sábado, 23 de junho de 2012

ENTRE O PARAGUAI E O EGITO – AS TRADIÇÕES GOLPISTAS E A FALÁCIA DA DEMOCRACIA PERPASSAM OS CONTINENTES


Memorial da América Latina

Eu poderia iniciar esse texto tomando como referência Honduras, que viveu recentemente um processo semelhante, com a deposição do presidente Manuel Zelaya em um “golpe branco”. Ou mesmo as tentativas de golpes e assassinatos contra Hugo Chavez, da Venezuela e Rafael Correa, do Equador. Ou quem sabe citar a manipulação da mídia e dos setores conservadores em torno de um escândalo, tomado proporções inusitadas pelos interesses em jogo – o midiaticamente denominado “mensalão” – quando se aventou também a hipótese de um impeachment do presidente Lula, aqui no Brasil.
Qualquer um desses exemplos, e tantos outros possíveis de ser encontrados na história política latino-americana nos possibilitam entender a maneira como a elite tradicional lida com o controle do poder, e apregoa a falácia da democracia, a seu bel-prazer, sempre no intuito de manter o controle sobre os meios de produção, do sistema financeiro e do modelo latifundiário que vigora por aqui desde há séculos. Para isso ainda é bem atual o livro de Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”.
Mas como vivemos um momento de expectativa em torno desses dois acontecimentos, onde por maneiras diferentes processos que se acreditavam democráticos são tomados por golpes de estados mais sofisticados, utilizando-se de mecanismos constitucionais, mas manipulados de acordo com os interesses em jogo. O Paraguai e o Egito são bons exemplos para demonstrar o quanto a democracia é um sistema representativo dos setores conservadores, somente  permitido às forças populares quando na sua utilização não consigam adquirir maioria no parlamento. E reage-se à força, os proprietários dos meios de produção, quando se veem ameaçados em seus domínios, ou quando a eminência de um poder popular os assustam, impregnando-os de temor de ter suas riquezas ameaçadas. 
MAIS UM GOLPE NO PARAGUAI
Talvez seja este o país de maior tradição golpista na história da América Latina. E o que mais tempo conviveu com uma ditadura militar, sob o comando do general Alfredo Stroesner, que após um golpe militar em 1954 governou aquele país por 35 anos, entremeada por sucessivas fraudes eleitorais.
A herança desse e de outros caudilhos e ditadores transformou o Paraguai em um dos países mais atrasados economicamente do continente americano. Dominado por uma forte elite agrária, a pobreza se disseminou majoritariamente por todo o seu território, sem que fosse possível criar um movimento camponês forte, em função da violenta repressão que sempre marcou a política paraguaia.
A eleição de Fernando Lugo se apresentava como uma vitória das forças populares, e consequência dos ares de mudanças que vicejava por toda a América Latina. Mas isso só foi possível com uma ampla aliança política, que o levou a um acordo com o Partido Liberal Radical, que poderíamos, grosso modo, assemelhá-lo a uma mescla de PSDB e DEM.
Contudo, os anos de ausência de democracia não permitiram a consolidação de um sistema partidário que fugisse do bipartidarismo que vigorou por toda a ditadura stroesner. Assim, em aliança com um partido conservador, que possuía ao lado do Partido Colorado maioria no parlamento, Lugo se viu impossibilitado de implementar reformas progressistas. Sua tentativa esbarrou logo imediatamente na formação do seu governo, levando a um imediato rompimento do vice-presidente liberal. Agora protagonista do golpe, assumindo a condição de presidente, e de um partido que, embora sendo representante das forças conservadoras e do latifúndio, há mais de sessenta anos estava fora do controle do poder político.
Impedido de consolidar suas propostas de mudança, por não possuir sequer um terço do parlamento, Lugo se viu isolado e ainda por cima desacreditado pelos movimentos populares, principalmente os sem-terras, camponeses que travam uma batalha ferrenha contra o enorme poder que os grandes proprietários de terras, latifundiários, possuem naquele país. Inclusive controlando boa parte do parlamento.
Sem-terras no Paraguai
opovonalutafazhistoria.blogspot.com.br
A gota-d’água de tudo isso foi exatamente um confronto envolvendo latifundiários, policiais e sem-terras, em uma fazenda de propriedade de um ex-senador colorado. O final do conflito deixou 18 mortos, entre camponeses (11) e policiais (7), num típico conflito de guerrilha, já que envolveu até mesmo grupos guerrilheiros (Exército do Povo Paraguaio) que atuam na região, embora uma suspeita não comprovada e que requer desconfiança pelas fontes que deram essa versão. A insinuação de que grupos populares vinculados ao governo também estivessem ao lado dos sem-terras serviu como pretexto para que os setores conservadores, provavelmente sentindo-se ameaçados pela determinação de Fernando Lugo de propor uma Reforma Agrária (embora não tivesse apoio político para isso), iniciasse um processo em rito sumário, sob o argumento de “mau desempenho de suas funções, com o intuito de derrubar o presidente democraticamente eleito.
Enfim, consolidado esse golpe, em menos de 48 horas, vemos um comportamento semelhante ao que aconteceu aqui no Brasil, em 1964. Também a bandeira da Reforma Agrária, a amedrontar e ameaçar os interesses de grandes proprietários de terras, aliado ao crescimento e fortalecimento das Ligas Camponesas, foi o pano de fundo para que o cargo de presidente fosse declarado vago após a mobilização das tropas militares que em 1º de abril daquele ano também implementou um golpe com argumentos parecidos. Da mesma forma que Lugo, João Goulart também não possuía uma forte base parlamentar e se via também acuado por boa parte da esquerda, que criticava sua lentidão para consolidar as transformações reivindicadas.
Nos dois casos o sectarismo por parte dos grupos de esquerda, ansiosos por mudanças aceleradas, se contrapôs a outra semelhança entre as duas situações, a aliança dos setores conservadores e reacionários. Historicamente, enquanto a esquerda se divide a direita se unifica, em torno da defesa de seus interesses corporativos, principalmente de seus meios de produção, grandes propriedades, bábricas e bancos.
Conclusão, o Paraguai volta por meio de um outro golpe de estado, travestido de interesses “democráticos”, porque com base no parlamento (assim também o foi aqui no Brasil, quando o presidente do Congresso declarou vago o cargo de presidente), a ser governado pelos setores conservadores.
Tudo indica que os próximos meses serão decisivos para definir os rumos da “democracia” paraguaia. Provavelmente haverá uma radicalização nas lutas sociais e um aumento da repressão contra o movimento camponês, levando a um acirramento da luta de classes e a provável conflito guerrilheiro que poderá até mesmo ameaçar a fronteira brasileira, porque onde se situa um dos principais focos desse embate, envolvendo os apelidados “brasiguaios”, antigo produtores brasileiros que se instalaram naquele país e ali consolidaram um forte poder latifundiário.
O que se pode esperar agora é que as nações que componham a Unasul reconheça a situação do Paraguai, como de uma situação golpista, tendo sido ferido de morte os valores democráticos, através do afastamento de um presidente eleito através de um julgamento sumário, exercido em um tempo recorde a partir de uma situação de fragilidade política gerada pelo próprio parlamento, incapaz de ceder aos interesses corporativos dos grandes fazendeiros,  minoria proprietária da maioria das terras paraguaias, dentre os quais os chamados "brasiguaios".
EGITO: DA PRIMAVERA ÁRABE A UM LONGO E TENEBROSO INVERNO
Já teci aqui no Blog crítica á formulação de uma “primavera árabe”. Uso o termo para criticá-lo, na medida em que erroneamente procura assemelhá-lo ao período de intensas revoluções burguesas no século XIX denominado pelo historiador Eric Hobsbawm, como a “primavera dos povos”. As manifestações iniciadas pela Tunísia, a partir do protesto em auto-imolação de um vendedor ambulante, e espalhou-se por uma série de países, teve seguramente origem na indignação de milhões de jovens e potencializadas pelas redes sociais.
Praça Tahrir no Cairo
Mas, nesse caso, quanto em tantos outros que se espalharam pelo resto do mundo, e através de uma postura sectária e de não aceitação da participação das organizações políticas e sociais, o grito de indignação se não foi abafado, foi gradativamente sendo manipulado. E se o temor inicial pela não aceitação da presença de partidos tomou corpo em meio à multidão, isso não inibiu, na sequência das saídas institucionais, que o movimento fosse cooptado pelo legalismo das eleições e pela sutileza com que foi aplicado um golpe de estado disfarçado mantendo o poder sob o controle dos militares.
Apoiado pelos países ocidentais europeus e pelos Estados Unidos, e naquela região pela Arábia Saudita, tanto os militares (no caso do Egito), quanto a Irmandade Muçulmana (no Egito e na Tunísia, além de sua participação no conflito da Síria), passaram a se constituir em alternativas para os interesses do império, bem como para conter o aumento da influência do Irã.
Entre idas e vindas, e dois processos eleitorais sendo um parlamentar e outro presidencial (algo inédito naquele país), a característica marcante que fica é da manipulação através de mecanismos legais (como no exemplo do Paraguai) para manter o controle do poder nas mãos dos militares e, por outro lado, com a destituição do parlamento recém-eleito pela junta militar, impedir que o próximo presidente, oriundo da Irmandade Muçulmana, venha a ter uma maioria parlamentar. O objetivo é dificultar a governabilidade, principalmente através de medidas que venham a desagradar os interesses dominantes da minoria de privilegiados, e manter sob controle um provável estado islâmico, que possa vir a funcionar como nos Emirados Árabes, no Kweit e em outras monarquias muçulmanas que dominam a região tendo a frente a Arábia Saudita.
Mursi - Irmandade Muçulmana
EFE - Revista Época
O resultado eleitoral foi divulgado neste domingo, e a demora visou dar tempo à Junta Militar de desfazer o parlamento, e impor limites ao poder presidencial. Mas, principalmente, para garantir com que as principais estruturas do estado egípcio se mantenha sob controle dos militares e atendendo aos interesses dos Estados Unidos num região de enormes interesses estratégicos. Mesmo assim, uma incógnita prevalecerá, quanto aos rumos que o Egito tomará nos próximos anos.
Ao fim de tudo o que podemos aprender desses exemplos é que a dita democracia só tem valor se atende aos interesses daqueles que controlam a riqueza, seja meios de produção ou o sistema financeiro. É admissível às elites perder o poder político para partidos que não sejam de suas  representações, mas não é admitido que as ações desses partidos, ou lideranças que ascendam ao poder, extrapolem os limites de seus interesses. O que vale então é ou a plutocracia ou a teocracia, atendendo aos interesses dos setores mais ricos, no primeiro caso, ou de grupos religiosos no segundo caso, desde que estejam os dois em perfeita sintonia. O que quase sempre acontece.
Com isso quero dizer que a democracia, que deve ser vista historicamente, não em seu sentido universal como a própria social-democracia procurou apresentar, é incompatível com os valores capitalistas. Na medida em que esse seria um regime representativo que atenda aos interesses da maioria, quando no capitalismo prevalecerá sempre os interesses de uma minoria, controladora dos meios de produção e permanentemente atenta a se impor pela força cada vez que o seu poder estiver sob ameaças.
Junta militar governa o Egito desde
a queda de Mubarak
O Paraguai, bem como o Egito, são alguns dos tantos outros exemplos que deveriam nos instigar, e alertar aqueles que lutam contra o processo de dominação excludente e se dispõem a lutar contra as injustiças sociais. O que se vê nesses processos é uma verdadeira autofagia entre setores de esquerda, que digladiam-se e se veem muito mais como inimigos do que deveria ser a própria burguesia. O sectarismo e a incapacidade de se fazer política para além dos interesses mesquinhos dificulta a formação de uma base de apoio progressista, bem como a eleição de parlamentares identificados com as lutas populares. Essa situação termina por jogar nas mãos da burguesia o controle dos parlamentos, e impõe a qualquer governo de esquerda que se eleja a necessidade de composições conservadores para manter a governabilidade.
Evidentemente, nessas situações as medidas que poderiam possibilitar transformações radicais, como a reforma agrária, não se consolidam, mantém um caos político, acirram os ânimos entre a própria esquerda e garante os pretextos para que um parlamento conservador majoritariamente aplique golpes de tomada de poder escorando-se em constituições limitadas e implementadas exatamente no sentido de conter qualquer ascensão ao poder de grupos que apliquem medidas que alterem as estruturas arcaicas do estado conservador.

2 comentários:

  1. Engraçado a tal da mídia,faz tanta confusão na nossa cabeça que no fim precisamos nos organizar do aveso para compreender algo. Seu texto me mostrou parte desse caminho aveso.

    Abraço

    Lorranne

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  2. Bom texto, já estava pra solicitar uma analise da situação politica do Paraguai, estavamos como no Mito da Caverna, com a grande midia nos fornencendo apenas o lado conservador, realmente a instabilidade da esquerda fortalece e muito a direita conservadora, porém vem a questão é muito mais facil agradar a poucos que a muitos e ao gerar o caos da multidão, sempre surgirá uma direita forte!!!

    Abraços,

    André.

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