No ano de 1904, mais
especificamente no dia 25 de janeiro, um texto, apresentado na Sociedade
Geográfica Real, em Londres, transformou o britânico Halford Mackinder em uma
figura de destaque na geopolítica moderna. Embora com livros publicados, sendo
um deles também de grande importância, “Democratics
ideals and Reality: A Study in Politics of Reconstruction” (Washington
D.C.: National Defense University, 1919, 1942), foi o texto lido naquela data
que o tornaria uma das proeminências na geopolítica. Entre as duas publicações
uma grande guerra que alterou a ordem política mundial.
O Artigo em questão foi intitulado
como “O Pivô Geográfico da História” (The
Geographical Pivot of History), e por ele Mackinder identifica nas estepes
asiáticas não somente a origem daqueles povos que foram responsáveis pela
constituição da Europa, em toda a sua dimensão territorial e na constituição da
maioria dos países que a compõe. Ele busca, pela geografia, identificar historicamente
as razões para as dificuldades em se impor àquela região formas de controles
que lhes fossem externas. E aponta ser aquela uma região propícia para a
consolidação de um poder continental, condição pela qual garantiria a quem a
controlasse a possibilidade de dominar o mundo.
Kaplan[1]
(2013, p. 64), diz que
Sua tese é que a Ásia Central, na
medida em que é uma das partes constituintes do heartland eurasiano, é o pivô
em torno do qual gira o destino dos grandes impérios mundiais, pois a própria disposição
natural das artérias da terra, entre cordilheiras e vales, estimula a ascensão
de impérios, declarados ou não, em vez de estados.
Para Mackinder, o poderio Russo era
inabalável pelas condições geográficas, que lhes possibilitava não somente a proteção
dificultando invasões externas, mas porque lhes garantiam com a organização de
um poderoso exército, reforçar o poder terrestre, considerado mais apto a
manutenção do controle daquelas vastas regiões, bem como expandi-la, em direção
à Europa. Esse poder, poderia se reforçar perigosamente, caso se expandisse em
direção à África, o que ele identifica como a “Ilha Mundial” (Eurásia e
África). Além disso, ele ressaltava a importância do poder terrestre, condição
que tornava Rússia mais impenetrável, principalmente depois que vastas
extensões de ferrovias ligaram os milhares de quilômetros do seu território.
O Pivô Geográfico, para Mackinder
era a Eurásia, identificada por ele como o “Heartland”, o “Coração Continental”
ou o “coração do mundo”. E expressou em três pequenas frases o que ele
considerava como estratégico, do ponto de vista da disputa pelo controle do
poder mundial: “Quem controla o leste europeu, comanda o Heartland. Quem
controla o Heartland comanda a Ilha Mundial. Quem controla a Ilha Mundial,
comanda o mundo”.
“Fora da
área pivô, em um amplo crescente interno, estão Alemanha, Áustria, Turquia,
Índia e China, e em um crescente externo, Inglaterra, África do Sul, Austrália,
Estados Unidos, Canadá e Japão. Na condição atual do equilíbrio de poder, o
Estado Pivô, a Rússia, não é equivalente a quaisquer outros estados
periféricos, e não há espaço para um equilíbrio com a França. (...) A
definição do equilíbrio de poder, em favor do Estado Pivô, que resulta em sua
expansão sobre as terras marginais da Eurásia, permitiria a utilização dos
vastos recursos para a construção da frota continental, e o império do mundo,
então, estaria à vista”.[2]
Contudo, um holandês que se radicou
nos Estados Unidos, o geógrafo e geoestrategista Nicholas Spykman, que se
tornará a principal referência geopolítica para os Estados Unidos no período da
Segunda Guerra Mundial, partindo desse estudo de Mackinder expõe outra
compreensão sobre o domínio do poder mundial.
Sem desconsiderar a principal tese
de Mackinder, do Pivô Geográfico, e do Heartland, entendendo essa região como
um forte poder estratégico, Spykman considera que a importância maior está no
“crescente interior”, uma faixa de terras que se estende da Eurásia à América e
inclui o Oriente Médio, que ele vai denominar de “Rimland”. Mais objetivo, e
preocupado em definir uma política de contenção que impedisse a ampliação do
poder do “heartland”, Spykman define como sendo a então União Soviética essa
potência. Por sua teoria dominaria o “coração do mundo” não quem o controla
diretamente, mas quem fosse capaz de cercá-lo.
Com base nas teorias de Spykman os
Estados Unidos definirão toda a sua estratégia de atuação, tanto no período
anterior à grande guerra, como, principalmente, após esse conflito, quando se
estabelece a Guerra Fria. A “Estratégia de Contenção”, principal arcabouço
teórico-geopolítico de Spykman, permeou todas as relações internacionais da
política externa estadunidense. Desde o “Cordão Sanitário” interposto entre as
duas grandes guerras, pelo qual se investiu no apoio a governos
anti-soviéticos, apoiados pelos EUA, até a Guerra Fria, com a criação da OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Essa estratégia encontrará sua
formulação adequada com uma doutrina de segurança nacional, pela qual os EUA
imporá sua política intervencionista que vigora até os dias atuais. A
identificação do inimigo externo passa a gerar uma reação imediata,
antecipando-se a uma possível ação que lhe pudesse ser ameaçadora. Por toda a guerra
fria essa política foi adotada, e foi também fundamental na atuação dos órgãos
de espionagem, no sentido de desestabilizar os países que compunham a União
Soviética, ou que lhes fossem aliados, durante a década de 1980. A Polônia e o
Afeganistão, foram os principais alvos dessa estratégia. Com o apoio ao
Sindicato Solidariedade na Polônia, reforçado em seguida com a ascensão do papa
polonês Carol Wojtyla, ou João Paulo II, as ações surtiram efeito e eliminou um
aliado estratégico do regime soviético na Europa. No Afeganistão, o apoio ao
Talebã, na guerra para expulsar os soldados soviéticos impôs uma forte derrota
e fragilizou uma parte importante da fronteira soviética em um momento já de
desestabilização completa da União Soviética. As ideias de Spykman consolidavam
uma estratégia que se impôs como vitoriosa, ampliou o poder da OTAN e abriu
caminho para as políticas neoliberais e a globalização.
“Contenção” é o nome dado pelo
poder marítimo periférico para o que o poder do Heartland chama de “cerco” (encirclement). A defesa da Europa
Ocidental, de Israel, dos Estados árabes moderados, do Irã do Xá e as guerras
do Afeganistão e do Vietnã giraram todas em torno da ideia de impedir que um
império comunista estendesse seu controle do Heartland ao Rimland.[3]
Após o fim da guerra fria, com a
decadência do poder soviético, os EUA e aliados reforçam o controle do poder
nessa região, com a ampliação da área de influência da OTAN, incorporando
antigos países que compunham a União Soviética à essa organização e mantendo a Rússia numa situação humilhante
de dominação, mediante o apoio a governos fracos e instáveis. O foco principal
passava a ser o domínio de territórios estratégicos, com potenciais reservas de
petróleo, óleo e gás.
“Com essa perspectiva, o objetivo
estratégico dos Estados Unidos consistiu em expandir a influência e o domínio sobre
a Ásia Central, região com mais de 1,6 milhão de quilômetros quadrados, que
compreende Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Usbequistão,
países com enormes recursos naturais, e que é rodeado por China, Rússia, Ásia do Sul e Oriente Médio.[4]
O objetivo, segundo o experiente e
veterano professor Moniz Bandeira, doutor em Ciência Política e professor
aposentado da UnB, atualmente residindo na Alemanha, era integrar os países do
Cáucaso/Ásia Central, seja mediante o envolvimento militar ou através de ações
de inteligência que possibilitasse a instalação de governos aliados, “que
permitissem a economia de livre mercado, liberação do comércio e investimentos ocidentais,
de forma que pudessem controlar as fontes de energias e as rotas de transporte
do gás e do petróleo”.[5]
A década de 1990, com seus
resultados negativos para o mundo socialista, pelo revés gerado pelo declínio e
esfacelamento da União Soviética, representou, por outro lado, uma forte
agressividade da política externa estadunidense, com influência destacada dos
chamados “falcões”, que procuravam impor pela força o domínio ocidental e a
expansão dos limites de atuação da OTAN. Reforçavam o controle do Rimland e avançavam em direção às
franjas do heartland, trazendo para
sua influência países que antigamente compunham a União Soviética.
Esses países outrora membros da
República Soviética, partes do heartland
euroasiático, tornaram-se alvos da política agressiva e rapace dos EUA.
Eram as repúblicas mais pobres da
extinta União Soviética, mas possuíam vastas reservas de petróleo, iguais ou
maiores do que as da Arábia Saudita, e as mais ricas reservas de gás natural do
mundo, comprovadamente mais de 236 trilhões de metros cúbicos, praticamente
fechadas.[6]
Essas ações prosseguiram, célere e
agressivamente, visando bloquear qualquer tipo de influência da China, Rússia e
Irã, avançando em seus objetivos estratégicos no Sul do Cáucaso e na Ásia
Central. Uma série de projetos de gasodutos foram implementados e as rotas
seguiam dessas regiões passando por esses territórios, países que se
encontravam em tensões como consequência da transição em curso, e que tiveram
esse processo acelerado por conta das ações de espionagem e da sedução de novos
governantes que se erguiam distanciando-se da Rússia, mediante altos
investimentos e atividades de grandes corporações petrolíferas. Moniz Bandeira
(2013, pp. 68-69) cita alguns deles: O Consórcio Shah Deniz Production Sharing
Agreement (PSA); o gasoduto Shah Deniz FFD: o South Caucasus Pipeline (SCP); o
projeto Gasoduto Nabucco; e o Gazprom-Eni South Stream, além da atuação da
British Petroleum e da Chevron/Texaco. As rotas tinham o Mar Cáspio como ponto
estratético, de onde praticamente a maioria saia em direção à Turquia e daí
para a Europa. Mas também partindo de Baku e do Azerbaijão.
Por trás dessas mexidas
estratégicas, cujos objetivos eram as reservas energéticas de gás e petróleo,
mas também agir com cada vez mais agressividade, seguindo ainda a estratégia de
contenção, ampliando o domínio do Rimland, e avançando em direção ao Heartland,
de forma a sufocar cada vez mais a Rússia, o centro do coração do mundo. Por
todo o mundo, no entanto, a propaganda midiática centrava-se na necessidade de
garantir a essa parte do mundo, o acesso à democracia e liberdade, com a
ascensão de novos governos que pudessem defender a aproximação da União
Européia e da OTAN. A defesa da Segurança Nacional passou a se constituir no
pretexto mais forte, internamente, pelo qual tornava-se necessário combater com
veemência os governos hostis aos valores ocidentais e estadunidenses. A “guerra
ao terror”, motivada pela agressão sofrida pela ousadia de jihadistas da Al
Qaeda, com o ataque ao World Trade Center, tornou essas ações fáceis de serem
digeridas pela opinião pública. E os EUA saíram a caça dos terroristas,
identificando nesses os inimigos externos e internos, menosprezando, sempre, a
ordem política internacional.
Enquanto atacava o Iraque e Afeganistão,
com armamentos pesados e grande contingente militar, os EUA, por meio de
dezenas de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e da presença explícita de
assessores militares, iniciou um processo de desestabilização de alguns países
extremamente estratégicos para seus objetivos de controlar a produção e
distribuição de gás e petróleo da região, e manter o isolamento da Rússia. As
chamadas “Revoluções Coloridas”, se apresentavam pela mídia como insatisfações
populares contras governos autoritários, escondiam a atuação desses atores
externos plantados naqueles países com o intuito de derrubar esses governos. A
Revolução Rosa na Geórgia, em 2003; a Revolução Laranja, na Ucrânia em 2004; a
Revolução dos Cedros, no Líbano, em 2005; e a Revolução das Tulipas no
Quirguistão, em 2005.
Os recursos gastos para promoverem
essas crises políticas e a queda desses governos, foram infinitamente menores
do que o montante investido no Iraque. Por essa razão, a partir de então, a
estratégia a ser adotada será de reforçar esse mecanismo, ampliando o papel
dessas organizações e de mais investimentos em espionagem, seja por meio da
presença de um número cada vez maior de agentes, ou do controle da mídia e por
meio das novas tecnologias que seduziam a juventude e que seria por esses meios
facilmente manipulada.
Não é segredo, portanto, que o
Pentágono, através da United States Army Civil and Faires e do Psychological
Operations Command (USACA-POC), o Departamento de Estado e várias organizações
não-governamentais, entre as quais a Freedom House, (...) e a National
Endowment for Democracy, investiram milhões de dólares para incentivar as
“revoluções coloridas” na região da extinta União Soviética e cercar a Rússia.
A Ucrânia configurou uma questão estratégica, não por causa de Moscou, mas por
causa dos Estados Unidos, que, conforme o jornalista Jonathan Steele, se
recusavam a abandonar a política da Guerra Fria de cercar a Rússia e buscar
para o seu lado todas as antigas repúblicas soviéticas. Situada entre a Rússia
e os novos membros da OTAN – Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia –, a
Ucrânia adquiria realmente enorme significação estratégica para os Estados
Unidos. (MONIZ BANDEIRA, 2013, pp. 97-98).
A
UCRÂNIA FORA DE CONTROLE
Por esse tempo, contudo, nesse
começo de século XXI, a Rússia aos poucos foi retomando seu papel estratégico
nessa região e o protagonismo político em âmbito internacional, através de uma
política agressiva de uma nova liderança nascida dos escombros da antiga
polícia secreta soviética, a temida KGB (Komitet gosudarstvennoi bezopasnosti,
Comité de Segurança do Estado):
Vladimir Putin.
Demonstrando segurança e capacidade
de lidar com situações adversas, Putin passou a se constituir em um perigoso
estrategista, cercando os objetivos europeus e dos EUA nos avanços sobre as
antigas repúblicas soviéticas, e agindo com firmeza para conter as lutas
separatistas em países estratégicos, fomentadas e financiadas pelas potências
ocidentais, destacadamente os EUA.
Como um Czar moderno, Putin passou
a governar com punhos de ferro, reprimindo implacavelmente esses movimentos,
passando a considerá-los também “terroristas”, além de realizar uma limpeza
interna, perseguindo opositores, muitos dos quais novos ricos que amealharam
suas riquezas em golpes de corrupção no processo de desestatização com fortes
vínculos com alguns países europeus, para onde fugiram alguns daqueles que não
foram presos nesse processo.
Dessa forma, algumas mexidas no
tabuleiro de xadrez que representa essa região, fez com que Putin reagisse e
obtivesse algumas vitórias sobre as políticas estadunidenses. Primeiro em
relação às lutas separatistas na região, tanto na Geórgia, como na Ossétia do
Sul, e uma reviravolta na revolução laranja na Ucrânia, retomando a influência
nas eleições de 2010, com o retorno de Viktor Yanukovych à presidência,
resultando em uma verdadeira queda de braço entre a Rússia e a União Européia,
instigada pelos Estados Unidos, que disputavam a assinatura de acordos que
pudessem tirar a Ucrânia de enormes dificuldades financeiras. Por fora da
região Putin deu uma tacada de mestre na questão da Síria, quando negociou a
destruição das armas químicas e eliminou o principal pretexto para uma ação
militar da OTAN naquele país, onde se situa a única base militar russa na
região do mediterrâneo.
Mas a Ucrânia era a situação mais
emblemática, pelos motivos já citados acima, além da sua extensão territorial e
sua dimensão populacional. Assim, nos últimos anos iniciou-se uma luta intensa
pelo controle ucraniano, ora nos bastidores, ora nos embates políticos
internos, mas, principalmente, nas ações executadas por grupos
ultranacionalistas fascistas, organizações não-governamentais e agentes secretos
infiltrados por todos os lados e de todos os lados, seja dos EUA ou da Rússia.
Euromaindan - revoltas em Kiev |
Fragilizado politicamente como
consequência de um governo fraco e marcado pela corrupção, Yanukovych terminou
por ceder à pressão russa e recusou os acordos com a União Européia. Essa
atitude se constituiu no estopim que levou às ruas centenas de milhares de
manifestantes, em um movimento que, como todos os demais que marcaram as
“revoluções coloridas”, começou despretensiosamente, até atingir seu ápice com
a invasão de prédios públicos e o controle de setores importantes do governo,
forçando o presidente à fugir para a Rússia. Nitidamente ocorreu ali um golpe
de Estado, principalmente porque através de alguns acordos já se iniciava um
processo de transição que atendia boa parte daquilo que era reivindicado nas
ruas. Mas as ações agressivas de grupos radicais de direita prevaleceram
levando a destituição de Viktor Yanukovych. Desta feita, os interesses russos
foram contrariados, em uma região de importância estratégica fundamental já que
aproximava a União Européia e as políticas estadunidenses perigosamente das
fronteiras russas.
A primeira reação russa foi
instigar o plebiscito na região da Criméia, pelo histórico de vinculação com
aquele país de população majoritariamente de origem russa, mas, também,
por se constituir em uma importante ligação da Rússia com o Mar Negro, através
do Mar de Azov pelo Estreito de Kerch. Esse é um caminho estratégico que a Rússia tem
para atingir o Mar Mediterrâneo, pelos Estreitos de Bósforo e Dardanelos
(que dividem a Turquia da Europa). Outro elemento importante é o fato de ali situar-se uma base militar russa, incrustada na cidade de Sebastopol.
Por essas razões, e com o
agravamento da crise ucarania, a República Autônoma da Criméia, após o plebiscito
que contou com o apoio de 95,5% dos votantes, passou em março deste ano a fazer
parte da Federação Russa.
Contudo as populações do leste
ucraniano, também em sua maioria de origem russa, e inspirando-se na iniciativa
da Criméia, passaram a se mobilizar de maneira ostensiva, opondo-se ao governo
provisório da Ucrânia e reivindicando também plebiscito que as incorporem à
Rússia. Duas das maiores cidades ucranianas também se inserem nesses protestos:
Odessa e Donetsk. Historicamente são cidades que já compuseram o Império Russo,
assim como todo o território ucraniano. Após a revolução bolchevique, em 1917,
toda essa região compunha a extinta União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas.
Manifestantes pró-Rússia em Donestsk |
O que tem se seguido à incorporação
da Criméia pela Rússia e à aproximação do governo da Ucrânia aos governos
ocidentais e aos EUA é uma reação em cadeia por parte de praticamente todas as
cidades do leste ucraniano, situadas no litoral do mar negro e na fronteira com
a Rússia. Os levantes assumiram características de guerra civil, e as
manifestações, com ocupação de prédios públicos e a destituição de autoridades
que se opunham ao separatismo, assemelham-se ao que aconteceu no início deste
ano que levou à deposição pela força do presidente ucraniano Viktor Yanukovych.
Mas, as informações que os chegam,
transmitidas em larga escala por poucas agências de notícias ocidentais, tomam
um outro enfoque, diferente da maneira como as primeiras manifestações foram
noticiadas. Apresentadas agora como revoltas conduzidas pro grupos pró-Rússia,
com alegações do governo interino ucraniano que tratam-se de ações de grupos
terroristas alimentados pelo governo russo, e assim reproduzido para todo o
mundo e presente nos discursos das autoridades estadunidenses, embora guardem
semelhanças com aquelas anteriores são distinguidas propositadamente a fim de
justificar possíveis ações militares e intervenções da OTAN.
Presença de grupos nazi-fascistas em Kiev. Fortes protagonistas nas revoltas euromaidan |
Os primeiros choques, naquilo que
ficou conhecido como o Euromaidan (europraça), que tem ocupado a praça central
de Kiev até os dias atuais, assumiram características semelhantes das atuais
revoltas do Leste. Pior, porque foram comandadas por grupos neo-nazistas, que
ascenderam depois ao governo, assumindo dois ministérios. Mas nem por isso
foram noticiadas por essas agências de comunicações, como pró-europeias, muito
embora estivessem presentes, infiltrados, centenas de agentes estadunidenses,
interessados em destituir o então presidente, a fim de atrair a Ucrânia para sua
zona de influência, aproximá-la da União Europeia e incluí-la na Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O objetivo, naturalmente, era reforçar o cerco
ao Heartland russo, e, a meu ver,
vingar-se das derrotas impostas pela diplomacia russa tanto nas ações da Síria,
como na concessão de asilo a Eduard Snowden.
A solução para o problema ucraniano
não é simples. A Rússia não abrirá mão de manter sob sua influência toda a
região que lhes faz fronteira, não somente por ser constituída de uma enorme
população de origem russa, mas pela necessidade de proteção dessas fronteiras,
de forma a afastar possíveis ameaças ocidentais ao seu território.
A crise econômica mundial, que
afeta duramente as principais potências europeias e os Estados Unidos, é um
ingrediente a mais a preocupar os analistas políticos, em vista da necessidade
de artificializar crises como estratégias de não somente desviar as atenções a
esses problemas, mas porque historicamente as guerras têm se constituídos em
saídas para crises que aconteceram em diversos momentos e que afetaram a
economia mundial, ameaçando o equilíbrio geopolítico, e até mesmo efetivando
mudanças consideráveis na hegemonia do poder mundial.
Odessa, começo do século XX, retratada na revolta do Couraçado Potenkim, no clássico filme de Eiseinstein |
Mas, essa região, sempre disputada,
desejada e jamais conquistada por forças externas a ela, tem na sua geografia o
elemento mais forte a protegê-la. Dois grandes impérios, em duas guerras
violentas, viram seus exércitos padecerem nas dificuldades enfrentadas pelo
ambiente e pela reação fortemente nacionalista do povo russo. Tanto na
tentativa de invasão durante as guerras napoleônicas, no começo do século XIX,
como do exército alemão durante a segunda guerra mundial. Em seus momentos, o
poderio francês, bem como no século XX o poderio alemão, eram infinitamente
superior ao russo e soviético. Mas esbarraram nas dificuldades geográficas e na
determinação desses povos.
É impossível fazer um prognóstico
para o final dessa crise. O certo, no entanto, é que isso só se acalmará se ao
fim, e ao cabo, puder se chegar a um acordo que leve a constituição de um
governo na Ucrânia que possa manter o país fora da União Europeia e também
livre da influência russa. Uma federação de estados autônomos independentes
seria, portanto, o caminho adequado para pacificar a região, embora não se
saiba até quando.
A extensão desse artigo se deve à
necessidade de se mostrar com clareza, para além das manipulações dos meios de
comunicação, e dos comunicados piegas de autoridades ocidentais, principalmente
estadunidenses, como se fossem eles xerifes do mundo, a importância estratégica
que toda essa região possui no contexto de uma disputa geopolítica pela
manutenção do poder hegemônico mundial e na tentativa de cercar e impedir que
outros atores possam vir a se constituir em ameaças a esse poder.
Odessa hoje. Com manifestantes em lutas separatistas pró-Rússia |
Criticar a maneira como essa crise
está sendo apresentada não significa, necessariamente, defender o comportamento
político do presidente russo Vladimir Putin, claramente aliado de uma forte oligarquia
local que enriqueceu às custas da decadência do antigo regime soviético. Mas
não se podem admitir as distorções nos enfoques que são dados a esses
movimentos, levando a um claro desequilíbrio nas notícias e omitindo situações
históricas e geográficas que explicam as dificuldades de se compreender todos
esses conflitos.
O “pivô geográfico da história”, ou
o heartland mackinderiano, pode
explodir em novas guerras, incendiando mais uma vez coração do mundo. A população mundial assiste, impassível, a esses acontecimentos, impotentes diante de um
embate que sempre opôs forças poderosas da geopolítica mundial. Seguiremos
acompanhando, com um olhar geopolítico, procurando ser o mais isento possível,
mas seguramente opondo-se à maneira rapace e dominadora, disfarçada em defesa
de democracia e liberdade, com que EUA, Europa e OTAN tem avançado por toda a
região euro-asiática, com intuito de expandir suas influências, ampliar seus
mercados e derrubar governos hostis na linha da estratégia da contenção, de
controle do rimland e de cerco aos
povos das estepes asiáticas.
* Já quando eu estava finalizando este texto me deparei com um artigo no
blog do jornalista Mauro Santayana, que tem elementos já das questões
geopolíticas que estão em jogo nessa disputa. A proibição, por parte da Rússia,
da exportação de alimentos que contenham modificações genéticas, ou, os
chamados transgênicos. Ainda segundo Santayana, isso se dá no momento em que
praticamente metade da produção agrícola da Ucrânia passa a ser controlada por
duas grandes corporações, a Cargill e a Monsanto.[7]
[1] Robert Kaplan, autor do livro
citado, “A Vingança da Geografia”, é o principal analista geopolítico da
Stratfor, uma empresa de inteligência privada global. No seu livro ele procura
descrever as dificuldades impostas pela geografia àquelas ações imperialistas
executadas pelos Estados Unidos nas últimas décadas. Percebe-se que o conteúdo
exposto visa obter uma análise cuidadosa dos erros cometidos, e, a meu ver, com
o intuito de alterar as estratégias adotadas, não mais de intervenções
militares baseadas em enormes contingentes militares e bélicos, mas partindo
para ações de inteligências, de desestabilizações de governos hostis e
operações tecnologicamente sofisticadas. O objetivo, “ser (os EUA) um poder
equilibrador na Eurásia e um poder unificador na América do Norte”
[2]
MACKINDER, Halford. O Pivô Geográfico da
História. In: Revista de Geopolítica. Natal-RN, v.2, n.2, pp. 17-18.
Jul/dez de 2011.
[3] KAPLAN, Robert D. A Vingança da Geografia. A construção do
mundo geopolítico a partir da perspectiva geográfica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2013.
[4] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra Fria. Geopolítica e
dimensão estratégica dos EUA. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
P. 65
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem. P. 66
[7] Leia o artigo acessando o link: http://www.maurosantayana.com/2014/05/os-ogm-cobica-e-morte.html
Excelente artigo. Faço só uma solicitação. O link da citação [7] está apontando para um arquivo .doc, provavelmente presente no computador do autor. Sugeriria que refizesse o link apontando para página referida.
ResponderExcluirParabens pelo texto. Muito exclarecedor e didático.
Fabrizzio, obrigado por ler e participar do Blog Gramática do Mundo. Mas quanto a sua observação, fiz um teste e deu tudo certo. Copiei e colei o link e abriu na página do blog de Mauro Santayana. Tente dessa forma. Att. Prof. Romualdo Pessoa
ExcluirApós uma leitura atenta ao artigo é possível entender a lógica de inúmeras tentativas do rimland de abocanhar áreas estratégicas do heartland. Tentativas que permeiam questões econômicas e políticas com ênfase a interesses em recursos naturais! Um belo artigo que esclarece ao seu leitor a complexa dinâmica que tem ocorrido no leste europeu, numa linguagem clara e acessível!
ResponderExcluirCaro, estimado e respeitado amigo e colega, Romualdo, este artigo é conciso, equitativo e certeiro! Rogo ao amigo, bons ventos e luzes, sempre sobre suas canetadas, digo: digitações! Forte abraço,
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