segunda-feira, 25 de setembro de 2017

NO LIMITE!

Vivemos uma era de intolerância? A humanidade está fadada à se autodestruir a partir de um estilo de vida competitivo e estressante? A violência é inerente à “natureza” humana?
Temos ultimamente verificado uma profusão de artigos nos meios de comunicação enfatizando a forma como a violência tem se tornado banalizada. São crimes praticados por motivos fúteis e reações intempestivas a pequenos e irrelevantes acidentes que geram um comportamento estúpido e irracional, fazendo com que até mesmo pessoas que jamais se conheceram tornem-se em frações de segundos inimigos mortais.
Como avaliar esses comportamentos? Eu, particularmente, não sou psicólogo, portanto vou analisar essa situação, nessas poucas linhas, por um viés geopolítico. Mas como fazer isso? Será que todo e qualquer conflito, mesmo no mero cotidiano de nossas vidas, pode ser estudado a partir da geografia?
Sim, não somente da Geografia Política, mas também pela História, Sociologia, Filosofia, Economia Política e, claro, Psicologia, porque esta se preocupa mais diretamente nos estudos desses e de todos os tipos de comportamentos humanos. Mas onde podemos buscar as origens para tais comportamentos? Vejam que a psicologia para tentar entender certas situações aflitivas em determinado indivíduo, busca conhecer o seu passado, e através dele chegar ao âmago de sua vida, seus traumas, frustrações, fracassos, ou seja, o conjunto de eventos que determinaram como a sua memória está constituída. Enfim, sua história de vida.
Partimos, portanto, do pressuposto que para conhecer o presente é insofismável se aprofundar no passado. Como em qualquer terapia, para conhecermos a origem das angústias que afligem certa pessoa, é fundamental sabermos o que tal indivíduo acumulou de experiências negativas que causaram certas anomalias em seu comportamento, a ponto de provocar em determinado momento uma ira incontrolável, fazendo-o reagir violentamente contra aquele que cruzar seu caminho em um instante de fúria. Ou propiciar outro caminho, da introspecção, depressão, que o fará agir com brutalidade não somente contra o outro, mas para consigo mesmo. E, às vezes, sequer alguma reação esse indivíduo terá, esgotando em si mesmo a vontade de viver, sendo consumido pela desesperança e tristeza profunda.
Essas são situações que crescem no cotidiano das grandes cidades, metrópoles aceleradas marcadas por sentimentos contraditórios, mas cuja lógica reside no fato de as pessoas precisarem sagrar-se vitoriosas em meio a uma competição desmedida, e na busca por um estilo de vida que os consagrem vencedores. Nesse jogo, seguindo o que determina os valores construídos pelo sistema em que vivemos a vitória não é o fim de tudo, pois deve ser permanente para manter e ampliar o que foi conquistado; e a derrota enseja tais frustrações que forçam alguns por caminhos que imaginam ser um atalho também para atingir esses objetivos. Tais atalhos, de um jeito ou de outro, leva a desfechos indesejáveis, na medida em que se rompem valores e quebra-se a estrutura moral na qual está fundada a sociedade.
Podemos partir de uma frase muito repetida em uma propaganda da maior rede de supermercados do país, na voz de um dos nossos melhores compositores: “o que faz você feliz?”**. A resposta para isso, segundo o marketing apresentado, é consumir. Seguindo adiante no objetivo de atrair clientes, apresenta-se ainda um complemento: consumir, bem!
Significa, então, que a condição para estabelecermos relações fraternas, ponderadas, tranqüilas, é nos situarmos dentro de um padrão de vida que possibilite adquirir produtos que nos são oferecidos para consumo e massificados pela mídia de forma variada. Ao sairmos de casa, ligamos o som do carro e os programas têm o oferecimento de determinada marca; nos veículos, ônibus principalmente, uma bela donzela ou um jovem mancebo nos apresentam um produto apontado como responsável por suas formas; por todos os lados, outdoors de várias maneiras e estilos nos “vendem” todo o tipo de mercadorias. Na TV, internet, páginas de jornais e revistas, por todos os lados somos massacrados pela propaganda, de tal forma que no cotidiano de nossas relações, nos tornamos agentes propagadores desses produtos. Não são poucas as vezes que debatemos suas qualidades, e indicamos aquela marca que foi por nós aprovada. Remédios, então, nem se fala. Alguns imaginam conhecê-los melhor do que os médicos e repassam suas possíveis qualidades, num marketing indireto condicionado pela lógica consumista.
Em um ambiente carregado por esses valores, onde consumir “faz você ser feliz”, podemos encontrar a chave para as desilusões, frustrações e disputas violentas. Primeiro porque nos impõe um sentido de viver determinado pela necessidade de estarmos permanentemente em busca de melhores ganhos, já que nosso poder de consumo é incontrolado e infinito. Da mesma maneira como ao sistema capitalista não importa somente ganhar, é preciso ganhar sempre, e cada vez mais.
Imaginemos, nós que possuímos empregos regulares, a angústia e desespero de uma família cujo pai, ou mãe, aquele que dá sustentação financeira à família, encontra-se desempregado. Ou cujo salário, ao final do mês, é insuficiente para atender à necessidade, e à demanda de um grupo condicionado pelo marketing que perversamente invade sua casa pelos meios de comunicação. Como reagirá essa família ao assistir à propaganda citada, que não é a única, mas apenas um exemplo? O que está desempregado saberá na carne o que quero dizer. Mas mesmo com um salário, será ele suficiente para manter satisfeitos adolescentes cuja cultura cerca-o de desejos por produtos tecnologicamente sofisticados, ou roupas de grifes famosas? E, neste parágrafo, falo de exemplos e indago sobre questões que atingem a imensa maioria da população. O que facilita para nós a compreensão da pressão sob a qual está fundada a nossa sociedade.
Compreendendo essas contradições, e o estilo de vida que o sistema nos impõe sempre a buscarmos, podemos levar nossa análise para o âmbito da política, e nesse particular navegar melhor pelo universo de uma sociedade cujo elemento central é a competição. E, como numa disputa esportiva, a busca é permanente pelo recorde, também aqui jamais nos satisfazemos com o que ganhamos. Isso, independente do padrão de vida que analisarmos.
Simplesmente porque nossa cultura é formada a partir dos valores construídos pelo sistema capitalista, onde não há limite para o lucro, e a ganância é o motor principal a nos guiar em direção ao objetivo de sempre acumular mais. E isso independe do fato de envelhecermos, e pela lógica natural da vida em algum momento morrer. A herança, mecanismo inventado para perpetuar a busca obsessiva pela riqueza e garantia da propriedade, se encarrega de assegurar que os mortos determinem quem em vida continuará sua sina.
Isso é o que faz das cidades mais particularmente, palco principal das neuroses e conflitos, ambientes cada vez mais carregados de estupidez, violência e atitudes bizarras. Porque cabe a cada um, seguindo a forma individualista determinada pela cultura capitalista, brigar, com todas as suas forças, para superar o outro, numa disputa que determina quem é vitorioso e será escalado para atingir os melhores degraus da pirâmide social. Como no traçado geométrico dessa figura, também na sociedade vai diminuindo o percentual daqueles que atingem o pico, e os que lá chegarão quase sempre já se encontram na linha de ascendência de alguém “bem sucedido”, pouco ocorrendo a incidência de algum “cristão novo”.
Ou lutamos para alterar essa lógica, atacando o modelo que transmite esses valores culturais, ou será insuficiente exigirmos garantias de segurança por parte do Estado. Porque também esses mecanismos estão corrompidos, seguindo a lógica descrita anteriormente. Nossas prisões não serão suficientes para conter uma demanda que cresce, na medida em que se atiça a onda consumista.
Portanto, antes de nos escandalizarmos com o grau de violência que assistimos, e que em alguns casos somos vítimas, devemos refletir sobre as causas disso. Não é, em absoluto, da essência humana. É, indubitavelmente, da CONDIÇÃO HUMANA.
Em outros post, quero melhor analisar como individualismo e egoísmo vão sendo disseminados por alguns mecanismos de controle ideológico, apresentados como válvulas de escapes dessas neurastenias, mas que são por um lado consequência dessa situação, por outro, objetivo calculado desse modelo de vida. Mais uma contradição a nos envolver num pântano movediço. Para não parecer pessimista devo dizer que tenho plena convicção de que é possível sair dele. Nosso destino não está traçado.
Para não perder o costume, gostaria de indicar o filme CRASH, NO LIMITE![1] As histórias que se entrelaçam e conduzem à surpresas e tragédias, mostram bem como funciona o cotidiano de uma cidade cujas pessoas encontram-se á beira de um ataque de nervos. Preconceito, intolerância, medo e insegurança são os elementos motivadores das tragédias ali relatadas e que se parecem com muitas das que acontecem na vida real. O filme foi o grande ganhador do Oscar em 2006.




(*) Este artigo foi publicado originalmente neste Blog em 16 de agosto de 2010. Republico aqui porque as condições de crise e intolerância se acentuaram de lá para cá. Infelizmente. O que nos impõe a necessidade de corrigirmos um rumo que nos leva em direção a um abismo.

(**) Propaganda feita na voz de Arnaldo Antunes, para o grupo Pão de Açúcar.


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