. Tanto mais quanto tenha sido sofrido nosso passado. Essa perda me indica que nossas vidas devem ser vividas intensamente, de forma positiva, livres das mesquinharias que marcam nosso cotidiano. Apesar de ter dedicado um bom tempo de minha vida à meus filhos, ter viajado, passeado muito com eles, depois da morte da Carolina ficou a sensação de que eu poderia ter me dedicado mais, aproveitado mais os momentos, brigado menos com ela. Como nos instiga sempre que a ouvimos a música de Silvio Brito cantada pelos Titãs, embora o acaso não tenha nos protegido como eles cantam, dessa enorme perda.
Tudo isso tem feito com que eu tenha mais presente as lembranças do passado do que uma imaginária construção do futuro. Sei que não posso viver dessas recordações, mas isso de certa maneira tem me aliviado nos momentos de solidão, principalmente quando sozinho em meu carro me lembro da companhia da minha “Bela”. Isso me instiga a “viajar” por entre meus absortos pensamentos e a indagar sobre como nos motivamos sempre construindo imagens idílicas do futuro. É inegável que a humanidade chegou ao patamar de desenvolvimento movido por esses sentimentos, pela utopia, por uma lógica que nos arrancava do presente e nos impunha a obrigação de trabalhar pelo futuro. Muito embora muito disso esteja ligado à ganância, a se produzir sem necessidade, motivando um consumo descontrolado, baseado na usura.
Mas, penso que isso levou ao limite de nossa frieza emotiva, relacional, comunitária. Passamos a viver um cotidiano perturbador, cuja obrigação sempre é de sermos competentes ao máximo a fim de podermos produzir o suficiente para garantir ganhos, lucros, tanto quanto possa ser suficiente para construir um futuro para nós. “Nós”, aqui entendamos bem, o “Eu” e os que fazem parte da família. Mesmo que o cotidiano perverso marcado pela obrigação de trabalhar ao extremo nos obrigue a nos afastarmos cada vez mais do que deveria ser um prazeroso convívio com nossos filhos e filhas, e parceiras, ou parceiros.
E assim seguimos construindo nosso presente. Pela lógica, nos afastamos dele a cada dia, mas não o vivemos como deveríamos. Carregamos sempre uma emotiva lembrança pelo passado e imaginamos sempre como será nosso futuro, ou como deverá ser. Entre eles o presente é uma mera passagem, fria, distante, forçada, pois sempre reclamamos de nossas atribulações, estamos sempre a rememorar o passado e a lamentar o presente, repetindo absurdamente que nada muda, que a rotina é estressante, que estamos cansados do que fazemos. Quase nunca, nos dias atuais, o presente é indicado como um momento prazeroso. Muito embora nos habituamos a responder sempre ao “como vai?” às pessoas que nos cumprimentam com um aparentemente otimista “vou bem, e você?”, tudo não passa de formalidades. Tão logo nos encontremos com outras pessoas e passemos a conversar sobre nossas vidas, principalmente no trabalho, e a analisarmos os acontecimentos à luz das imagens que a mídia nos transmite de informações, o presente torna-se sombrio, violento, injusto. Enxergamos tão somente as coisas ruins e assim vamos construindo um cotidiano em que o presente torna-se irrelevante e o que nele fazemos significa somente a construção do futuro. O resultado disso são momentos amargos, volúveis, insignificantes. Quando optamos por nos distrair, participar de algum momento festivo, e de encontro com os amigos consideramos isso como uma necessidade de relaxar, sair da rotina. Numa clara inversão do que deveria ser nossa lógica de viver.
Deveríamos construir em nosso cotidiano momentos aprazíveis, e não somente buscar o prazer em raros instantes que passam a significar um flash, uma fotografia que retrata uma sensação de alívio em fugir do presente para lugar nenhum. O sistema, claro, reforça-se em seu caráter mutante em nos oferecer os lugares, alguns dos quais vistos como santuários, quase sempre ligados à natureza, ou ao que resta daquilo que destruímos para construir o futuro.
Vejo-me, assim, numa encruzilhada e o dilema é tentar descobrir qual o caminho a seguir, na medida em que ao olhar em frente não vislumbro o horizonte. Passo, portanto, a analisar com muito mais rigor do que antes o terreno em que estou pisando, melhor dizendo, estudo melhor o presente, o que nos cerca, as nossas relações. Corro por outro lado o risco de permanecer estático em um presente mutante, apegado a uma perda inestimável, que para mim ainda é presente, embora eu devesse vê-la como passado.
Entre a ausência de uma perda que representou uma dilaceração em minha carne e a presença de pessoas que ainda me completam, para os quais eu deveria viver mais o presente encontra-se um vazio, melhor dizendo, um lapso de tempo, que eu não consigo traduzi-lo. Não sei o que é, nem o que pode significar para mim. Sei que devo vivê-lo, atravessar essa tempestade e encontrar um porto seguro para ancorar, e aprender a ver sempre a imagem de minha filha sem sofrimento, sem culpas, mas mantendo sempre presente o amor que imensamente eu sentia por ela. E até mesmo acostumar-me a dizer, “o amor que eu sinto por ela”, pois se seu corpo já não se faz presente, seu nome, sua lembrança, sua meiguice, a Carol que tanto amamos, permanecerá sempre viva em nossos corações, em nossas mentes.
Tudo que passou no tempo, morreu. Ficou em nossas lembranças. Um artista, que imortalizou sua obra; um líder revolucionário que deixou um legado ao seu povo; um pai, ou uma mãe, que nos deixou ensinamentos e lições. Mas também uma árvore que se foi, um animal de estimação que perdemos, uma oportunidade que passou, nossa infância, tantos amigos, momentos que não voltam. Tudo representa agora, afinal, momentos passados, que se foram. Morreram. Mas mesmo assim nos lembramos com alegria, apesar de não compreendermos jamais como lidar com a morte, eterna certeza a nos acompanhar.
Como lembrar de minha filha reforçando as boas lembranças de sua presença por dez maravilhosos anos em que ela esteve conosco? Em transformar meu riso em alegria e recuperar essa sensação que não sinto mais? Sorrir não necessariamente é estar alegre, não me basta sorrir, preciso sentir a alegria de poder me lembrar da Carolina, o que significa trazer o passado como lembrança a fim de motivar o presente, e assim, encontrar alguma razão para imaginar que ainda é possível sonhar, em ver o futuro e um horizonte, em transformar as lembranças de minha filha num incentivo para viver com alegria ao lado de pessoas que eu amo e que a Carol gostaria de vê-las sempre felizes.
Olho no retrovisor para buscar, no passado, exemplos que me ajudem a seguir no presente por caminhos que me façam novamente sorrir com alegria, tendo sempre comigo a lembrança da minha eternamente pequena Carol.



[1] CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Depois que você partiu. Goiânia: Editora Kelps, 2014. 2ª edição, ampliada. Pp. 73-78.
(Nota: A primeira edição do livro foi publicada em dezembro de 2008. Um ano depois da morte de Ana Carol, em 13 de dezembro de 2007. Essa crônica faz parte da primeira edição)

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