Resolvi romper o silêncio que me
impus no blog, em decorrência de uma necessária dedicação à elaboração de uma
tese de doutorado, para opinar a respeito de um assunto que tem me incomodado,
e sobre o qual já escrevi até em publicação nacional[1],
fruto de minha participação em um evento no qual essa temática foi discutida e
cujo artigo foi publicado em parte aqui nesse blog[2].
Na verdade há certa relação entre o
que estou estudando para a minha tese, que vem a ser uma continuação da
temática sobre a Guerrilha do Araguaia, agora procurando entender o processo
que se seguiu ao fim desse conflito com o controle militar sobre a região,
Sul/Sudeste do Pará e uma nova guerra que se originou como decorrência dessa
militarização e da luta pela terra travada por posseiros, camponeses, grileiros
e uma estrutura paramilitar construída por grandes fazendeiros e empresas
agropecuárias vinculadas a grupos econômicos e financeiros de outras partes do
país.
Em meio aos estudos do tema, não posso
me furtar a acompanhar notícias políticas e geopolíticas, notadamente aquelas
que tenham relação com o meu trabalho. Não somente da pesquisa, conforme
relatei, mas porque tenho participado diretamente dessa discussão, como membro
da Comissão de Altos Estudos do Centro de Referência das Lutas Políticas no
Brasil (1964-1985).
E isso tem se intensificado como
consequência da instalação da Comissão Nacional da Verdade e, principalmente,
pela proximidade da finalização do prazo para divulgação do relatório final
sobre os abusos e crimes cometidos em um longo período, que avança desde o
período Vargas, mas cujas atenções estão concentradas no período do regime
militar, entre 1964 e 1984.
Nos últimos anos tem se visto uma
alteração na nomenclatura comumente utilizada para identificar esse período.
Fruto de concepções oriundas de grupos de pesquisas vinculadas a historiadores
que pretendem fazer uma revisão historiográfica no termo “ditadura militar”,
tem se acrescido a palavra “civil”, no entendimento reformista de que não foram
somente os militares responsáveis pela condução das ações políticas que
caracterizaram todo o período destacado acima. Até mesmo alguns órgãos de
imprensa, obviamente influenciados por essa nova tese, passam a usar essa
grafia. No que eu duvido que seja fruto de um estudo aprofundado para tanto,
mas muito mais como um modismo, semelhante ao que levou o jornal Folha de São
Paulo a usar o termo “ditabranda”. Neste caso, sendo duramente criticada por
isso, sendo inclusive alvo de protestos que terminou por levar a uma retratação
sobre o equívoco do termo[3].
Porque considero um grave equívoco
o uso da expressão “ditadura civil-militar”?
1) Em primeiro lugar, conforme já
expus no artigo citado e publicado em meu blog (veja nota 2) toda a estrutura
montada a partir do golpe militar de 31/março-1º/abril de 1964 baseou-se em um
conceito que irá definir a espinha dorsal do regime: a doutrina da segurança
nacional.
E aqui se deve fazer uma diferença
entre os motivos que originaram o golpe, que se confundem entre elementos da
geopolítica mundial, com a guerra fria em curso, opondo socialismo x
capitalismo, e a construção de valores de cunho nacionalistas conservadores que
envolviam civis, mas que teve todo o seu arquétipo montado a partir da Escola
Superior de Guerra, tendo a frente seu mais conhecido ideólogo, Golbery do
Couto e Silva. Diferentes, mas iguais, já que os objetivos terminaram se
somando, juntando, assim, a burguesia nacional e internacional com esses
valores que já estavam sendo construídos bem antes do golpe, anterior até mesmo
à posse de Juscelino Kubitscheck.
Assim, todo o poder político,
notadamente os setores estratégicos, e aí compreenda esse termo vinculado ao
conceito de segurança nacional, permaneceram inequivocamente sob o controle dos
militares. O planejamento estratégico formulado por Golbery, que pode ser
avaliado em livro publicado pela Editora da Universidade de Brasília[4],
tem toda a sua preocupação centrada na “segurança nacional”. Destaquei um
pequeno trecho de um denso livro que expõe com clareza essas ideias.
“Limitemo-nos, pois, ao âmbito mais
restrito da política de segurança nacional, aquela já tantas vezes definidas
como visando a salvaguardar a consecução dos objetivos vitais permanentes da
Nação, contra quaisquer antagonismos tanto externos como internos, de modo a
evitar a guerra se possível for e empreendê-la,
caso necessário, com as maiores probabilidades de êxito”.[5]
É bem verdade que nos discursos
elaborados desde o começo do movimento golpista, dizia-se que o objetivo era ceder
a condução política para os civis e retomar o processo democrático no rumo por
eles considerado o correto. Nitidamente com o objetivo de garantir com certeza
que o Brasil estaria ao lado dos Estados Unidos contra o perigo comunista que
encontraria guarida no governo Goulart.
Mas tudo isso se modifica a partir
de 1968. Com a aplicação do Ato Institucional nº 5 e logo no ano seguinte, com
a doença do general-presidente Costa e Silva, não se permitiu a posse do
vice-presidente Pedro Aleixo[6].
Assumiu, então, logo em seguida ao afastamento do então presidente, uma Junta
Militar composta pelos ministros: Aurélio de Lira Tavares, do Exército; Augusto
Rademaker, da Marinha; e Márcio de Souza e Melo, da Aeronáutica. Essa Junta
Militar escolhe posteriormente, dois meses depois, o novo presidente, aquele em
cujo período de governo se intensificará a repressão e o endurecimento do
regime, caracterizando mais destacadamente uma ditadura sangrenta: o General
Emílio Garrastazu Medici.
Fortalece-se a partir de então,
todo o aparato construído com base na Ideologia da Segurança Nacional, que já
funcionava desde 1964, mas que recebe os maiores investimentos a partir desse
período, espalhando o terror e impedindo qualquer tipo de manifestação da sociedade
civil organizada. Os que ousaram enfrentar esse aparato militar foram caçados,
presos, torturados e assassinados nos porões dessa estrutura, nas sombras de
quartéis e delegacias de polícias civil, militar e federal, todas elas
enquadradas no organograma do Sistema Nacional de Segurança, comandado a partir
do SNI. Por um Ministro-Chefe militar, General obviamente.
Nas palavras do então coordenador
da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles, e assim o era de fato, “(...) o Estado
ditatorial era como um polvo negro com tentáculos. A sua cabeça era o Sistema
Nacional de Informações (Sisni), alimentado por outros órgãos de informação
como o SNI, CIE (Exército), Cenimar (Marinha) e Cisa (Aeronáutica)”.[7]
Além disso, por todos os mistérios e órgãos públicos, incluindo universidades,
funcionavam as DSIs (Divisões de Segurança e Informações). E os DOI-CODIS
(Departamento de Operações de Investigações – Centro de Operações de Defesa
Interna). Ainda havia a Polícia Federal, e até mesmo a estrutura das
polícias militares, fato que persiste até os dias de hoje, foi concebida para
incorporar esse sistema, e indiretamente estavam vinculadas ao controle da
cabeça dessa estrutura. O SNI era o cérebro de um sistema montado desde o golpe
de 1964 para manter o controle do poder político e o domínio do Estado
brasileiro, nas mãos dos militares.
Segundo Elio Gaspari, “Em setembro
de 1974 havia no SNI vinte oficiais do Exército”. “Dessa lista de vinte sócios
fundadores do SNI saíram um presidente da República (Figueiredo), dois chefes
do Serviço (Figueiredo e Octavio Aguiar de Medeiros) e dois chefes da Polícia
Federal (Newton Leitão e Moacyr Coelho). Outros cinco (Newton Cruz, José Luiz
Coelho Netto, Edmundo Adolpho Murgel, Mario Orlando Ribeiro Sampaio e Geraldo
Araujo Ferreira Braga) chegaram ao generalato e tornaram-se destacados chefes
nos serviços de informação do regime”[8]
(Apud: APGCS/HF).
“Pela estrutura logística, o SNI
ficou entre os dez mais bem equipados serviços de informações do mundo. Seu
poder de alavancagem política foi superior ao da CIA, do Intelligence Service,
ou mesmo da KGB”.[9] Essa
era a espinha dorsal do regime militar, e ela estava sob o comando e o pulso
firme dos oficiais generais, na presidência da República e no EMFA (Estado
Maior das Forças Armadas).
Naturalmente, toda essa estrutura
contava com o apoio civil, inclusive e principalmente, nas DSIs. Mas o comando
estava com os militares. Inclusive na Operação OBAN (Operação Bandeirante),
tida como uma prova do envolvimento de grandes empresários, portanto civis, na “condução
do regime” (sic). A OBAN foi gestada dentro do Sistema Nacional de Informação,
e também ela não fugiu ao controle dos generais que estavam em seu comando. Assim
como a malfadada Operação Condor, gestada por esse sistema de informação e
repressão brasileiro, com o apoio da CIA.
Era um regime militar, que
tornou-se uma ditadura sangrenta e descontrolada.
2) Em segundo lugar, havia civis no
governo. Isso é óbvio. Como é possível, em qualquer canto do mundo, uma
estrutura de Estado ser toda ela montada com militares? Naturalmente, não
somente os civis participaram, como era claro o interesse que motivou o apoio a
um golpe militar. Era a condição para tomar o poder de um setor que se
aproximava do discurso socialista e flertava perigosamente com países da
chamada “Cortina de Ferro”, o outro lado da guerra fria, do qual a burguesia
brasileira industrial e agrária queria distancia.
Ora, mas ao contrário do termo “militares”,
que identifica um setor da sociedade, institucional e vinculado à estrutura do
Estado, “civil” é genérico e amplia para além da dimensão que deve ser dada a
quem de fato apoiou e participou do golpe militar de 1964. O correto é
identificar a burguesia nacional, os banqueiros e os latifundiários, como os
setores interessados em abortar os rumos que tomavam o governo de João Goulart.
E assim o fizeram, apoiaram e financiaram o governo e a estrutura montada para
caçar os militantes de esquerda que se opunham ao regime militar. Inclusive com
a participação de economistas, advogados, profissionais liberais, professores
em órgãos do Estado e até em ministérios. Mas eram subordinados ao comando
central do regime, os generais, e completamente subservientes à estrutura que
fora montada por esses. E, permanentemente vigiados por essa mesma
estrutura citada acima. Qualquer deslize, inclusive em casos de corrupção, eram
sumariamente alijados.
É absolutamente correto se afirmar
que criou-se uma rede de empresários com o objetivo de financiar muitas dessas
operações, e o caso mais significativo é da OBAN. Mas isso não os tornam
condutores do processo político e dos rumos que tomavam o regime. Principalmente
a partir de 1969 esses “civis”, tornam-se completamente subservientes aos
objetivos da ditadura militar, até mesmo parlamentares, de todos os matizes,
espalhados pelo Brasil nas várias ARENAs (Aliança Renovadora Nacional, 1,
2, 3 etc...) que existiam em casos de divergências políticas locais. Quando foi
preciso, no princípio de seu fim, o general-presidente Ernesto Geisel criou os
tais dos “senadores biônicos”, nomeados um por cada Estado, para burlar a
derrota eleitoral que deu maioria no senado á oposição (MDB). Era o chamado “Pacote
de Abril”.
Obviamente, os civis participaram
de várias maneiras do regime militar e em vários cargos em um Estado de tamanho
descomunal. Jamais caberia nele somente militares. Mas isso não os fizeram,
jamais, condutores da política adotada, principalmente a que norteou o rumo do
regime, os PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), I e II, que seguiam as
razões geopolíticas e os conceitos da Doutrina de Segurança Nacional. Mesmo
quando se tratava de fortalecer o capitalismo brasileiro, algo que ficou mais
forte no II PND. A prova mais concreta disso é o impedimento da posse de Pedro Aleixo, um civil, na presidência da República, quando do afastamento do General Costa e Silva.
Portanto, do início (1964), ao fim
(1985) o comando do regime sempre esteve nas mãos dos militares, das suas mais altas
patentes, e todo a condução da política, seguindo-se estratégias definidas pela
DSN (Doutrina de Segurança Nacional) e executadas pela estrutura militar-repressiva em momento algum passou para
o controle dos setores da sociedade civil que os apoiavam e que controlavam o
poder econômico brasileiro. Os que ousaram divergir, foram sumariamente afastados.
Presidentes (todos) militares entre 1964 e 1984 |
Não tem cabimento, portanto, tentar
minimizar o caráter militarista que caracterizou a ditadura, no afã de
responsabilizar civis, cujo termo generaliza-se sem destacar responsabilidades
setorizadas. E, se não cabe no caso brasileiro, essa invencionice também não
tem cabimento em nenhuma ditadura da América Latina, e até mesmo do mundo.
Afinal, todas elas tiveram como suporte o apoio de setores da sociedade civil,
conservadores, direitistas, grupos religiosos fundamentalistas e fascistas.
Portanto, caso prevaleça essa lógica, pode-se dizer que não houve ditadura
militar em nenhum lugar do mundo. O que vem a ser uma aberração do ponto de
vista da história e uma tentativa de revisão historiográfica de negar o caráter
rigidamente militar que as caracterizaram.
Em minha opinião, o termo Ditadura
Cívil-Militar, como deseja alguns historiadores reformistas, presta-se ao sentido
semelhante ao que tentou dar o jornal Folha de São Paulo, no editorial já
citado, de considerar a ditadura militar, como uma “ditabranda”,
diferenciando-a das demais ditaduras que ocorreram na América Latina. Penso que
falta a alguns desses reformadores uma leitura nas obras de alguns dos mais
destacados geopolíticos, da Escola Superior de Guerra, a começar por Golbery do
Couto e Silva, que desde 1962 já elaborava as estratégias de poder, baseada na
ideologia da segurança nacional. Embora majoritários, nem todos eram militares,
como por exemplo a professora Therezinha de Castro. Em suas obras podem-se
encontrar tanto os sentimentos que os nortearam, como os objetivos que seriam
alcançados de acordo com o que estabelecia essa doutrina. E ela era
inegavelmente militarista, tinham nas preocupações estratégias geoeconômicas e
geopolíticas os elementos basilares que lhes davam as razões ideológicas para
controlarem, com todas as forças, as estruturas do poder do estado brasileiro.
Crise após a tentativa de atentado no Rio Centro no ocaso do regime militar |
Pode-se aceitar que o golpe de 1964
foi de caráter civil-militar. E deve-se buscar punir todos aqueles que
acobertaram torturas, financiaram repressão e foram coniventes com os abusos
cometidos, sejam eles militares ou civis. Mas o que tivemos aqui no Brasil, de
1964 a 1985, foi um governo militar, comandado por militares, que se mantiveram
no controle desde o golpe de março/abril até o seu fim, com a eleição de
Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e a passagem para um presidente civil, José
Sarney, com a posse do vice deste, tragicamente morto antes de sua posse.
Até 1968, tentou-se dar uma
conotação de uma ingerência que visava salvar o país do comunismo e de garantir
a defesa da democracia. Muito embora, somente no primeiro ano pós-golpe, cerca
de 50.000 pessoas tenham sido presas e seus direitos políticos cassados,
segundo a Comissão Nacional da Verdade. Dentre os quais, meu pai, Romualdo Pessoa Campos, a quem aproveito
para prestar uma homenagem, vereador na cidade de Alagoinhas (BA) então no
quinto mandato, tido como “comunista”, embora fosse um sindicalista membro do
partido do presidente da República, o então PTB. De 1968 em diante cai a
máscara dos artífices do golpe, e instala-se um regime de terror que virá a se
caracterizar, inequivocamente, como uma brutal Ditadura Militar.
[3]
Veja repercussão no Observatório da Imprensa: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/folha-admite-que-errou
[4]
Silva, Golbery do Couto e. Planejamento Estratégico. 2ª edição. Brasília:
Universidade de Brasília, 1981.
[5]
Silva, Golbery do Couto e. Op. Cit. Pág. 22
[6] O
Congresso Nacional inclusive já aprovou uma lei, sancionada pela Presidenta
Dilma Roussef,, de nº 12,486, de 12 de setembro de 2011, que “inclui o nome do
cidadão Pedro Aleixo na galeria dos foram ungidos pela Nação Brasileira para a
Suprema Magistratura”.
[8]
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
P. 159
[9]
Idem, p. 169
Perfeito,Romualdo!
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