Vivemos uma era de intolerância? A humanidade está fadada à se
autodestruir a partir de um estilo de vida competitivo e estressante? A
violência é inerente à “natureza” humana?
Temos ultimamente verificado uma profusão de
artigos nos meios de comunicação enfatizando a forma como a violência tem se
tornado banalizada. São crimes praticados por motivos fúteis e reações
intempestivas a pequenos e irrelevantes acidentes que geram um comportamento
estúpido e irracional, fazendo com que até mesmo pessoas que jamais se
conheceram tornem-se em frações de segundos inimigos mortais.
Como avaliar esses comportamentos? Eu,
particularmente, não sou psicólogo, portanto vou analisar essa situação, nessas
poucas linhas, por um viés geopolítico. Mas como fazer isso? Será que todo e
qualquer conflito, mesmo no mero cotidiano de nossas vidas, pode ser estudado a
partir da geografia?
Sim, não somente da Geografia Política, mas também
pela História, Sociologia, Filosofia, Economia Política e, claro, Psicologia,
porque esta se preocupa mais diretamente nos estudos desses e de todos os tipos
de comportamentos humanos. Mas onde podemos buscar as origens para tais
comportamentos? Vejam que a psicologia para tentar entender certas situações
aflitivas em determinado indivíduo, busca conhecer o seu passado, e através
dele chegar ao âmago de sua vida, seus traumas, frustrações, fracassos, ou seja,
o conjunto de eventos que determinaram como a sua memória está constituída.
Enfim, sua história de vida.
Partimos, portanto, do pressuposto que para
conhecer o presente é insofismável se aprofundar no passado. Como em qualquer
terapia, para conhecermos a origem das angústias que afligem certa pessoa, é
fundamental sabermos o que tal indivíduo acumulou de experiências negativas que
causaram certas anomalias em seu comportamento, a ponto de provocar em
determinado momento uma ira incontrolável, fazendo-o reagir violentamente
contra aquele que cruzar seu caminho em um instante de fúria. Ou propiciar
outro caminho, da introspecção, depressão, que o fará agir com brutalidade não
somente contra o outro, mas para consigo mesmo. E, às vezes, sequer alguma
reação esse indivíduo terá, esgotando em si mesmo a vontade de viver, sendo
consumido pela desesperança e tristeza profunda.
Essas são situações que crescem no cotidiano das
grandes cidades, metrópoles aceleradas marcadas por sentimentos contraditórios,
mas cuja lógica reside no fato de as pessoas precisarem sagrar-se vitoriosas em
meio a uma competição desmedida, e na busca por um estilo de vida que os
consagrem vencedores. Nesse jogo, seguindo o que determina os valores
construídos pelo sistema em que vivemos a vitória não é o fim de tudo, pois
deve ser permanente para manter e ampliar o que foi conquistado; e a derrota
enseja tais frustrações que forçam alguns por caminhos que imaginam ser um
atalho também para atingir esses objetivos. Tais atalhos, de um jeito ou de
outro, leva a desfechos indesejáveis, na medida em que se rompem valores e
quebra-se a estrutura moral na qual está fundada a sociedade.
Podemos partir de uma frase muito repetida em uma
propaganda da maior rede de supermercados do país, na voz de um dos nossos
melhores compositores: “o que faz você feliz?”**. A resposta para isso,
segundo o marketing apresentado, é consumir. Seguindo adiante no objetivo de
atrair clientes, apresenta-se ainda um complemento: consumir, bem!
Significa, então, que a condição para
estabelecermos relações fraternas, ponderadas, tranqüilas, é nos situarmos
dentro de um padrão de vida que possibilite adquirir produtos que nos são
oferecidos para consumo e massificados pela mídia de forma variada. Ao sairmos
de casa, ligamos o som do carro e os programas têm o oferecimento de
determinada marca; nos veículos, ônibus principalmente, uma bela donzela ou um
jovem mancebo nos apresentam um produto apontado como responsável por suas
formas; por todos os lados, outdoors de várias maneiras e estilos nos “vendem”
todo o tipo de mercadorias. Na TV, internet, páginas de jornais e revistas, por
todos os lados somos massacrados pela propaganda, de tal forma que no cotidiano
de nossas relações, nos tornamos agentes propagadores desses produtos. Não são
poucas as vezes que debatemos suas qualidades, e indicamos aquela marca que foi
por nós aprovada. Remédios, então, nem se fala. Alguns imaginam conhecê-los
melhor do que os médicos e repassam suas possíveis qualidades, num marketing
indireto condicionado pela lógica consumista.
Em um ambiente carregado por esses valores, onde
consumir “faz você ser feliz”, podemos encontrar a chave para as desilusões,
frustrações e disputas violentas. Primeiro porque nos impõe um sentido de viver
determinado pela necessidade de estarmos permanentemente em busca de melhores
ganhos, já que nosso poder de consumo é incontrolado e infinito. Da mesma
maneira como ao sistema capitalista não importa somente ganhar, é preciso
ganhar sempre, e cada vez mais.
Imaginemos, nós que possuímos empregos regulares, a
angústia e desespero de uma família cujo pai, ou mãe, aquele que dá sustentação
financeira à família, encontra-se desempregado. Ou cujo salário, ao final do
mês, é insuficiente para atender à necessidade, e à demanda de um grupo
condicionado pelo marketing que perversamente invade sua casa pelos meios de
comunicação. Como reagirá essa família ao assistir à propaganda citada, que não
é a única, mas apenas um exemplo? O que está desempregado saberá na carne o que
quero dizer. Mas mesmo com um salário, será ele suficiente para manter
satisfeitos adolescentes cuja cultura cerca-o de desejos por produtos
tecnologicamente sofisticados, ou roupas de grifes famosas? E, neste parágrafo,
falo de exemplos e indago sobre questões que atingem a imensa maioria da
população. O que facilita para nós a compreensão da pressão sob a qual está
fundada a nossa sociedade.
Compreendendo essas contradições, e o estilo de
vida que o sistema nos impõe sempre a buscarmos, podemos levar nossa análise
para o âmbito da política, e nesse particular navegar melhor pelo universo de
uma sociedade cujo elemento central é a competição. E, como numa disputa
esportiva, a busca é permanente pelo recorde, também aqui jamais nos
satisfazemos com o que ganhamos. Isso, independente do padrão de vida que
analisarmos.
Simplesmente porque nossa cultura é formada a
partir dos valores construídos pelo sistema capitalista, onde não há limite
para o lucro, e a ganância é o motor principal a nos guiar em direção ao
objetivo de sempre acumular mais. E isso independe do fato de envelhecermos, e
pela lógica natural da vida em algum momento morrer. A herança, mecanismo
inventado para perpetuar a busca obsessiva pela riqueza e garantia da
propriedade, se encarrega de assegurar que os mortos determinem quem em vida
continuará sua sina.
Isso é o que faz das cidades mais particularmente,
palco principal das neuroses e conflitos, ambientes cada vez mais carregados de
estupidez, violência e atitudes bizarras. Porque cabe a cada um, seguindo a
forma individualista determinada pela cultura capitalista, brigar, com todas as
suas forças, para superar o outro, numa disputa que determina quem é vitorioso
e será escalado para atingir os melhores degraus da pirâmide social. Como no
traçado geométrico dessa figura, também na sociedade vai diminuindo o
percentual daqueles que atingem o pico, e os que lá chegarão quase sempre já se
encontram na linha de ascendência de alguém “bem sucedido”, pouco ocorrendo a
incidência de algum “cristão novo”.
Ou lutamos para alterar essa lógica, atacando o
modelo que transmite esses valores culturais, ou será insuficiente exigirmos
garantias de segurança por parte do Estado. Porque também esses mecanismos
estão corrompidos, seguindo a lógica descrita anteriormente. Nossas prisões não
serão suficientes para conter uma demanda que cresce, na medida em que se atiça
a onda consumista.
Portanto, antes de nos escandalizarmos com o grau
de violência que assistimos, e que em alguns casos somos vítimas, devemos
refletir sobre as causas disso. Não é, em absoluto, da essência humana. É,
indubitavelmente, da CONDIÇÃO HUMANA.
Em outros post, quero melhor analisar como
individualismo e egoísmo vão sendo disseminados por alguns mecanismos de
controle ideológico, apresentados como válvulas de escapes dessas neurastenias,
mas que são por um lado consequência dessa situação, por outro, objetivo
calculado desse modelo de vida. Mais uma contradição a nos envolver num pântano
movediço. Para não parecer pessimista devo dizer que tenho plena convicção de
que é possível sair dele. Nosso destino não está traçado.
Para não perder o costume, gostaria de indicar o
filme CRASH, NO LIMITE![1]
As histórias que se entrelaçam e conduzem à surpresas e tragédias, mostram bem
como funciona o cotidiano de uma cidade cujas pessoas encontram-se á beira de
um ataque de nervos. Preconceito, intolerância, medo e insegurança são os
elementos motivadores das tragédias ali relatadas e que se parecem com muitas
das que acontecem na vida real. O filme foi o grande ganhador do Oscar em 2006.
(*) Este artigo foi publicado originalmente neste Blog em 16 de agosto de 2010. Republico aqui porque as condições de crise e intolerância se acentuaram de lá para cá. Infelizmente. O que nos impõe a necessidade de corrigirmos um rumo que nos leva em direção a um abismo.
(**) Propaganda feita na voz de Arnaldo Antunes, para o grupo Pão de Açúcar.
(**) Propaganda feita na voz de Arnaldo Antunes, para o grupo Pão de Açúcar.
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