Imagine que o povo curdo estivesse
reunido em um território delimitado, com fronteiras definidas e um Estado que
consolidasse uma nação. Esse país estaria na posição entre 30º e 35º lugar em
número de habitantes, entre os quase 200 países existentes no mundo. Mas onde se
encontra esse povo? Porque pouco se fala dele?
Quase nunca citado na mídia os
curdos formam um povo sem pátria. Espalhado por vários países no Oriente Médio,
tem, nos últimos anos, devido à forte repressão e perseguição a que tem sido
duramente submetido durante séculos, migrado mais acentuadamente em direção à
outros países ocidentais, principalmente os europeus, e destacadamente a
Alemanha. São cerca de 35 milhões de curdos, espalhados por países do Oriente
Médio: Turquia e Iraque, principalmente, além de Irã, Síria, Armênia e
Azerbaijão (esses dois últimos fora do OM), em uma área que corresponde a
aproximadamente 500 mil km². Eles formam grupos com características
diversificadas, em razão das diferenças existentes entre os países em que
vivem, mas estão situados em territórios com enorme importância estratégica no
Iraque e na Turquia.
Mas nos interessa resgatar aqui o
que a mídia omite por questões que estão relacionadas aos interesses
geopolíticos de potências europeias e aos Estados Unidos. Principalmente pelo
fato de a região reivindicada por esse povo ter uma importância geopolítica
fundamental, pois o que deveria ser o seu território, numa região conhecida
como Curdistão, possui além de enormes reservas de petróleo, rotas importantes
de oleodutos e gasodutos que seguem em direção ao mar Cáspio. Um dos maiores
consórcios que atuam na região tem, por exemplo, a presença da companhia
britânica British Petróleum. Trata-se do consórcio Baku-Tibilise-Ceyan (BTC),
que controla um oleoduto financiado pelo banco mundial desde 2005 que passa por
Azerbaijão, Georgia e Turquia. O governo turco concedeu poderes sobre esse
consórcio que anulavam direitos humanos, sociais e ambientais e que mantinham
fortes pressões sobre o povo curdo, afetado em seus domínios, mas reprimidos
implacavelmente. O oleoduto BTC tem uma importância considerável na geopolítica
do petróleo e as potências ocidentais, com os acordos firmados, conseguem
influenciar permanentemente na política da região.
No Iraque os curdos ocupam uma área
com grande reserva de petróleo, na fronteira com Irã e sempre foram submetidos
à opressão permanente, e durante o governo Sadam Hussein sofreram um massacre
que levou à morte milhares deles, eliminados provavelmente com a utilização de
armas químicas, em 1988 na cidade de Halabja de maioria curda. Mas também em
1995 tropas militares da Turquia, aos milhares, invadiram o curdistão iraquiano
para atacar bases do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), grupo que
lidera a luta separatista dos curdos na Turquia, e por isso e por seus métodos,
é considerado pelos EUA como terrorista.
Com o esfacelamento do Iraque, após
a invasão dos EUA quando se aliam à coalizão ocidental para derrotarem Sadam
Hussein, acreditava-se que os curdos poderiam conseguir a ambicionada autonomia, mas isso não se
concretizou, muito provavelmente porque a área a ser autonomizada tem em seu
subsolo uma enorme reserva de petróleo, provavelmente a maior em território
iraquiano. Os EUA não apoiaram porque temia que se acentuassem as lutas étnicas
gerando mais instabilidades que poderia complicar o controle sobre essa enorme
reserva.
Refugiados iraquianos no curdistão sírio |
Contudo, a despeito dessas questões
que tem a ver com o fato de o povo curdo reivindicar uma região riquíssima em
petróleo, nesse momento o que fala mais alto (embora não repercuta na mídia),
envolve a guerra civil na Síria e a fronteira com a Turquia. Sabemos que dura há
séculos a luta curda por um Estado autônomo e independente, e que grupos
guerrilheiros se mantêm ativo na Turquia, muito embora duramente reprimidos em
massacres que não são mostrados para o mundo.
Nas últimas semanas se ouviu muito
falar sobre movimentação de mísseis Patriots dos Estados Unidos, a serem
controlados pela OTAN, deslocados para a região fronteiriça entre a Síria e
Turquia. O argumento apresentado foi de que seriam para prevenir contra
qualquer tentativa de ataque sírio. Mas a verdade é bem outra, embora não se
descarte a possibilidade de haver um ataque turco ao país vizinho.
Curdistão sírio - guerrilheiras |
Ocorre que grupos guerrilheiros
curdos, aliados ao governo de Bashar al Assad, negociaram a autonomia da região
em que vivem, na fronteira com a Turquia. A estratégia do governo sírio seria
empurrar o conflito para o país vizinho possibilitando que o PKK, atualmente
enfraquecido pela repressão violenta do governo turco, possa se sentir animado
diante da eminência de avanço da revolta árabe para o território turco.
O pesadelo de Recep Tayyip Erdogan,
primeiro ministro turco, seria uma aliança entre curdos iraquianos e sírios,
que poderia reacender os ânimos dos curdos turcos, fortalecer o PKK, e,
principalmente, estimular os guerrilheiros que atuam na Turquia, enfraquecidos
pelos constantes confrontos e repressão do bem armado exército turco.
Mas, não somente esse quadro seria
preocupante para o primeiro-ministro turco. A possibilidade de uma derrota do
regime sírio poderia também levar a uma instabilidade na região, semelhante ao
que acontece atualmente na Líbia, que poderia empurrar os curdos em direção à
fronteira turca, onde milhares de refugiados vivem em acampamentos
improvisados.
Enfim, o sonho de um Curdistão
independente e autônomo pode estar sendo renovado com a radicalidade do conflito
sírio e com a postura agressiva do governo Turco, constituindo-se em porta-voz
dos interesses dos EUA através da OTAN.
Não é exagero considerar que a
Turquia pode ser a próxima pedra do dominó a ser abalada no jogo geopolítico do
Oriente Médio, em mais um capítulo do que se convencionou chamar (erroneamente)
de “primavera árabe”. O que não se pode esperar, nesse caso, é que a reação das
potencias ocidentais se limitem a ação de agentes espiões, de falcões
provocadores ou de financiamento a grupos que disfarçadamente agem a seu favor.
Seguramente a defesa da Turquia colocaria a OTAN em pé de guerrra, não somente
por ser esse país um membro dessa organização, mas por sua posição estratégica.
Com um território dividido por dois
continentes a Turquia se liga à Europa e a Ásia pelo estreito de Bósforo.
Embora participante da OCDE, a sua integração ao bloco europeu anda a passos de
tartaruga, e o grande empecilho a isso é a sua enorme população islâmica, que
gera receios em vários governos europeus, já que essa religião tem um forte
crescimento no continente, e poderia ser ampliado como consequência da liberdade
movimento da população pelas nações europeias.
Uma situação de instabilidade na
Turquia poderia levar a um deslocamento acentuado de turcos em direção aos
países europeus, acirrando os problemas que esses já se deparam, com níveis
crescentes de desempregos a estimular casos de xenofobia.
Cenas do filme: Tartarugas podem voar |
Essas interrogações, quanto ao
resultado do conflito que está destruindo a Síria e as consequências disso não
só para o futuro daquele país, mas também para a Turquia e outros Estados-nações
que tem fronteira com o território sírio, não podem ser respondidas com
segurança quanto aos seus resultados.
Contudo, é possível perceber que as
manobras militares da OTAN, com o uso de mísseis patriots estadunidenses, tem o
claro objetivo de proteger a Turquia das instabilidades crescentes na região.
Da absoluta falta de segurança quanto ao destino que poderá ter o aparato
bélico sírio, caso o governo seja derrotado (já que se sabe haver até mesmo
grupos da Al Qaeda combatendo naquele país), bem como sobre qual será o
comportamento dos vários grupos da guerrilha curda, que não descansará enquanto
não conseguir atingir seu objetivo, tornar o Curdistão um Estado-nação do povo
Curdo.
FONTES:
1. Bem-vindos à primavera Curda – Pepe Escobar: http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/pepe-escobar-bem-vindos-primavera-curda.html
2. Conflito entre Turquia e Síria incentiva separatistas curdos – Der Spiegel: http://codinomeinformante.blogspot.com.br/2012/10/der-spiegel-conflito-entre-turquia-e.html
Vídeo/filme:
Tartarugas podem voar – filme que retrata a situação do povo curdo em
aldeia (acampamento) na fronteira entre o Irã e o Iraque ás vésperas da invasão
dos EUA.
Ficha Técnica: Tartarugas Podem Voar (Lakposhtha hâm parvaz
mikonand /Turtles Can Fly). 2004. Irã / Iraque. Direção e Roteiro: Bahman
Ghobadi. Elenco: Soran Ebrahim (Satellite), Avaz Latif (Agrin), Saddam Hossein
Feysal (Pashow), Hiresh Feysal Rahman (Hengov), Abdol Rahman Karim (Riga), Ajil
Zibari (Shirkooh). Gênero: Drama, Guerra. Duração: 95 minutos.
Disponível no
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=5n1Af5_TjrI (completo e legendado)
A constituição de um território Curdo, autônomo, é tarefa difícil, já que a população de tal etnia está distribuída por diversos países, e são minoria em todos... Com o agravante da instabilidade política da região, localização estratégica e de interesse econômico global.
ResponderExcluirA premissa de instaurar(ou tentar instaurar) um Estado-nação Curdo incidiria em violentas reações.